quarta-feira, 25 de novembro de 2009

CRÓNICA PARA OS CASTRADOS

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«A história da justiça é negra quando é avaliada pelos resultados e pela eficácia no combate ao crime económico e à corrupção. O sistema de justiça treme e abana todo, quando é confrontado com uma investigação criminal em que os visados são gente poderosa e com influência. E treme de baixo para cima e de cima para baixo, dando uma imagem de si própria de medo e de falta de confiança.

A justiça e os seus actores não estão preparados para lidar com este tipo de criminalidade, nem têm capacidade ou força para enfrentar gente fina de colarinho branco, para investigar os “donos” do regime democrático. Sim, porque o verdadeiro dono do regime político não é o povo que vota de quatro em quatro anos, mas os partidos políticos com vocação de poder. A lógica clientelar partidária transformou os partidos em oligarquias que se servem do poder para ajudar os amigos, os confrades, a conseguir bons empregos e bons financiamentos. Há muito que o mérito deixou de ser o elemento fundamental a ter em conta no preenchimento dos bons lugares. E esta teia é tão poderosa e tentacular que, servindo-se dos valores da democracia representativa, já conseguiu, também, contaminar o sistema judicial.

A ideia de nepotismo começa a ser aceite, face ao laxismo cívico. Somos o País do faz-de-conta, das aparências e do deixa-andar. O que é preciso é fazer o jeito e não incomodar quem nos governa. E este mal já chegou à justiça. E quando a justiça treme e tem dois pesos e duas medidas, quem salva a República?

A qualidade e a eficácia da investigação criminal medem-se pelos resultados obtidos no combate e na repressão do crime económico. Tudo o mais pouco interessa para a transparência e qualidade da democracia.

O défice da acção penal, no campo da repressão deste tipo de crimes, o desfasamento dos códigos relativamente a estes crimes, a ausência de uma prevenção corajosa e a morosidade, fazem o resto que falta para esta pálida imagem da justiça.

Neste momento difícil na vida dos tribunais, devido a processos como ‘Submarinos’, ‘Sobreiros’, ‘Freeport’, ‘Apito Dourado’, ‘BPN’ e ‘Face Oculta’, era chegada a hora de os juízes dizerem basta. Bastava, que quisessem exercer as suas competências constitucionais, de forma exemplar e rigorosa, pondo na ordem esta gente que pensa estar acima da lei. Não era preciso invadir as competências atribuídas ao poder político.

E, se em vez de tremerem, agissem bem e depressa, tinham o cidadão como aliado, reganhando, junto da sociedade, o prestígio e a confiança perdida. A escolha é entre o abismo com morte certa e o paraíso da moral e da ética que nos salva a alma».

Estas palavras não são minhas, caso já esteja por aí alguém a afiar as unhas para saltar em defesa da malandragem reinante e a acusar-me de perseguir, com fixações maldosas, certos patifes. São palavras do juiz desembargador Rui Rangel. Elas são uma cacetada, de alto a baixo, na cabeça daqueles que, sendo mentalmente cegos, absolutamente crápulas ou castrados militantes, ainda se atrevem a defender o bando de gente desprezível que tomou conta do país, seja através das rédeas da governação, seja através do sistema económico, seja através do abraço espúrio entre as duas coisas. Elas respondem, de forma exemplar, ao cego mental – ou ao crápula refinado – que, há oito dias, dizendo-se jurista, ergueu a voz em defesa dos suspeitos do caso Face Oculta, pondo-se ao lado de José Sócrates e dos defensores da destruição das escutas que o implicam em acções mais do que suspeitas.

«O processo Face Oculta deu-me, finalmente, resposta à pergunta que fiz ao ministro da Presidência, Pedro Silva Pereira – se no sector do Estado que lhe estava confiado havia ambiente para trocas de favores por dinheiro. Pedro Silva Pereira respondeu-me, na altura, que a minha pergunta era insultuosa.

Agora, o despacho judicial que descreve a rede de corrupção que abrange o mundo da sucata, executivos da alta finança e agentes do Estado, responde-me ao que Silva Pereira fugiu: Que sim. Havia esse ambiente. E diz mais. Diz que continua a haver. A brilhante investigação do Ministério Público e da Polícia Judiciária de Aveiro revela um universo de roubalheira demasiado gritante para ser encoberto por segredos de justiça.

O país tem de saber de tudo, porque por cada sucateiro que dá um Mercedes topo de gama a um agente do Estado, há 50 famílias desempregadas. É dinheiro público que paga concursos viciados, subornos e sinecuras. Com a lentidão da Justiça e a panóplia de artifícios dilatórios à disposição dos advogados, os silêncios dão aos criminosos tempo. Tempo para que os delitos caiam no esquecimento e a prática de crimes na habituação. Foi para isso que o primeiro-ministro contribuiu quando, questionado sobre a Face Oculta, respondeu: "O Senhor jornalista devia saber que eu não comento processos judiciais em curso (…)". O "Senhor jornalista" provavelmente já sabia, mas se calhar julgava que Sócrates tinha mudado neste mandato. Armando Vara é seu camarada de partido, seu amigo, foi seu colega de governo e seu companheiro de carteira nessa escola de saber que era a Universidade Independente. Licenciaram-se os dois nas ciências lá disponíveis quase na mesma altura. Mas sobretudo, Vara geria (de facto ainda gere) milhões em dinheiros públicos. Por esses, Sócrates tem de responder. Tal como tem de responder pelos valores do património nacional que lhe foram e ainda estão confiados e que à força de milhões de libras esterlinas podem ter sido lesados no Freeport.

Face ao que (felizmente) já se sabe sobre as redes de corrupção em Portugal, um chefe de Governo não se pode refugiar no "no comment" a que a Justiça supostamente o obriga, porque a Justiça não o obriga a nada disso. Pelo contrário. Exige-lhe que fale. Que diga que estas práticas não podem ser toleradas e que dê conta do que está a fazer para lhes pôr um fim. Declarações idênticas de não-comentário têm sido produzidas pelo presidente Cavaco Silva sobre o Freeport, sobre Lopes da Mota, sobre o BPN, sobre a SLN, sobre Dias Loureiro, sobre Oliveira Costa e tudo o mais que tem lançado dúvidas sobre a lisura da nossa vida pública. Estes silêncios que variam entre o ameaçador, o irónico e o cínico, estão a dar ao país uma mensagem clara: os agentes do Estado protegem-se uns aos outros com silêncios cúmplices sempre que um deles é apanhado com as calças na mão (ou sem elas) violando crianças da Casa Pia, roubando carris para vender na sucata, viabilizando centros comerciais em cima de reservas naturais, comprando habilitações para preencher os vazios humanísticos que a aculturação deixou em aberto, ou aceitando acções não cotadas de uma qualquer obscuridade empresarial que rendem 147,5% ao ano. Lida cá fora, a mensagem traduz-se na simplicidade brutal do mais interiorizado conceito em Portugal: nos grandes ninguém toca».

Estas palavras também não são minhas. São do jornalista Mário Crespo e respondem, também elas, ao cego mental – ou ao crápula absoluto – que saltou em defesa dos bandos de corruptos, pedófilos, ladrões, e vigaristas de todos os calibres que vão delapidando o país e o povo, todos eles contando com a cumplicidade da Justiça ou dos seus mais altos dignitários.

Respondem a esse e a todos os totós que por aí abundam, cúmplices, por omissão, da roubalheira desenfreada em curso, e que apenas sabem dizer, confrontados com estas miserável realidade, que «não há nada a fazer, eles são todos iguais.» Trata-se de uma cretinice chapada, que nada mais significa do que a aceitação bovina de uma realidade vergonhosa, geralmente nascida de afectos partidários ou pessoais. No fundo, a simples confissão da sua condição de castrados militantes.

Entretanto, enquanto sucateiros, banqueiros, políticos e todo um séquito de repugnantes abutres se banqueteiam, o número de desempregados inscritos nos centros de emprego subiu 29,1% em Setembro, em relação ao mesmo mês do ano passado, e aumentou 1,7% face a Agosto, segundo os dados divulgados pelo Instituto de Emprego e Formação Profissional.

Na mesma altura, o Eurostat informou a Europa e o mundo que uma em cada quatro crianças portuguesas vive em condições de pobreza. A incidência de pobreza infantil no nosso país é de 23%. A subida de dois pontos percentuais, num ano, representa mais 43 mil crianças pobres. Apenas 43 mil. Não é muito, se nenhuma delas for da nossa família, não é?

Aos cegos mentais e aos crápulas, nada mais digo.

Mas aos castrados militantes ainda é tempo de esclarecer que, se quiserem, podem voltar a
«tê-los no sítio».

A operação é simples: começa – e termina – por terem vergonha na cara.

(João Carlos Pereira)
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Crónica lida nas “Provocações” da Rádio Baía em 25/11/2009.
Não deixe de ouvir em 98.7 Mhz e participar pelos telefones 212277046 ou 212277047 todas as quartas-feiras entre as 09H00 e as 10H00.

sábado, 21 de novembro de 2009

CHEIRO A DEFUNTO

Vivemos à volta das palavras. Ou melhor: vivemos perdidos no meio das palavras. Mas, tal como li recentemente num livro, não são as palavras que respondem às nossas dúvidas, às perguntas que fazemos; ou que nos fazem. O que responde a tudo são os factos, a realidade, a vida. A vida, em sentido lato, e a vida de cada um de nós.

Tomemos, como exemplo, o caso Face Oculta. Há palavras ditas e gravadas que, para uns, são indiciadoras de práticas ilícitas; de crimes. Para outros, porém, não terão indícios «probatórios que levem à instauração de procedimento criminal», tal como diz o Procurador-Geral da República. Contudo, para uns e para outros, as palavras são as mesmas. Ouviram – ou leram – exactamente a mesma coisa. Estudaram pelos mesmos livros, tiveram os mesmos mestres. Porque razões uns entendem certas palavras como suficientes para abrir investigação, e os outros não?

Aquele que as disse – José Sócrates, em conversas com Armando Vara – garante que é pessoa séria e respeitadora das leis e do Estado de Direito. Afirma que nunca disse ou fez nada de censurável, e que as conversas em causa nada têm de repreensível. Pode pensar-se – e eu penso isso – que José Sócrates nunca poderia dizer outra coisa. É ele que está em causa, defende-se como pode. Diria isso, sendo verdade; diria isso, sendo mentira.

Contudo, olhando para o percurso político e pessoal de José Sócrates, concluiu-se que tem uma tendência natural para fugir à verdade. Pior: para adulterar a verdade. Admitamos, no entanto, que não mente agora no que às suas conversas com Armando Vara respeita, isto é, que nada foi dito por si que aponte para uma violação das leis e, por isso, indicie práticas criminosas, apesar de quase todo o país, face ao ruído criado e ao passado do primeiro-ministro, pensar o contrário. Se assim for, que faria qualquer um de nós, enquanto pessoa que está a ser posta sob suspeita, mas que tem a gigantesca possibilidade de calar os seus detractores, provando que o que se diz é, neste caso, uma enorme e infame cabala?

O que eu faria – e o que faria qualquer pessoa em seu juízo normal – era exigir que as minhas palavras fossem escutadas pelo país inteiro. Aí estava a prova de que eu nada dissera de censurável. Aí estava a prova de que alguém andava a difamar-me. Aí estava a possibilidade de calar, de uma vez por todas, os autores da tal campanha negra. Se Sócrates agisse assim, em vez de se refugiar na tese do pobre inocentinho perseguido por poderes ocultos – sempre e sempre as palavras, sempre e sempre a representação, sempre e sempre a poeira do parlapié – responderia com factos, com a realidade. E de forma inatacável e definitiva.

Mas Sócrates recusa essa possibilidade. Por estupidez? Não acredito que seja por isso. O que eu penso – e creio que toda a gente pensará, mesmo os socretinos encartados – é que o primeiro-ministro não exige a divulgação das conversas com Armando Vara porque elas são altamente comprometedoras. Porque não pode. Ponto final.

Entretanto – e com isso – agrava-se o problema da confiança na Justiça. De tudo isto fica a ideia de que ela está cada vez mais perdida nas ruas da amargura, o mesmo é dizer-se: nas ruas do poder político. Que não há, de facto, independência do poder judicial e – tão mau como isso – que a Justiça é uma para o cidadão comum, e outra para os poderosos.

Socorro-me de palavras (sempre as palavras, não é?) escritas por dois jornalistas, que corroboram o que acabo de dizer. Disse um deles (Carlos Amorim):

«Estou farto de uma Justiça talhada para que a verdade dos factos se perca no emaranhado burocrático dos tribunais. Estou farto das guerras deprimentes entre Noronha do Nascimento (STJ) e Pinto Monteiro (PGR) que só revelam – para além da obsessiva sua cegueira – falta de grandeza humana para as funções tão elevadas que ocupam.

Estou farto de um primeiro-ministro que saltita alegremente por entre casos suspeitos e nauseabundos (licenciatura, Cova da Beira, as casas beirãs, os apartamentos lisboetas, o Freeport, e, agora, a “Face Oculta”). Estou farto do seu tom de mártir improvável, do seu ar postiço de quem é permanentemente injustiçado por todos aqueles que não confiam nas suas pseudo-justificações. No fundo, estou farto desta III República».

Disse o outro (João Coutinho):

«O presidente do Supremo Tribunal anulou e mandou destruir as escutas entre Sócrates e Vara. Infelizmente, Noronha Nascimento não anulou nem destruiu as dúvidas do país sobre o conteúdo dessas escutas.

O problema, longe de ser legal, é agora político: pode um primeiro-ministro sobreviver ao clima de desconfiança que paira sobre ele? Um clima onde “tráfico de influências” e “conspiração contra o Estado de Direito” fazem parte da suspeição? A pergunta responde-se a ela própria: se Sócrates não esclarece coisa alguma; e se o Presidente, junto do PGR, não parece interessado em avaliar a insanidade do regime, pondero seriamente se os jornalistas não deviam fazer serviço público e, caso as tivessem, que publicassem as conversas em falta. Seria um crime? Ainda que fosse, a história ensina que há crimes necessários para evitar crimes maiores».

É altura de dizer que me estou borrifando para José Sócrates – o Zezito para a família, o Sapatilhas, para os amigos da Covilhã, ou o Pinóquio, para a zona mais risonha dos meios políticos – mas não me posso estar borrifando para o primeiro-ministro que governa o meu país, para o senhor Procurador-Geral da República ou para a Justiça, em geral. É que tudo isto que se passa à volta de Sócrates tem reflexos imediatos na minha vida, na nossa vida, no nosso presente e no nosso futuro. Não é um problema de anedotas, de palavras, mas de factos. Quando a bagunça é de tal ordem, todo o país se desmorona. A ideia de que o crime compensa – e que é, aliás, a única maneira de subir na vida – alastra e infecta a sociedade no seu todo. Conviver com a corrupção e aceitá-la como uma fatalidade, depaupera a moral e os cofres do Estado, minando irremediavelmente a economia.

«O país está a saque» é a expressão que por aí volta a ouvir-se, acompanhada pelo inevitável encolher de ombros. Os valores baixam, a esperança de que Portugal seja um país decente e viável diminui dia após dia, ninguém se mobiliza para objectivos comuns, porque sabe que o resultado de qualquer esforço vai encher bolsos já cheios e alimentar os circuitos de uma corrupção galopante e desenfreada.

De facto, o país desfaz-se num clima de desbragamento sem remissão, porque o exemplo vem de cima. Políticos, banqueiros, empresários (mesmo sucateiros) tratam da sua vida como se fossem donos absolutos da nação, confiantes numa Justiça adaptada aos seus interesses e, por isso, incapaz de cortar a direito.

Em Belém, Cavaco assiste impávido a tudo isto, sujeitando-se a que o país pense que está – como Sampaio esteve – à espera que o seu partido dê sinais de estabilidade para partir a loiça. Se assim é, será colocar a estratégia e os interesses partidários à frente dos interesses nacionais.

Sócrates, como político, entrou em coma. Resiste ainda, porque está ligado à máquina dos interesses partidários e económicos – enfim, da conjuntura política actual. Respira, porque está ventilado, mas já cheira a defunto. Já fede.

O problema – volto a dizê-lo – é que esse cheiro sufoca o país inteiro.


(João Carlos Pereira)

Crónica lida nas “Provocações” da Rádio Baía em 18/11/2009. Não deixe de ouvir em 98.7 Mhz e participar pelos telefones 212277046 ou 212277047 todas as quartas-feiras entre as 09H00 e as 10H00.

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

REABRIU O CIRCO LUSITANO

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Começo por transcrever dois significativos comentários colocados no blogue "cronicasdoseixal" onde as minhas Provocações das quartas-feiras, na Rádio Baía, são publicadas.
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Diz um:

«A corrupção é essencial aos negócios do Estado. Nada funcionava neste país se não se pagasse por debaixo da mesa. Tudo está organizado e elaborado, incluindo os orçamentos públicos e privados, para o dinheiro vivo que é necessário pagar em pesados envelopes. Não teríamos sequer políticos nem partidos políticos, porque eles são pagos e financiados pelos dinheiros da corrupção. Isto vale para as obras e compras do poder central, para as obras e compras do poder local, para os negócios privados, para a mais simples obra ou compra. Para o excelentíssimo senhor administrador da maior empresa pública ou privada, para o senhor empregado do Fisco, para o senhor ministro, para o senhor presidente da autarquia e respectivos vereadores (especialmente os do urbanismo) esforçados técnicos, assessores, conselheiros e adjuntos e, como não podia deixar de ser, para o senhor José da Silva, reles fiscal da mais insignificante autarquia. Porque ou há moralidade, ou comem todos.
Sem falar, obviamente, na mais colorida e doce corrupção, normalmente vestida de azul e branco, e cuja moeda é o chocolate, as viagens ao Brasil, favores de prostitutas e outros mimos semelhantes.
Viva a corrupção! VIVA!
Viva Portugal corrupto e dinâmico! VIVA!
Viva a degeneração absoluta! VIVA!»


Se a cáustica ironia deste comentário é evidente, não é menos verdade que retrata uma realidade cada vez mais palpável, tal o à-vontade – descaramento nascido da impunidade, direi eu – com que se corrompe e se é corrompido. Quase se pode dizer que o fenómeno, de tão corriqueiro, já se transformou num método legítimo, inerente à actividade económica no seu todo. Ou seja: a corrupção existe, de facto, a um nível tão generalizado e impune, que é como se também já existisse de jure. Com cobertura legal. E porque Portugal perdeu a vergonha, talvez já não falte muito.

Lembro-me, a propósito, do que aconteceu aqui há uns anos com a despenalização do consumo de drogas. Incapazes – ou não querendo ser capazes – de lidarem com o fenómeno do tráfico e consumo, os nossos queridos governantes fizeram passar a mensagem que a melhor maneira de combater o tráfico era deixar os consumidores em paz, levando-os ao tratamento em vez de os levar à cadeia, como se as duas coisa fossem incompatíveis. Disse, na altura, que a vida provaria que se tratava de uma medida facilitadora do consumo e, consequentemente, do tráfico. Em consequência, aumentou o número de consumidores e, embora os preços tenham descido ligeiramente, aumentou o tráfico e o lucro dos traficantes. Mas, o que é dramático, aumentaram as mortes devido ao uso de drogas. E não foi pouco, já que dados recentemente divulgados pelo Observatório Europeu da Droga e da Toxicodependência revelam que as mortes provocadas pela droga subiram 45% em Portugal, só nos anos de 2006 e 2007. Sem orgulho, verifico que a razão estava do meu lado.

Se não me engano – e seguindo o raciocínio que liberalizou o consumo de drogas – um dia destes as brilhantes mentes que dirigem Portugal ainda nos vão dizer que a melhor maneira de combater a corrupção será, precisamente, legalizá-la. Tudo rolará sobre esferas ainda mais lubrificadas e, acima de tudo, a classe política e os grandes empresários deixarão de correr o risco de malhar com os ossos na prisão, que na realidade já é o mínimo, ou de verem o seu nome na praça pública. Medida justíssima, pois, como todos sabemos, o que os senhores políticos e os senhores empresários querem, coitados, é só – e apenas – o desenvolvimento do país. E isso tem um preço.

O outro comentário dizia apenas isto:

«As crónicas do senhor João Pereira têm dois defeitos. Não dão para discutir, porque se limitam a relatar factos e a recordar verdades antigas ou actuais. E não agradam a ninguém, porque todos os que andam metidos na política, de uma maneira geral, se sentem retratados nelas. O meu caro senhor assim não faz amigos».

Igualmente irónico, este leitor, parecendo criticar-me, faz-me um rasgado elogio. Tenho o «defeito» de dizer verdades indiscutíveis, a que acresce o «defeito» de não agradar aos políticos. Logo, não faço amigos entre aqueles que as minhas palavras atingem. Ou seja: faço por aí inimigos em barda, especialmente entre os que fazem da política um modo de vida e, por arrastamento, entre aqueles que são indefectíveis dos políticos ou das políticas que eu costumo visar. Mas como só digo verdades, é para esse lado que eu durmo melhor. Aliás, sentir-me-ia desonrado se certa gentinha que por aí se amanha à conta da política – o mesmo é dizer: com dinheiro sugado aos nossos bolsos – estivesse no rol dos meus amigos ou das pessoas que me estimam. Assim é que eu estou bem.

Entretanto, reabriu o Grande Circo Nacional. Sem os animais ferozes, porque o governo acha que é uma barbaridade usar animais selvagens nas condições que os circos oferecem, embora ache – porque não legisla para o evitar – que não é uma barbaridade andar a exaurir um toiro numa arena e espetar-lhe ferros até o sangue jorrar – ou abatê-lo à estocada, como em Barrancos – só para gáudio daqueles que se excitam com os resquícios da barbárie que ainda os habita. Mas, desculpem-me… parece-me que me perdi. O que eu queria dizer é que reabriu a Assembleia da República, sem o animal feroz da maioria absoluta, mas ainda com o mestre-de-cerimónias enfatuado e convencido de si que, todo empinocado no seu Armani, lá vai esclarecendo os indígenas sobre as bondades das suas políticas.

Mas o que vimos e ouvimos durante os debates? Se foi circo, foi do pior. Se foi farsa, não deu para rir. O que foi, então? Uma desgraçada reposição do espectáculo do costume, com as mesmas frases, as mesmas tiradas, as mesmas rábulas, os mesmos tiques, os mesmos actores – ou muito parecidos – enfim, uma deslavada e saturante liturgia, que se repete sempre e sempre, como se ali estivesse a ser discutido e decidido o futuro de todos nós. Do país.

Meus amigos, ali não se resolve nada. Ali só se representa um espectáculo indecoroso e caro, onde os actores repetem vezes sem conta os seus papéis, enquanto cá fora, no mundo real, a tragédia que é a vida de muitos milhões de portugueses continua a decorrer, com sangue a sério, com lágrimas a sério, com suor a sério, sem Armanis, sem águas de colónia caríssimas, sem gravatas de seda, sem senhas de presença, sem bons ordenados e reformas rápidas e nutridas, sem ar condicionado e cadeirões estufados, sem esperança e sem futuro.

Se na Assembleia da República se resolvesse alguma coisa, Portugal não seria o país atrasado que é, o desemprego não bateria recordes atrás de recordes, os baixos salários e reformas não seriam o único suporte da economia, o trabalho precário e mal pago não seria a norma, a economia não estaria de rastos, a justiça e a educação não seriam a anedota que são, os ricos não parariam de enriquecer e os pobres não parariam de aumentar em número e em pobreza. Se na Assembleia da República só tivessem lugar portugueses sérios e dedicados ao seu país – em vez de lá se sentarem, maioritariamente, portugueses chicos-espertos e dedicados, apenas, à sua vidinha e aos seus partidos – Portugal seria um país mais desenvolvido, justo e respeitável, em vez de ser uma coisa indecifrável pendurada na cauda da Europa.

Mas aí, meus amigos, voltamos sempre à mesma conversa. Eles estão lá porque alguém votou neles.

Eu estou inocente, de mãos e consciência limpas. Por isso, como disse aquele leitor, não faço amigos entre essa gente.

Nem quero.

(João Carlos Pereira)


Crónica lida nas “Provocações” da Rádio Baía em 11/11/2009. Não deixe de ouvir em 98.7 Mhz e participar pelos telefones 212277046 ou 212277047 todas as quartas-feiras entre as 09H00 e as 10H00.


quarta-feira, 4 de novembro de 2009

POLVO À PORTUGUESA

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Quem me ouve – ou quem me lê – sabe que esta não é a primeira vez que toco no nome de Armando Vara, essa eminência parda do Partido Socialista, que antes de se meter na vida política era um obscuro empregadito bancário, exercendo as funções de caixa num balcão perdido da Caixa Geral de Depósitos, em Trás-os-Montes.

Homem desde há muito ligado a Sócrates, foi sócio deste, da senhora dona Fátima Felgueiras e de um certo Sobral de Sousa, numa empresa chamada Sovenco – Sociedade de Vendas de Combustíveis, Lda., que havia de estoirar após uma vida curta e atribulada. Sócrates teve o cuidado de riscar do seu currículo esta fase empresarial da sua vida, talvez porque os seus três sócios acabaram a contas com a justiça, sendo de destacar os quatro anos de prisão, com pena suspensa, que Vara já tem no seu interessante cadastro. Tudo boa gente, no entanto. Percebe-se, por isso, o cuidado de Sócrates em apagar a Sovenco da sua vida; para ter trapalhadas, dispensa a boleia de certos camaradas…

Para além desta fase bem escondida da sua vida, Vara ficou famoso por duas coisas. A primeira, foi quando participou solidariamente, como moço de recados do PS, no buzinão da Ponte 25 de Abril, no tempo de Cavaco Silva, embora depois os governos do PS viessem a manter as portagens e a permitir que este imposto medieval pago pelas populações da Margem Sul para acederem a Lisboa, sem que tenham alternativas gratuitas – só se for a nado – todos os anos seja agravado. Sem esquecer que o ditador Salazar, quando construiu a ponte e instituiu as portagens, garantiu ao país que elas acabariam mal a obra estivesse paga. E cumpriria, sem dúvida. A segunda, foi quando estoirou a bronca da famigerada Fundação para a Prevenção e Segurança, que nada mais era que um descabelado e desavergonhado meio de desviar dinheiros públicos para fins partidários e pessoais, para além de dar sustento a firmas, familiares e amigos da caterva socialista.

Quando Jorge Sampaio, perante a enormidade da desvergonha, impôs a Guterres a saída imediata de Vara do governo, o rapaz não regressou às suas funções originais na Caixa Geral de Depósitos, como seria normal. Acabado o exercício dos cargos públicos, volta-se ao que se tinha antes, mandam assim as boas regras da decência e do princípio sagrado de que não se deve tirar vantagens sociais, económicas ou de outra natureza, dos cargos exercidos voluntariamente e com alto sentido de missão, como, aliás, não se cansam de afirmar. Coitados, os sacrifícios que eles fazem a bem da nação…

Nada disso. Sua excelência foi reintegrado na Caixa Geral de Depósitos, mas como director-adjunto, passando, sem o mínimo de escrúpulos, por cima de trabalhadores mais antigos e mais habilitados para a função. Mas como um ex-ministro tem, como sabemos, direitos divinos (mesmo sendo laico, republicano, democrata e, ainda por cima, «socialista»), rapidamente passou a administrador, talvez porque, entretanto, havia conseguido obter um precioso diploma que lhe conferia uma licenciatura em Relações Internacionais. Não preciso de vos dizer onde a licenciatura foi obtida, a menos que insistam comigo. Ah! Querem que diga? Então, lá vai: foi na UNI, precisamente. Foi na mesma virtuosa universidade privada que licenciou Sócrates a um domingo, e onde a rapaziada socialista arranjava canudos num vê-se-te-avias. A quatrocentos contos a unidade.

Passado uns tempos – e com a bronca de Jardim Gonçalves e outros impolutos banqueiros do Millenium BCP – aí está o nosso ilustre ex-caixa da Caixa Geral de Depósitos e ex-ministro corrido por indecente e má figura, a ser guindado, por indiscutível mérito próprio, dados os seus comprovados conhecimentos na manipulação de notas, moedas, cheques, outros valores e coisas afins, a vice-presidente do maior banco privado português. Uma boa escolha, pois há que aproveitar ao máximo as capacidades de cada um, e Vara já tinha mostrado, sem margem para dúvidas, do que era capaz. Currículo não lhe faltava.

Mas eis que, de repente – e sem que nada o fizesse esperar – Vara é suspeito de estar metido numa grande embrulhada, falando-se em corrupção da grossa, subornos e grandes prejuízos para o erário público. Milhões andaram por aí, passando por debaixo da mesa, beneficiando gente gorda e de muito bom-nome e, em contrapartida, lesando o Estado e lixando ainda mais a nossa vida. Depois do Millenium, do BPN, do BPP, dos submarinos, dos sobreiros da Portucale, do Freeport, da Operação Furacão e de tanta embrulhada do género, aí está a Face Oculta, implicando, outra vez, gente de bago e da política, em amoroso conluio.

«Tanta vez o cântaro vai à fonte, que um dia deixa lá a asa», dizem uns, esperando que, desta vez, a justiça corte a direito, depressa e bem. «Mais uma cabala, mais uma campanha negra», garantem outros, os crentes nas virtudes imaculadas do PS, de Sócrates e da sua gente. Entretanto, uma senhora magistrada, de quem também já falei várias vezes, chamada Cândida Almeida, já foi entrevistada pela comunicação social a este propósito, e não disse nada que se entendesse. Não sei se ainda estão lembrados, mas recordo que a senhora é uma socialista dos quatro costados, várias vezes fotografada aos abraços e aos beijinhos a figuras gradas do PS, e foi ela que afirmou, sem se rir, que não tinha visto o vídeo onde Charles Smith chamava, também sem se rir nem hesitar, corrupto a Sócrates. E acrescentou. «Não vi, nem estou interessada em ver». O pior, foi que a Moura Guedes mostrou – e nós vimos e percebemos. Bem… mas a Moura Guedes também já percebeu que quem se mete com o PS, experimenta a força dos tentáculos do polvo. «Quem se mete com o PS, leva!», vociferava, com a sua habitual subtileza, Jorge Coelho, outro ilustre nome da família. Ora aí está cumprida a profecia.

Para que as coisas se esclareçam, que é o que eu quero, seria bom, no meu curto entender, que a senhora magistrada se afastasse de tudo o que meter gente do PS – e não é pouco. Em nome da transparência e dos bons costumes. Não é por nada, é só por causa daquela história da mulher de César. E também porque uma pessoa não é de ferro. Ao ritmo a que estalam por aí broncas envolvendo rapaziada socialista – socialista, salvo seja; rapaziada do PS – a senhora magistrada pode, a manter-se o ritmo até hoje verificado, apanhar um esgotamento. O passado dá-nos uma ideia do que pode ser o futuro. Abílio Curto, Melancia, Fátima Felgueiras, Sócrates, Pedroso, Mesquita Machado, Vara, Jorge Ritto, Alberto Costa (o de Macau, e que foi ministro da Justiça durante o último governo), Lopes da Mota, ou Luís Monterroso, por exemplo, são nomes que, por isto ou por aquilo, com condenações ou sem elas, constituídos arguidos, ou disso se safando, enfim, assim ou assado, deram – ou estão a dar – que fazer às autoridades e muito que pensar ao povo.

Falando de corrupção, subornos e luvas brancas, com ou sem faces ocultas, acentua-se a convicção geral de que o caso Freeport só vai bater na arraia-miúda, caso haja alguma, o que é discutível. Tal como o caso Casa Pia. No caso Freeport, dois dos implicados disseram aos investigadores que houve pagamento de luvas a políticos, mas nenhum deles assumiu esse facto formalmente nos autos, com medo de represálias através de eventuais processos por difamação. Não vá «levarem» também.

Também a assessora de Manuel Pedro, outro dos arguidos com ligações ao PS, disse que assistiu à destruição de provas informáticas, e que em 2004, durante o processo de licenciamento, houve pagamento de avultadas comissões, tendo ouvido várias conversas que confirmam essa tese, recordando mesmo uma delas, entre Manuel Pedro e João Cabral, este com ligações à empresa Freeport, em que era dito ao segundo para «se desenrascar». Aí, a comissão falada era de 400 mil euros, a que acresciam cem mil euros, que não conseguiu precisar a quem se destinavam. Falhou aí a memória da senhora, coitada, não fosse também «levar».

Veremos, agora, no que vai dar a Face Oculta, sabendo nós que o polvo existe e tem tentáculos poderosos. Tal como noutros casos, os investigadores podem ser afastados, os juízes mudados, enfim, podem ser usadas as mil ventosas que prendem a verdade e as forças tentaculares que esmagam e deformam a justiça.

Afinal… todos os dias comemos Polvo à Portuguesa. E parece que gostamos.

Olhem, meus amigos. A mim, dá-me vómitos.

(João Carlos Pereira)

Crónica lida nas “Provocações” da Rádio Baía em 04/11/2009.
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