A Democracia é o reino dos democratas. Está estruturada em feudos (vulgo: partidos), que se subdividem em três grupos, ou extractos: os Senhores, os Pajens e os Apaniguados – ou Devotos, dado que só servem para votar e dizer amém.
Os Senhores de cada feudo decidem, dizem, desdizem, põem e contrapõem. Repartem entre si os fundos e os proveitos, também chamados saque, ou despojos. Periodicamente, disputam com os Senhores dos outros feudos o direito a ocupar o trono real por um período de quatro anos. O vencedor pode governar todo o Reino como se do seu próprio feudo se tratasse.
Os Pajens servem fielmente os Senhores, a troco de razoável paga em dinheiro e em espécie, podendo, se os préstimos forem excelentes, aceder à categoria de Pajem-Delfim (ou Boy), de onde, sendo suficientemente espertos e isentos de escrúpulos, será apenas um pulinho até ao topo senhorial.
O Apaniguado, ou Devoto, limita-se a votar no respectivo Senhor e a manifestar, de forma mais ou menos explícita – ou seja; com maior ou menor gritaria – o seu apoio à casa senhorial. De nada mais sabe, nem quer saber. É muito disputado pelos Senhores, dada a sua excelente capacidade de não pensar – ou de não ter capacidades cognitivas – quer porque os seus neurónios são poucos e de má qualidade, quer porque foram neutralizados por conteúdos difundidos via media, tipo Casa dos Segredos, Agora é que Conta, Ídolos, telenovelas quanto baste, futebol e sessões de lavagem cerebral levadas a cabo pelos postilhões de cada feudo. O Apaniguado repete slogans, e com isso se satisfaz. Exulta, se o seu Senhor ocupar o trono. Deprime-se, se o não conseguir. Para ele, o seu Senhor governa sempre bem. Já o Senhor alheio é sempre um governante nefasto. O Apaniguado é, nos tempos que correm, o mais perfeito paradigma do indivíduo acéfalo, isto é, do cidadão exemplar, que serve para trabalhar, pagar imposto e ver televisão. Em termos de argumentação, está habilitado a dizer a única coisa que conseguiu aprender: «Estes podem não prestar, mas os outros são iguais…». Que se saiba, é raro um Apaniguado conseguir concluir que todos os Senhores, incluindo o seu, são predadores naturais da espécie humana.
Embora os diversos feudos se confrontem pela conquista do trono, estabeleceram pactos e normas que conferem direitos inalienáveis a todos os Senhores e respectivos séquitos, pelo que dispõem, ao abrigo das leis (por si – e para isso – elaboradas), de pecúlios – bens e aforros – vedados aos entes comuns. Isto é: os Senhores podem apropriar-se das riquezas do reino praticamente sem limitações. Mesmo em caso de manifesto abuso ou desaforada ilegalidade, estão protegidos por um estatuto de impunidade que manieta a Justiça, sempre célere e eficaz quando o prevaricador é o vulgar cidadão, incluindo os Apaniguados, ou Devotos.
Existe um grupo heterogéneo de cidadãos que não se integram nesta estrutura política e social, embora também trabalhem e paguem impostos. São, no geral, considerados párias, irresponsáveis, obtusos e – porque não participam nas pugnas pelo trono – são tidos como culpados por qualquer coisa que corra menos bem. Ou muito mal. Ou pessimamente.
Apesar de laica, a Democracia obedece a um poder superior, cujo nome não gera consensos. Para uns, é a Economia de Mercado; para outros, é o Poder Económico, ou Capital Financeiro; há quem diga, como os Apaniguados, que «é a vida, o que é que se há-de fazer?».
E assim vai o reino dos Democratas…
(João Carlos Pereira)
Crónica lida nas “Provocações” da Rádio Baía em 26/01/2011.
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