quarta-feira, 31 de março de 2010

UM CERTO CHEIRO A BAFIO


O Libération (jornal diário francês liberal de esquerda) não saiu em Portugal na quinta-feira, 18 Março, devido a «problemas de impressão». Foi isto o que constou. Contudo, se dermos uma vista de olhos pelo seu conteúdo, ficamos a saber que «problemas de impressão» terão sido esses. De facto, ao lermos a edição francesa do Libération deparamos com este sugestivo título: José Sócrates, o português atolado. E o artigo abre assim: «Nada corre bem ao primeiro-ministro socialista, cujo nome é associado a casos de corrupção, tendo por fundo uma enorme crise económica».

E vale a pena transcrever a parte inicial do texto:

«A inimizade de uma boa parte da comunicação social, uma crise política que se encaminha para o impasse institucional, uma situação social explosiva, um fiasco económico que obriga a medidas drásticas a breve prazo. Como se isto não bastasse, o destemperado José Sócrates (reeleito sem entusiasmo nas legislativas de Setembro de 2009), vai agora enfrentar um inquérito parlamentar que pode levá-lo à demissão ou forç
ar a sua família socialista a encontra-lhe um sucessor à frente do governo.

Começam hoje, em Lisboa, os trabalhos de uma comissão de inquérito parlamentar que, pela primeira vez depois do fim da ditadura de Salazar, implicam directamente um primeiro-ministro. E vai constrangê-lo a responder pessoalmente ou, na melhor das hipóteses, por escrito. “Portugal é um barco à deriva, do qual o ca
pitão é o mais suspeito de toda a tripulação”, escreveu um jornalista do canal privado SIC.

Segundo os economistas, de todos os países com a corda na garganta, Portugal é certamente o elo mais fraco. Mais ainda que a Grécia, o pequeno país ibérico sofre de males estruturais, de exportações anedóticas, de uma dívida externa recorde e de um défice público de 9,3%. Bruxelas espera de Lisboa medidas concretas para respeit
ar o “plano de austeridade” com o qual José Sócrates se comprometeu… Mas Sócrates está fragilizado pelos seus problemas político/judiciários».

Depois, vem a descrição dos casos que já sabemos, especialmente de tudo o que se prende com o processo Face Oculta, e que já não vale a pena
aqui reproduzir. Aliás, se traduzimos parte do artigo, da autoria do jornalista François Musseau, é apenas para que se perceba que os alegados «problemas de impressão» não foram mais que uma forma disfarçada de censura. Uma habilidade à boa maneira dos velhos tempos do senhor António. Não se trata, é claro, de fascismo puro e duro, mas que uns certos laivos dessa coisa já por aí se notam, não tenho a menor dúvida. E que veste de cor-de-rosa, com certeza. Absoluta.

Dado que tinha pensado dedicar esta crónica de hoje
à questão da Liberdade, até porque se aproxima mais um aniversário do 25 de Abril, os «problemas de impressão» do Libération não podiam vir mais a propósito.

E começo pelo princípio. O que é a Liberdade? Dizem os dicionários que «é a faculdade de uma pessoa se determinar por si própria sem ser coagida na sua decisão», salvaguardando, no entanto, que ela não pode significar o prejuízo dos direitos dos outros. Isto é: a Liberdade não é fazer tudo o que nos apetece ou agrada, mas sim o que é
necessário para, sob o ponto de vista da justiça e da moral, vivermos com dignidade e respeito numa sociedade que preze a vida humana em toda a sua plenitude.

Liberdade é a ausência de submissão ou servidão, é a autonomia de um ser racional. Não é um conceito abstracto, muito menos é algo que exista separadamente da própria condição humana. O querer ser livre é a força motriz que nos impele a agir, seja na
busca elementar do sustento, seja na busca última da felicidade e da satisfação.

Não é livre, por isso, um homem a quem a sociedade retira ou restringe o direito ao trabalho, à habitação, à saúde e à educação. Não são livres os homens que vivem numa sociedade estruturada de maneira a que a riqueza por todos produzida seja distribuída de maneira desigual pelos seus membros, principalmente se forem aqueles que efectivamente a produzem (os assalariados dos sectores agrícola, das pescas, da indústria extractiva e de transformação, os trabalhadores dos serviços, enfim, todos os que vendem a sua força de trabalho, sem a qual nada se produziria) os que menos recebem – quando recebe
m.

Não é livre um homem que se vê atirado para uma
situação de carência extrema, a pretexto de uma conjuntura económica desfavorável, se sempre cumpriu os seus deveres para com a sociedade e não pode ser responsabilizado pelos problemas económicos existentes.

Não é livre nem justa uma sociedade onde o poder político e o poder económico reservam para si o direito de impor sacrifícios aos restantes cidadãos, a pretexto de uma crise de que são, exclusivamente, os únicos autores.

É, por isso mesmo, uma perigosa ilusão pensar-se
que vivemos em liberdade. Para mais de setecentos mil portugueses, não existe a liberdade de trabalhar e sustentar as suas famílias. Para centenas de milhares de portugueses não existe a liberdade de poder, sequer, constituir família e construir o seu futuro em plena autonomia. Para milhares de doentes não existe a liberdade de comprar o medicamente necessário ou ser sujeito, em tempo útil, à operação indispensável.

Enquanto isto, os políticos e os detentores dos principais meios de produção, os senhores da alta finança e respectivos séquitos banqueteiam-se s
em o mínimo de pudor ou contenção, e apresentam a factura – desta vez chamada PEC – aos pagantes do costume.

Quase 36 anos depois do 25 de Abril, o acesso ao
Trabalho e a uma remuneração digna, o acesso à Educação e à Cultura, o acesso à Justiça, o acesso à Saúde e, em suma, o direito a uma vida digna e feliz estão fora dos horizontes da maioria dos portugueses. Não chamo a isto Liberdade.

E quando se manobra para impedir que as vítimas desta democracia falsificada tenham acesso à informação – como o caso do Libération inequivo
camente atesta – é porque, 36 anos depois da queda da ditadura, muitos dos seus tiques ainda por aí andam à solta.

Pois é: dos sovacos do Armani solta-se um pestilento cheiro a bafio.

(João Carlos Pereira)

Crónica lida nas “Provocações” da Rádio Baía em 31/03/2010.
Não deixe de ouvir em 98.7 Mhz e participar pelos telefones 212277046 ou 212277047 todas as quartas-feiras entre as 09H00 e as 10H00.

quarta-feira, 24 de março de 2010

A PETA DO PEC



Foram os trabalhadores portugueses – que são dos mais mal pagos da Europa – que provocaram a crise e, consequentemente, o défice?


Foram os reformados portugueses – com as suas pensões miseráveis – que provocaram a crise e, por arrastamento, o défice?


Foram os desempregados portugueses – com os seus subsídios de fome – que provocaram a crise e, naturalmente, o défice?


Foram os estudantes portugueses – que pagam propinas e livros caríssimos – que provocaram a crise e, logicamente, o défice?


Foram os trabalhadores com salários em atraso que provocaram a crise e, obviamente, o défice?


Foram os doentes à espera de uma consulta, de um exame clínico ou de uma operação, que provocaram a crise e, evidentemente, o défice?


Foi a população em geral, que paga os seus impostos e não beneficia de perdões nem de isenções fiscais, como as grandes fortunas e os espertos dos offshores, que provocou a crise e, por isso, o défice?


Se houver alguém que responda que sim a qualquer destas perguntas – e desculpem-me a franqueza – só pode ser um indigente mental absoluto ou um dos muitos vampiros que por aí vão comendo tudo e não deixam nada.


Então, quem fez a crise e provocou o défice? O menino Jesus? A virgem Maria? Deus, Alá, ou outra qualquer divindade? O diabo? Vários diabos juntos? A mãe Natureza, farta de ser agredida pela estupidez humana?


Não. Não me parece que fosse qualquer divindade, muito menos a mãe Natureza que, apesar de tudo, ainda é quem nos vale. Eu sei que a crise foi produzida pelos senhores que têm nas mãos o sistema económico, ou seja, o capital financeiro – há quem lhes chame, simplesmente, capitalistas – e, naturalmente, pelos senhores políticos, seus fiéis servidores. A crise foi obra, por acção ou omissão, dos homens que mandam na economia, e não obra de quem trabalha para ter o seu pão de cada dia. Ponto final, parágrafo.


A crise portuguesa já existia antes da crise internacional – e vai continuar a existir, de forma agravada, depois dela. Tem as mesmas causas, porque é filha do mesmo sistema, mas é ampliada pela falta de competência, honestidade e pela ganância desenfreada da casta financeira e política que tomou conta do país – e o saqueia.


Digo, sem medo de desmentido, que o défice é a desculpa e o PEC a ferramenta para agravar as condições de vida dos portugueses que vivem do seu trabalho. Para lhes retirar o que foram conquistando ao longo dos anos – e que é seu por direito. Virá o tempo em que as férias pagas e os subsídios de Natal e de férias serão considerados direitos abusivos dos trabalhadores, um exagero, exigindo-se o seu fim em nome do défice e da saúde da economia. Tal como o horário de oito horas e o descanso semanal. Pouco a pouco, voltar-se-á ao trabalho de sol a sol. A idade da reforma subirá até aos limites da resistência física de cada um, o mesmo é dizer: trabalharás até ao dia em que morreres. Se tiveres trabalho, receberás o que o teu patrão quiser – se quiser – e não terás horários fixos nem funções definidas. Serás pau para toda a obra. Dir-te-ão que o direito ao trabalho – e o trabalho com direitos – são coisas do passado, impróprias de países modernos e civilizados. Serás obrigado a sujeitar-te a todas as exigências se quiseres levar o pão à tua boca e às dos teus filhos. Filhos, aliás, passarão a ser coisas de luxo, e terás que pensar muito bem antes de te atreveres a trazer alguém a este mundo. Tudo te será negado em nome da saúde da economia e do controlo do défice. Ou do que inventarem em substituição destas patranhas, quando elas já não assustarem ninguém. Lembro-te – se já te esqueceste – que muito antes de se falar em crise já aí estava o Código do Trabalho a abrir caminho à sangria que o PEC quer agora continuar.


Tudo isto acontece enquanto nas empresas públicas e privadas um bando de nababos nada na piscina dos bem-aventurados. Ou são antigos ministros e secretários de Estado, que assim recebem a paga pelos bons serviços prestados, ou são boys e girls que o cartão partidário guindou a altos e bem remunerados cargos, ou são comissários políticos cuja principal missão é cuidar dos sacos azuis e do financiamento partidário, enfim toda uma matula de sanguessugas e vampiros vivendo à conta da riqueza produzida por quem realmente trabalha. E enquanto o PEC te retira poder de compra, eles têm ordenados, prémios, ajudas de custo, carro às ordens e reformas rápidas e suculentas. E várias.


Aqui chegados, uma pergunta se impõe: mas não será importante equilibrar as contas públicas e estruturar a economia, de maneira a que se produza mais e melhor? A resposta é simples: sim, é importante. O problema é que não será com o PEC que isso sucederá. Primeiro, porque o PEC não promoverá a criação de mais riqueza; segundo, porque – em vez disso – assenta na redução do investimento; terceiro, porque agravará as desigualdades sociais, dando origem a conflitos de vária ordem e, consequentemente, a um clima de descontentamento e instabilidade que se reflectirá no próprio desempenho económico; quarto, porque as receitas fiscais diminuirão, fruto de uma quebra acentuada na procura, já que o poder de compra dos trabalhadores será drasticamente reduzido; quinto, porque ao prever a privatização de vária empresas públicas, vai delapidar o país de sectores estratégicos importantes para o seu desenvolvimento económico, trazendo, por acréscimo, um aumento imediato dos preços dos bens e serviços que essas empresas oferecem.


A economia reanima-se e o défice diminui com mais trabalho, melhores salários – o que trará mais poder de compra – mais e melhor segurança social e, decorrendo de tudo isto, a certeza de que do esforço colectivo resultarão benefícios para todos. Ou seja, uma repartição da riqueza equilibrada e justa, que mobilize e estimule os trabalhadores na obtenção de objectivos cada vez mais ambiciosos, certos que do seu esforço colherão os devidos benefícios, ao invés do que acontece agora.


Mas isso não se consegue com as políticas de Sócrates e comandita, cujo único objectivo é salvaguardar os interesses do grande capital financeiro à custa de uma exploração desenfreada das classes trabalhadoras e dos reformados. Pelo meio, algumas dúzias de boys e girls, vão-se amanhando enquanto podem, facilitando negócios, traficando influências, vendendo ao desbarato – saqueando, afinal – o que resta do país.


E de crise em crise lá vamos. Dantes, cantando e rindo; agora, entretidos com futebol e telenovelas, com telemóveis e outras maravilhas informáticas.


E comprando, semanalmente, a ilusão da felicidade através do euromilhões.



(João Carlos Pereira)


Crónica lida nas “Provocações” da Rádio Baía em 24/03/2010.

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quarta-feira, 17 de março de 2010

OS VAMPIROS DE HOJE

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Se este programa não tivesse outro mérito, teria o de, sem qualquer dúvida, atiçar o ódio dos bem instalados nesta espécie de democracia em curso – neste feudalismo do século XXI, conforme costumo chamar-lhe – que mais não é, afinal, que a ditadura do poder económico sobre os trabalhadores. Atiça, também, o ódio dos apoiantes do actual governo, mesmo que mal instalados na vida e, por isso mesmo, vítimas das políticas que lhes vão aos bolsos todos os dias. Coitados, sem perceberem que pertencem à classe dos explorados, sofrem de dois défices ao mesmo tempo: sofrem o défice das contas públicas, já que também o pagam com língua de palmo, e sofrem de défice mental, pois são incapazes de perceber o que lhes está a cair em cima. E até batem palmas. Coisa triste de se ver, mas a manipulação ideológica gera criaturas assim. E as arreatas partidárias também.


Mais finórios, os bem instalados tentam lançar poeira para os olhos da populaça. Como as coisas estão é que estão bem – e estão para durar – afiançam. De resto, dizem eles, é assim em quase todo o mundo. A actividade política bem pensante resume-se à existência de dois partidos – um mais à direita, outro menos à direita, mas ambos fiéis ao capitalismo reinante – e tudo o mais são resíduos extremistas sem expressão ou significado. Felizes da vida – ou isso aparentando – dão a sociedade como estática e imutável, e o feudalismo capitalista como coisa a perdurar até à consumação dos séculos. Sabem que não será assim, mas esforçam-se, pregando o conformismo e a subjugação, por adiar qualquer mudança.


Apesar de não serem imbecis de todo, acabam por parecê-lo. Não percebem – ou fingem não perceber – que nenhuma coisa o é para sempre. O mundo pula e avança, como disse o cientista e poeta Mário Gedeão, só não se sabendo quando o pulo e o avanço acontecem com força suficiente para mudar o que está. Aliás, já outro poeta, chamado Luís de Camões, sabia que todo o mundo é composta de mudança, apesar de ter vivido há mais de 500 anos. No fundo, tudo se resume a isto: os poderosos tentam retardar o dia em que o poder mude de mãos, para o que usam todos os meios ao seu alcance, o que vai dar na pura manipulação ideológica até aos actos de guerra; os servos tentam sacudir a canga, conquistar a liberdade plena, o que só é possível com colectivização da economia e o controlo dos meios de produção.


Outra coisa que os pérfidos manhosos desta ordem natural das coisas ignoram soberanamente, é que existem pessoas – milhões de pessoas – que sofrem e morrem porque a política e a economia são exactamente como eles defendem. Para estes sabichões, as pessoas não contam: são coisas passivas, a nível do objecto ou – vá lá – da besta de carga, a quem nenhum assomo de análise, revolta ou contestação é permitido. É aguentar e cara alegre. Falam da economia, das políticas globais e dos grandes partidos, dos tratados internacionais, das conjunturas, das instituições, enfim, falam de tudo menos dos seres humanos.


Padece-se de fome, de carências várias, morre-se de doenças curáveis, vegeta-se ao sabor da vontade dos poderosos? Paciência, é mesmo assim que as coisas são, nada se pode fazer.


O desemprego espalha a angústia e a miséria em milhares de lares, chegando a levar ao suicídio aqueles em quem toda a esperança morreu? Que querem? É a economia, seus ignorantes!


Centenas de milhares de pessoas vivem com a corda na garganta, sem ordenado suficiente e – pior ainda – sabendo que, tarde ou cedo, vão perder o posto de trabalho? E depois? Há mais patrões à espera de mão-de-obra desesperada e, por consequência, barata. Desenrasquem-se!


Já existem mais de dois milhões de pobres declarados, vivendo alguns na mais revoltante miséria? Que importa? Nem todos podem viver bem! Vivemos numa sociedade competitiva, só os mais fortes sobrevivem!


A maioria da população arrasta-se nos caminhos da mera sobrevivência, enquanto alguns senhores arrebanham e acumulam ordenados e pensões sumptuosos, cobertos por leis que eles próprios urdiram, estribados numa abjecta promiscuidade entre o poder político e o poder económico? E que tem isso de mal? A vida está para os espertos, para os que sabem governar-se!


A corrupção alastra, os crimes de colarinho branco desfalcam as empresas e o estado em muitos milhões, enquanto alguns sectores da Justiça assobiam para o lado ou se desunham a branquear o carvão? Qual quê! Isso não passa de pura invenção de frustrados e invejosos! Abafe-se, desminta-se, arquive-se!


A imoralidade instalou-se como norma e instrumento, a criminalidade acompanha a degradação política e social, a bagunça e a irresponsabilidade alastram por todos os quadrantes da sociedade, levando putativos responsáveis a sacudir a água do capote, mesmo quando uma criança se suicide por já não aguentar mais a violência de que era alvo na escola? Coisas que acontecem! Adiante!


Para os finórios defensores deste assim é que está bem, a humanidade não existe. Ou, se existe, não é de carne e osso. Ou se é de carne, é apenas de carne para canhão, seja nas guerras de rapina a sério, com mísseis e bombas sofisticadas, seja nas guerras invisíveis, onde a rapina não é menor e onde as vítimas morrem de morte lenta. O que lhes interessa é que existe o partido A, mais o partido B, que são os grandes partidos da ditadura do capital, e que os partidos C, D e E são pequeninos, portanto siga o baile de acordo com a maioria. A isto querem resumir a questão.


Vem-me à memória o que disse Galileu Galilei quando, em 1633, foi julgado por heresia, pelo Tribunal da Inquisição, e forçado a negar a sua certeza de que a Terra se movia à volta do Sol. Disse ele, baixinho, para os esbirros da santíssima Inquisição não ouvirem: Eppur si muove (No entanto, ela move-se). Também podem os inquisidores de hoje pregar que o mundo será sempre como o suportamos, um mundo injusto, desigual, violento, governado por vampiros que se alimentam do trabalho de milhões de seres humanos, aos quais impõem restrições e sacrifícios permanentes para garantirem, desse modo, a sua opulência, que isso não alterará esta verdade: cada homem tem em si a semente da liberdade e o sentido do que é justo.


O mundo pula e avança... E um dia, bastará um pulo, um avanço quase invisível... e o tempo dos vampiros dará lugar a um mundo melhor.


(João Carlos Pereira)


Crónica lida nas “Provocações” da Rádio Baía em 17/03/2010.

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quarta-feira, 10 de março de 2010

UM CHICOTE CHAMADO DÉFICE

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Já não é a primeira vez que digo – e, certamente, não será a última – que vivemos em regime feudal. Claro que a nota é forçada, mas não tanto como parece. No fundo, o que eu quero dizer é que a sociedade está, tal como estava no tempo do feudalismo, organizada de modo a que uma certa camada social se banqueteie à custa daquilo que os actuais servos produzem. Na Idade Média, período de ouro do regime feudal, a sociedade estruturava-se a partir do poder real (de inspiração divina, como se usava fazer crer), que dividia as terras do seu reino pelos senhores feudais, para que estes as governassem com muito tino e ainda maior proveito. As terras incluíam as populações, que, no essencial, cuidavam da agropecuária dos feudos, recebendo, em troca, um pedaço de terra, da qual sobreviviam. Querendo, o senhor feudal ainda tributava os servos, ficando-lhe com parte dos produtos que estes produziam para a sua subsistência. Qualquer pretexto era bom para o efeito. No fundo, para além de trabalharem duramente, pouco mais restava às populações. Já não eram escravas, mas pouco podiam dispor das suas vidas e dos seus parcos bens. Ou seja: eram escravos de um novo tipo, mais suave, menos desumano.

Nos dias que correm, pode dizer-se que o rei é o poder económico, ao qual, como no tempo do feudalismo, tudo e todos se subordinam. Entre este rei e os servos de hoje está, no lugar dos senhores feudais de antanho, a classe política, cujo principal tarefa é manter os servos submissos e produtivos. Cobra impostos, decreta os direitos e os deveres de cada um, cuida de que o poder instituído não seja posto em causa e, principalmente, gere criteriosamente a distribuição da riqueza produzida pela classe servil, de modo a que esta nunca tenha mais do que o estritamente necessário para sobreviver mas possa – claro está – produzir cada vez mais e melhor.

No tempo do feudalismo, o produto da riqueza que os servos criavam, essencialmente a partir da actividade agropecuária, ia quase todo direitinho para os cofres reais, deduzida a parte (que não era pouca) que permitia aos senhores feudais viverem refasteladamente nos seus faustosos palácios. Nos tempos de hoje, o produto da riqueza produzida pelos trabalhadores, através dos vários sectores produtivos, vai, por via dos lucros alcançados, quase todo direitinho para o bolso dos monarcas do capitalismo que, à semelhança do que fazia a realeza medieval, espalha benesses pela classe política, com a qual não raras vezes se confunde, numa imprópria – mas compreensível – promiscuidade. E qual é a condição essencial para que a classe política beneficie das boas graças dos reizinhos de hoje? Esta: que os políticos sirvam fielmente o poder económico, garantindo, acima de tudo, que este nunca seja posto em causa. E chegámos ao grande dogma: o capitalismo é a base do equilíbrio político, económico e social, já não pela sua ascendência divina, mas pelos ditames de algo ainda mais definitivo e inquestionável: a economia de mercado. Enfim, cada época tem a suas lendas e os seus fetiches. As suas maravilhosas armadilhas.

É verdade que existam diferenças políticas, sociais, culturais e económicas nas actuais relações de produção, de que destaco o facto de serem os servos a escolher os seus senhores feudais. Mas existe aqui, nesta ilusória liberdade de escolha, uma preciosa concepção: são proscritos os que puserem em causa a ordem feudal. Já não pela força, seja ela pelo chicote, masmorra, grilheta ou pelourinho, mas pela manipulação ideológica, a que se junta, sempre que conveniente e necessário, a dose precisa de coação para que o rebanho saiba o que lhe convém. Do género:
Ou nós, ou o caos!

Nesta comparação blasfema entre feudalismo e a ditadura do capital, também conhecida como democracia – espero que os espíritos menos preparados, ou pouco dados a análises que questionem a famosa ordem natural das coisas não me excomunguem – ainda cabe referir uma diferença substancial entre a economia feudal e a economia capitalista. É que no feudalismo tudo girava, em termos económicos, em torno do que a terra dava, ou seja, da produção concreta de bens. Na economia capitalista as coisas são muito mais complicadas e obscuras. A tal ponto, que até se consegue acumular fortunas sem que a isso corresponda qualquer bem produzido, ou seja, sem que a isso corresponda o mínimo de riqueza criada. Chama-se a isto, sem corar, especulação bolsista.

Para os que pensam que eu estou a mentir ou a ser vítima de uma qualquer alucinação, dou-vos um belo exemplo. Há anos, o banco Totta e Açores promoveu um aumento de capital, no âmbito, segundo creio, da venda de parte do seu capital que ainda era público. As acções foram postas à venda por cerca de 1.200$00. Belmiro de Azevedo tinha como objectivo, nessa altura, deter uma maioria de capital suficiente para controlar o banco, pelo que subscreveu alguns milhões de títulos. Concretizada a operação, o magnata verificou que as contas lhe tinham saído furadas, não tendo conseguido os títulos suficientes para engolir do banco. Passados seis meses, resolveu vender as acções que tinha comprado e – milagre dos milagres, que meteu a famosa multiplicação dos pães num chinelo – ganhou com isso vários milhões de contos, pois o que comprara por 1.200$00 vendeu por 3.600$00. Três vezes mais, sem que tenha sido colhida uma batata, produzido um parafuso, pescado um carapau, criado um porco, extraído um grama de minério, fabricado um comprimido ou confeccionado uma camisa. E, como se compreenderá, nem o banco Totta, em seis meses, passou a valer três vezes mais. Pobres alquimistas da Idade Média, que gastaram os neurónios para produzir ouro nas suas retortas e caldeirões, quando a fórmula mágica se chamava, afinal, especulação. E cabe aqui uma pergunta parva: se não foi produzida riqueza – e se Belmiro enriqueceu milhões de contos – quem pagou a factura? Que me respondam os alquimistas do capitalismo.

Agora, El-Rei Dinheiro olhou para os seus cofres e não gostou de que viu. Quer mais, quere-los a deitar por fora. Chamou os senhores feudais ao Paço e ordenou nova colecta. A bem do reino, que se entenda. Ide e colectai. Directa ou indirectamente. Reduzi benefícios, recolhei galinhas, porcos, trigo e centeio. Forçai os servos a mais trabalho e com menos paga. Cuidai que nenhum grão indevido se esconda em nenhum bolso. Homens e mulheres, novos e velhos, sãos e doentes, todos deverão contribuir para a estabilidade do nosso reino, para o conforto das arcas reais, sem o que o próprio reino estará em risco.

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E os servos lá vão, mais uma vez, dobrar a cerviz, convencidos que o que interessa a El-Rei é o que lhes interessa a eles. Os magos e alquimistas da Idade Média, coitados, não passavam de minúculos aprendizes dos grandes feiticeiros de hoje. Mas compreende-se: naquele tempo não havia televisão.

Ah! É verdade. Esqueci-me de falar do défice. Sabem o que é o défice? É aquilo que eles quiserem que seja. Aliás, não importa saber o que é o défice. O que é importante é saber para que serve o défice. Para quem ainda não percebeu, eu explico que o défice é o chicote, a grilheta e o pelourinho dos nossos dias.

Não funciona da mesma maneira, mas o resultado é exactamente o mesmo.
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(João Carlos Pereira)

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Crónica lida nas “Provocações” da Rádio Baía em 10/03/2010.
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domingo, 7 de março de 2010

O último encontro com Lula

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Conheci Lula em Manágua, em Julho de 1980, há trinta anos, durante a comemoração do primeiro aniversário da Revolução Sandinista, graças aos meus contactos com os parceiros da Teologia da Libertação, iniciados no Chile, no ano 1971, quando visitei o presidente Allende.

Graças a Frei Betto sabia quem era Lula, um líder operário no qual os cristãos de esquerda tinham depositado bem cedo as suas esperanças.

Tratava-se de um humilde operário da indústria metalúrgica, que se destacava pela sua inteligência e prestígio entre os sindicatos, na grande nação que emergia das trevas da ditadura militar, imposta pelo império ianque, na década de 60.

As relações do Brasil com Cuba tinham sido excelentes até que o poder dominante no hemisfério fê-las sucumbir. Desde então transcorreram décadas até que lentamente voltaram a ser o que são hoje.

Cada país viveu a sua história. A nossa Pátria suportou inusitadas pressões nas etapas incríveis vividas a partir de 1959, na sua luta perante as agressões do mais poderoso império que jamais tenha existido na história.

Por isso, para nós tem uma enorme transcendência a reunião que se acaba de efectuar em Cancún e a decisão de criar uma Comunidade dos Estados da América Latina e do Caribe. Nenhum outro facto institucional do nosso hemisfério, durante o último século, encerra semelhante transcendência.

O acordo atinge-se no meio da mais grave crise económica que tenha havido no mundo globalizado, coincidindo com o maior perigo de catástrofe ecológica da nossa espécie e, ao mesmo tempo, com o terramoto que destruiu Porto Príncipe, capital do Haiti, o desastre humano mais doloroso na história do nosso hemisfério, no país mais pobre do continente e o primeiro onde foi erradicada a escravidão.

Quando estava escrevendo esta Reflexão, apenas seis semanas depois da morte de mais de duzentas mil pessoas, de acordo com as estatísticas oficiais daquele país, chegaram notícias dramáticas dos danos causados por outro terramoto no Chile, que matou um número de pessoas que já se aproxima das mil, segundo estimativas das autoridades, além de enormes danos materiais. Comoviam especialmente, as imagens dos sofrimentos de milhões de chilenos, afectados material ou emocionalmente por esse golpe cruel da natureza. Felizmente, o Chile é um país com mais experiência perante este tipo de fenómeno, muito mais desenvolvido economicamente e com mais recursos. Caso não contasse com infra-estruturas e edificações mais sólidas, talvez dezenas ou, inclusive, centenas de milhar de chilenos teriam perecido. Fala-se em dois milhões de danificados e perdas que flutuam entre 15 e 30 bilhões de dólares. Nesta tragédia, o Chile conta com a solidariedade e com as simpatias dos povos, entre eles o nosso, embora, devido ao tipo de cooperação de que precisa, Cuba pode fazer bem pouco, mas o nosso governo foi dos primeiros a expressar ao do Chile os seus sentimentos de solidariedade, quando as comunicações ainda estavam colapsadas.

O Haiti é o país que, sem dúvida, hoje põe à prova a capacidade do mundo para enfrentar a mudança climática e garantir a sobrevivência da espécie humana, pois constitui um símbolo da pobreza de que padecem hoje bilhões de pessoas no mundo, incluída uma parte importante dos povos do nosso continente.

O acontecido no Chile com o terramoto, que teve uma incrível intensidade de 8,8 na escala de Richter, embora, por fortuna, a maior profundidade daquele que destruiu Porto Príncipe, obriga-me a pôr ênfase na importância e no dever de estimular os passos de unidade conseguidos em Cancún, embora não tenha ilusões quanto à difícil e complexa que será a nossa luta de ideias perante o esforço do império e dos seus aliados, dentro e fora dos nossos países, com o objectivo de frustrarem a tarefa unitária e independentista dos nossos povos.

Desejo deixar constância escrita acerca da importância e do simbolismo que teve para mim a visita e o último encontro com Lula, do ponto de vista pessoal e revolucionário. Ele expressou que, prestes a finalizar o seu mandato, desejava visitar o seu amigo Fidel; qualificativo honroso que recebi da sua parte. Acho que o conheço bem. Não poucas vezes conversámos fraternalmente dentro e fora de Cuba.

Numa ocasião, tive a honra de o visitar no seu lar, situado num modesto bairro de São Paulo, onde morava com a família. Para mim foi um encontro emotivo com ele, com a sua esposa e com os seus filhos. Nunca esquecerei a atmosfera familiar e sadia daquele lar e o sincero afecto com que o tratavam os moradores vizinhos, numa época em que Lula já era um prestigiado líder operário e político. Então ninguém sabia se chegaria ou não à presidência do Brasil, pois os interesses e forças que se opunham a ele eram enormes, mas para mim era grato falar com ele. Lula tampouco se importava muito com o cargo; satisfazia-lhe, sobretudo, o prazer de lutar e fazia-o com incontestável modéstia; o qual demonstrou folgadamente quando, tendo sido vencido em três ocasiões pelos seus poderosos adversários, somente acedeu a candidatar-se numa quarta ocasião, como representante do Partido dos Trabalhadores, devido à forte pressão dos seus amigos mais sinceros.

Não tentarei fazer uma narrativa das vezes que falamos, antes que fosse eleito presidente; uma delas, entre as primeiras, foi em meados da década de 80, quando lutávamos em Havana contra a dívida externa da América Latina, que na época chegava a 300 bilhões de dólares e tinha sido paga mais de uma vez. Era um lutador inato.

Em três ocasiões, como já disse, os seus adversários, apoiados em enormes recursos económicos e mediáticos, derrotaram-no nas urnas. Contudo, os seus mais próximos colaboradores e amigos sabíamos que tinha chegado a hora de que aquele humilde operário fosse o candidato do Partido dos Trabalhadores e das forças da esquerda.

Com certeza, os seus contrários subestimaram-no, pensaram que não poderia contar com maioria alguma no órgão legislativo. A URSS já não existia. O que poderia significar Lula na liderança do Brasil, uma nação de grandes riquezas, mas de escasso desenvolvimento nas mãos de uma burguesia rica e influente?

Mas o neoliberalismo entrava em crise, a Revolução Bolivariana tinha triunfado na Venezuela, Menem tinha caído a pique, Pinochet tinha saído do palco e Cuba resistia. Mas Lula foi eleito enquanto Bush triunfava de forma fraudulenta nos Estados Unidos, despojando da vitória o seu rival Al Gore.

Principiava uma etapa difícil. Os primeiros passos do novo presidente dos Estados Unidos foram impulsionar a corrida aos armamentos e com ela o papel do Complexo Militar Industrial, reduzindo os impostos aos sectores ricos.

Sob o pretexto da luta contra o terrorismo, Bush reiniciou as guerras de conquista e institucionalizou o assassinato e as torturas como instrumento de domínio imperialista. São impossíveis de publicar os factos relativos aos cárceres secretos, que delatavam a cumplicidade dos aliados dos Estados Unidos com essa política. Dessa forma, acelerou-se a pior crise económica, as mesmas crises que em forma cíclica e crescente acompanham o capitalismo desenvolvido, mas desta vez com os privilégios de Bretton Woods e sem nenhum dos seus compromissos.

O Brasil, por outro lado, nos últimos oito anos, sob a direcção de Lula, superava obstáculos, incrementava o seu desenvolvimento tecnológico e potencializava o peso da economia brasileira. A parte mais difícil foi no seu primeiro período, mas teve sucesso e ganhou experiência. Com o seu incansável trabalho, serenidade, sangue frio e crescente consagração à tarefa, em condições internacionais tão difíceis, o Brasil atingiu um PIB que se aproxima dos dois trilhões de dólares. Os factos flutuam segundo as fontes, mas todas elas colocam o Brasil entre as dez maiores economias do mundo. Apesar disso, com uma superfície de 8.524,000 km2, perante os Estados Unidos, que apenas possui um pouco mais de território, o Brasil só atinge aproximadamente 12% do Produto Interno Bruto desse país imperialista que saqueia o mundo e marca presença com as suas forças armadas em mais de mil bases militares de todo o planeta.

Tive o privilégio de assistir à sua tomada de posse, nos fins de 2002. Também esteve Hugo Chávez, que acabava de enfrentar o golpe traidor de 11 de Abril desse ano e mais tarde o golpe petroleiro, organizado por Washington. Já Bush era presidente. As relações entre o Brasil, a República Bolivariana e Cuba sempre foram boas e de mútuo respeito.

Eu sofri um acidente sério, em Outubro de 2004, que limitou seriamente as minhas actividades durante vários meses; e adoeci gravemente em Julho de 2006, perante o qual não duvidei e deleguei as minhas funções na frente do Partido e do Estado, na Proclama de 31 de Julho desse ano, com carácter provisório, e pouco depois dei-lhe carácter definitivo, quando compreendi que não estaria em condições de assumi-las novamente.

Quando a gravidade da minha saúde me permitiu estudar e meditar, consagrei-me a isso e a rever materiais da nossa Revolução e a publicar, de vez em quando, algumas Reflexões.

Depois que adoeci tive o privilégio de ser visitado por Lula, todas as vezes em que viajou à nossa Pátria e de conversar amplamente com ele. Não direi que sempre coincidi com a sua política. Sou, por princípio, oposto à fabricação de biocombustível a partir de produtos que possam ser utilizados como alimentos, ciente de que a fome é e poderá ser, cada vez mais, uma grande tragédia para a humanidade.

Contudo — e expresso-o com toda a franqueza — este não é um problema criado pelo Brasil e muito menos por Lula. Faz parte inseparável da economia mundial imposta pelo imperialismo e pelos seus aliados ricos os que, subsidiando as suas produções agrícolas, protegem os seus mercados internos e concorrem no mercado mundial com as exportações de alimentos dos países do Terceiro Mundo, obrigados a importarem, em troca, os artigos industriais produzidos com as matérias-primas e com os recursos energéticos deles mesmos, que herdaram a pobreza de séculos de colonialismo. Compreendo perfeitamente que o Brasil não teve outra alternativa a não ser incrementar a produção de etanol, perante a concorrência desleal e os subsídios dos Estados Unidos e da Europa.

A taxa de mortalidade infantil no Brasil ainda é de 23,3 em cada mil nascidos vivos e a materna é de 100 em cada 100 mil partos, enquanto nos países industrializados e ricos é de menos de 5 e de 15, respectivamente. Poderíamos citar muitos outros dados semelhantes.

O açúcar de beterraba, subsidiada pela Europa, despojou o nosso país do mercado açucareiro, derivado da cana-de-açúcar, trabalho agrícola e industrial precário e eventual que mantinha no desemprego os trabalhadores açucareiros, boa parte do tempo.

De outra parte, os Estados Unidos apoderaram-se também das nossas melhores terras e as suas empresas eram proprietárias da indústria. Um dia, de forma abrupta, despojaram-nos da cota açucareira e bloquearam o nosso país para esmagar a Revolução e a independência de Cuba.

Hoje, o Brasil desenvolveu a cultura da cana-de-açúcar, da soja e do milho com maquinarias de alto rendimento, as que podem ser empregadas nessas culturas com altíssima produtividade. Quando um dia observei as filmagens de um plantio de 40 mil hectares de terra na província de Ciego de Ávila, dedicado à cultura da soja, alternando com milho, onde se tentará trabalhar o ano todo, expressei: é o ideal de uma empresa agrícola socialista, altamente mecanizada, com elevada produtividade por homem e por hectare.

O problema da agricultura e das suas instalações no Caribe são os furacões, os que em número crescente, arrasam o território.

Também o nosso país elaborou e assinou com o Brasil o financiamento e construção de um ultramoderno porto em Mariel, que será de enorme importância para a nossa economia.

Na Venezuela está a ser utilizada a tecnologia agrícola e industrial brasileira para produzir açúcar e empregar o bagaço como fonte de energia termoeléctrica. São equipamentos avançados instalados numa empresa também socialista. Na República Bolivariana empregam o etanol para melhorar o efeito nocivo da gasolina no meio ambiente.

O capitalismo desenvolveu as sociedades de consumo e também fomentou o esbanjamento de combustível, o qual gerou o risco de uma dramática mudança climática. A natureza demorou 400 milhões de anos a criar o que a nossa espécie está consumindo em apenas dois séculos. A ciência ainda não resolveu o problema da energia que substituirá a que hoje gera o petróleo; ninguém sabe quanto tempo precisará e quanto custará resolvê-lo em questão de tempo. Por acaso disporá dele? Isso foi o que se discutiu em Copenhaga e a Cúpula resultou num fracasso total.

Lula contou-me que quando o etanol custa 70% do valor da gasolina, já não é negócio produzi-lo. Expressou que apesar de o Brasil dispor da maior floresta do planeta, reduzirá progressivamente o corte de madeira em 80%.

Hoje, possui a maior tecnologia do mundo para perfurar no mar e pode extrair combustível a uma profundidade de sete mil metros no fundo marinho. Há 30 anos, isso teria parecido uma história de ficção científica.

Explicou os programas educacionais de alto nível que o Brasil se propõe implementar. Valoriza altamente o papel da China no âmbito mundial. Declarou com orgulho que o intercâmbio comercial com esse país já é da ordem dos 40 bilhões de dólares.

Uma coisa é indiscutível: o operário metalúrgico converteu-se actualmente num homem de Estado destacado e de grande prestígio, cuja voz é escutada com respeito em todas as reuniões internacionais.

Orgulha-se por ter ganho a honra de celebrar os Jogos Olímpicos no Brasil em 2016, em consequência do excelente programa apresentado na Dinamarca. O Brasil será também a sede do Mundial de Futebol em 2014. Isso tudo foi o fruto dos projectos apresentados pelo Brasil, que superaram os dos seus concorrentes.

Uma prova precisa do seu altruísmo foi a decisão de não se candidatar para a reeleição e confia em que o Partido dos Trabalhadores continuará governando o Brasil.

Alguns que invejam o seu prestígio e a sua glória e pior ainda, os que estão ao serviço do império, criticaram-no por visitar Cuba. Para isso, utilizaram as vis calúnias que há mais de meio século empregam contra Cuba.

Lula conhece há muitos anos que no nosso país ninguém jamais foi torturado, que jamais se produziu o assassinato de um adversário, jamais se mentiu ao povo. Tem a certeza de que a verdade é parceira inseparável dos seus amigos cubanos.

De Cuba partiu rumo ao nosso vizinho Haiti. Informámo-lo das nossa ideias acerca daquilo que propomos quanto à implementação de um programa sustentável, eficiente, nomeadamente importante e muito económico para o Haiti. Conhece que mais de cem mil haitianos foram atendidos pelos nossos médicos e pelos formados na Escola Latino-Americana de Medicina, depois do terramoto. Falámos de coisas sérias, conheço os seus ferventes desejos de ajudar esse nobre e sofrido povo.

Guardarei uma inesquecível recordação do meu último encontro com o Presidente do Brasil e não hesito em dizê-lo.

(Fidel Castro Ruz)

quarta-feira, 3 de março de 2010

COMO DISSE CATARINA

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A emigração voltou ao nível dos anos 60, quando os portugueses, para fugirem à fome e à miséria, procuravam no estrangeiro o pão que o fascismo lhes negava. A isto chegámos pela mão de um fulano que se olha ao espelho e se acha parecido com o George Clooney. Outra vez sem trabalho e sem esperança, milhares de compatriotas nossos, às centenas de milhares, fogem deste país em vias de extinção. Ao mesmo tempo, a fuga de capitais, disparou em 2009, subindo para os 12,6 mil milhões de euros, um aumento de mais de 44% em relação aos 8,7 mil milhões de euros postos em offshores, em 2008. Estes são retratos, entre muitos outros igualmente tristes – mas inegavelmente fiéis – do país de Sócrates.

O senhor «engenheiro» pode, desta maneira, gabar-se de mais dois recordes. Aos do défice, do desemprego, do político mais mentiroso e com mais trapalhadas no currículo, pode juntar, agora, os da emigração e da fuga de capitais. Realmente, ainda está para nascer um primeiro-ministro capaz de tanta façanha junta.

Empacotado no seu Armani, disposto a aproveitar até onde lhe for possível a vertigem inebriante do poder, determinado a compensar-se de uma juventude cerceada por rédeas de austeridade e desconforto – tempos que lhe valeram a cruel alcunha de Sapatilhas – Sócrates há muito que perdeu qualquer sentido de homem de Estado, isto se alguma vez o teve. Não é o país que lhe interessa, mas o seu ego. Não quer o poder para servir, mas a capa do serviço para gozar os benefícios que do poder advêm. Porque não é um estadista, mas um arrivista; porque lhe falta em nobreza de carácter o que lhe sobra em ambição; e porque o seu temperamento intempestivo não o deixa reflectir e ter noção efectiva da consequência dos seus actos, o resultado aí está, bem à vista de quem quiser ver: um país de rastos.

A bagunça chegou a tal ponto, que já nada espanta os portugueses. A maior trapaça já é tida como coisa comum e merece, quando muito, um desalentado encolher de ombros. A imoralidade e o desregramento instituíram-se como norma e ferramenta, a tal ponto que Sócrates já nem parece importar-se com o facto de ser acusados de coisas que, em qualquer país civilizado – à excepção, talvez, da Itália de Berlusconi – já teriam levado à demissão do visado. Chamarem-lhe mentiroso, com todas as letras, não lhe tira o sono nem lhe desfaz a pose. Perdeu a vergonha, fruto do sentimento de impunidade que lhe é conferido pela protecção espúria das mais altas figuras da Justiça. Falar-se em separação de poderes, a este nível, passou a ser um exercício de pura ficção, se não for uma anedota bem contada. Só dá para rir.

Pinto Monteiro e Sócrates equivalem-se, cada qual no seu mister. Dependem um do outro para se manterem nos respectivos cargos e para salvarem a face até onde lhes for possível. Ambos usam a negação da realidade como único argumento. Em casos destes, quando a Justiça se demite das suas responsabilidades, e é a política que a cavalga a toda a brida, só restam duas possibilidades: ou o trambolhão a qualquer momento, ou aguentar a corrida até que o país, cansado e descrente, se vire para outro lado e acabe por esquecer o assunto. Parece ser esta a aposta.

Entretanto, fruto da milagrosa crise, e em nome da recuperação económica, o poder de compra vai baixar para níveis insuportáveis e o desemprego vai subir, com o cortejo de miséria que lhe está sempre associado. As reformas, de igual modo, vão sofrer a erosão que as medidas orçamentais e as do famigerado PEC (Plano de Estabilidade e Crescimento) exigem. O endividamento das famílias vai aumentar ainda mais, tal como o das empresas, do que resultarão mais lucros para a banca e afins. E, em consequência, mais dinheiro transferido para os offshores.

Mais portugueses procurarão no estrangeiro a solução para os seus problemas. Mais homens e mulheres procurarão num segundo emprego, precário e miseravelmente remunerado, a solução que atamanque a situação sufocante em que vivem. Mais reformados serão obrigados a procurar uma nova ocupação, da qual certas franjas empresariais vão beneficiar sem dó nem piedade, explorando-os com condições draconianas. Mais jovens deixarão os estudos para tentar, também em trabalhos precários e com ordenados irrisórios, resolver os problemas económicos com que se debatem. Nesta luta pela sobrevivência, a família, como pilar da sociedade, ver-se-á ameaçada, pois não haverá tempo nem disponibilidade para a fruição do lar e da vida em comum. A instabilidade social vai agudizar-se.

Paralelamente, resultado de todo este quadro de esboroamento económico, social, político e moral, muita gente se sentirá legitimada – e, de algum modo, obrigada – a resolver os seus problemas à margem da lei. A criminalidade aumentará ainda mais, dilatando os níveis de insegurança e violência que já hoje sofremos. A sociedade, de uma maneira geral, será o reflexo do panorama de imoralidade e de pouca-vergonha que vê escorrer das cúpulas do poder político e judicial. A desmoralização alastrará, levando a que cada vez mais pessoas sintam que têm o direito de se desembaraçar de qualquer modo, de acordo com o velho adágio:
ou há moralidade, ou comem todos!

Neste panorama – e com poucos a continuarem a meter ao bolso o resultado do apertar do cinto da maioria – entraremos no círculo vicioso da contestação/repressão. Da Assembleia da República e da Presidência da República nada se espera para além do calculismo político, das contas eleitorais, dos jogos de poder, em suma. Para além de que tanto Cavaco Silva como a actual maioria parlamentar nada divergem de Sócrates e do PS em termos das receitas políticas, ou seja: o povo que pague a crise que os donos da economia fizeram e mantêm – e da qual muito aproveitam. No fundo, é a estafada – mas sempre eficiente – receita da Crise Contínua.

Fugir para o estrangeiro pode ser uma solução, mas não é a solução. Primeiro, porque nem todos o podemos fazer; segundo, porque os que ficam, ficam mais sós e desamparados; terceiro, porque só todos juntos, de mãos dadas e a uma só voz, podemos livrar o país de mentirosos e impostores e, principalmente, exigir políticas que nos respeitem, em vez de nos explorarem.

Sou um lírico? Pois sou. Mas sei, de saber seguro, que só unidos teremos força para conseguir o que é nosso. O que é? Simples. Como disse Catarina Eufémia, é «apenas» esta preciosa metáfora:

- Trabalho e Pão!

(João Carlos Pereira)

Crónica lida nas “Provocações” da Rádio Baía em 03/03/2010.
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