quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

Uma tarde de sol

 
Lisboa. Esplanada de um café numa tarde de sol. Pouco gente, fruto do tempo frio e dos bolsos vazios. Conversa-se em voz baixa. Algumas pessoas ainda fumam, como se gostassem de destruir os pulmões e de oferecer dinheiro ao Gaspar. Eu sei que, muitas vezes, o cigarro é o único consolo, o escape para a angústia, uma fuga da realidade, que parece esvair-se no fumo azulado que a brisa leva.

Na mesa ao lado da minha estão dois homens. Casa dos trinta, a roçar os quarenta. Já beberam as bicas e conversam, agora, um pouco mais animadamente. Uma frase desperta a minha atenção: «Se isso acontecer, não descanso enquanto não limpar o sebo aos que puder. Um, pelo menos, há-de cair». O «isso» era ficar desempregado. O outro olha-o e encolhe os ombros. «Se fosse fácil, já algum maluco o tinha feito», respondeu.

Finjo que estou mergulhado na leitura, mas a partir daqui estou sintonizado na mesa dos dois indivíduos. Não me é possível reproduzir a conversa textualmente, mas não andou longe disto:

- Posso ser eu o primeiro maluco. Mas se me vejo sem dinheiro para a comida, para a casa e para os filhos, juro-te que dedico o resto da vida a caçá-los. A eles e aos filhos deles. Seja lá onde for, seja lá quando for.

O outro contemporizava, sem deixar de lhe reconhecer razão. Do género:

- Pois é, pá, a malta tem razão, mas um gajo não pode dar cabo da vida, desgraçar-se. E ainda por cima eles andam sempre bem guardados, mesmo depois de saírem do governo. Pensas que é fácil, não?

- Que se lixe. A mulher está em casa há oito meses, não arranja nada. Sou eu só a ganhar. Agora, até o meu emprego está tem-te-não-caias. E se ficamos os dois no desemprego? Eh, pá, eu tinha uma vida jeitosa desde que casei. De há dois anos para cá, lixou-se tudo. A vida aumenta, o dinheiro diminui, os filhos a crescer. Agora, ela ficou pendurada. E se amanhã sou eu? Que culpa tenho eu disto estar assim?

A conversa era esta, mais palavra, menos palavra. Entre um silêncio ou outro, repetiam-se as queixas. E a revolta latente em todas as palavras.

- Um gajo farta-se trabalhar, corta em tudo o que pode, não se gasta um cêntimo mal gasto, se gastar num café ou num jornal é gastar mal. Se calhar é. Mas se a minha vida ficar completamente destruída sem que eu tenha qualquer culpa nisso, ai, pá, aí eu não descanso enquanto não limpar os que puder.

E o amigo, rindo-se, eventualmente por não levar a sério o desabafo:

- A malta ladra mas não morde. Até um dia, não é?

Mais um silêncio. Longo, longuíssimo.

- Pois. É melhor não ladrar.

Fizeram um sinal ao empregado, puseram umas moedas em cima da mesa e sumiram-se para os lados da Estrela.

Não sei porquê, mas pereceu-me que aquele homem estava a falar a sério.

Muito a sério.

quinta-feira, 13 de dezembro de 2012


Os pardais e os abutres

 
Hoje vou contar-vos uma história verdadeiramente macabra
Um amigo meu, que adora o PSD, o Passos, o Gaspar, o Borges, o Relvas e tutti quanti estejam a esfrangalhar Portugal para o passar a patacos ao Goldman & Sachs e a outros marmanjões do Grupo Bilderberg, acha que eu sou imbecil por não concordar com as políticas que ele defende e que, como sabemos, são excelentes, basta olhar para os resultados.
A propósito do salário mínimo dos diversos países, reencaminhei há dias um e-mail onde destacava o salário mínimo nacional pela sua exiguidade, comentando eu, imbecil, que até o da Grécia era, depois de todos os cortes, superior ao nosso. Tanto bastou para que o génio – sim, o meu amigo é um génio – me criticasse nestes termos (geniais):
«… e assim se percebe como é que os gregos foram à falência: "dar milho aos pardais", não é difícil. O difícil é pagar a conta. Por cá atira-se a responsabilidade da falta de produtividade para os patrões e governos. A velha treta comunista ... »
Infere-se daqui, desta genial tirada, que os baixos salários portugueses – quer o mínimo, quer o médio – são o «milho» que os trabalhadores (perdão, os «pardais») meteram no papo e que levaram o país à crise. Este meu amigo é técnico municipal e ainda – diz ele – se farta de trabalhar «por fora».
Não sei quanto milho come, nem sei se ele se considera um pardal. Ou um pardalão. Sei é que ele acha que foram os salários mais pindéricos da Europa que deram cabo do país.
Citando o Scolari: E o imbecil sou eu?!
Certamente. Se me tivesse arrimado ao partido certo, andava de papo cheio e a acusar os outros de terem dado cabo disto.
E sabem uma coisa? Gosto muito de ser imbecil.
Este desvelado partidário do PSD e das suas políticas neoliberais acha, então, que Portugal está como está porque os pardais (o povo) tiveram milho (dinheiro) a mais. Não se refere aos grandes abutres, mas aos pardalitos dos salários e pensões mínimos e à volta disso. A escumalha. Para ele, não há PPPs, não há golpadas, não há sacos azuis, laranjas, cor-de-rosa, luvas brancas nem colarinhos da mesma cor. Não há corrupção, incompetência, negócios ruinosos e, sobretudo, não há o alibi da crise para justificar o roubo de salários e prestações sociais.
As golpadas de Duarte Lima, que vão ser pagas pelos contribuintes portugueses, não aquecem nem arrefecem o extremoso partidário laranja. Para já, 32 milhões é a parte que o Estado assume na golpada com os financiamentos do ex-deputado do PSD no BPN. Entretanto, o senhor já não tem nada em seu nome. Só uma pulseira electrónica, por acaso também paga por nós.
No BPN, conforme diz o insuspeito João Marcelino, estamos a pagar «o maior escândalo financeiro da história de Portugal. Nunca antes houve um roubo desta dimensão. Para já, tapado por uma nacionalização que já custou 2.400 milhões de euros delapidados algures entre gestores de fortunas privadas em Gibraltar, empresas do Brasil, offshores de Porto Rico, um oportuno banco de Cabo Verde e a voracidade de uma parte da classe política portuguesa que se aproveitou desta vergonha criada por figuras importantes daquilo que foi o cavaquismo na sua fase executiva». Nada disto o comove o militante social-democrata, nada disto o preocupa.
Oliveira e Costa, o cabeça-de-turco do BPN, vai morrer um dia destes e, convenientemente, vai ser o único responsável pelo crime. Também já não tem nada em seu nome. E para que teria? Não estão cá os pardais para pagar a conta? Claro. Os pardais e o milho que comem - que é milho que semeiam e colhem – é aquilo que preocupa o tal cavalheiro, como se, bem vistas as coisas, ele também não fosse um mísero pardal.
Olhando para este país e para portugueses como este, conseguimos perceber como medraram Hitler e Pinochet e, ao fim e ao cabo, como é fácil arranjar lacaios nos dias que correm.

quinta-feira, 4 de outubro de 2012

APRENDER COM AS ERVAS



Ao pé de mim construíram, há anos, um stand de venda de automóveis em segunda mão. Coisa simples. Um lote de terreno, uma vedação alta, o recinto pavimentado a lajeta, um contentor a servir de escritório, e já está.

Com a crise a espreitar, o negócio foi dando durante algum tempo. Com a crise já instalada, o negócio foi-se abaixo. Carros, nem velhos. Hoje, o local foi invadido por um matagal que despontou, imparável, por entre as lajetas que, agora, mal se vêem. Umas hastes frágeis, finíssimas, nascidas de minúsculas sementes asfixiadas e esmagadas, durante anos, pelas toneladas de um pavimento de cimento e areia compactados, sobre o qual, para cúmulo, estiveram outras toneladas de veículos, resistiram a essa força bruta, venceram-na e ali estão a provar a fragilidade da obra humana face à pujança da mãe Natureza.

Significa isto que os humanos – e tudo aquilo que fazem – ofendem as leis naturais? De modo algum. Significa, apenas, que muitas das realizações e condutas dos humanos, por mais gigantescas e impressionantes que sejam, vergar-se-ão sempre face às leis cósmicas que regem tudo o que existe. A explosão invisível e silenciosa da ínfima semente abre caminho aos débeis filamentos que, dela nascendo, vão, através do poderoso betão, procurar o sol, o ar e a água de que irão viver. A delicadeza da folha e da pétala reina, humilde, sobre o peso bruto e árido do cimento.

Também é da natureza humana respirar, buscar sustento, matar a sede, reproduzir-se, proteger-se do que possa pôr em perigo a sua existência – o chamado instinto de sobrevivência – e procurar o equilíbrio entre si e o meio ambiente, coisa a que se convencionou chamar, nos tempos modernos, a procura da felicidade. É ponto assente, por isso, que o Homem está condenado – tal como a planta – a procurar o caminho para a sua parcela de luz solar, para a sua gota de água, para o seu quinhão de ar.

Dos cerca de sete biliões de seres humanos que habitam o planeta, a maioria sufoca e perece sob a sapata em que um ínfimo grupo de outros seres humanos os subterrou. Em Portugal, por exemplo, mais de 9 milhões de pessoas são dominadas – na sua maioria mentalmente condicionadas de forma a considerar a situação como algo normal e, até, respeitável – por rudes lajetas feitas em série nos meandros partidários, a que se resolveu chamar governantes. Por ordem de quem, muito acima deles, se alimenta do sangue humano.

Há quem lhes chame, metaforicamente, vampiros.

Há quem lhes chame, cinicamente, investidores.

Há quem lhes chame, estupidamente, salvadores.

Eu digo que temos muito a aprender com as ervas.

quarta-feira, 26 de setembro de 2012

OS CHARLATÕES


(De Soares a Passos)


                                                                     
Mário Soares convenceu-se que só por lhe chamarem (sabe-se lá porquê!) o pai da democracia, podia fazer tudo o que lhe apetecesse. Por isso, soltou foguetes, em Março de 1975, com a nacionalização da banca, garantindo que, agora, sim, o 25 de Abril estava totalmente realizado, com o «25 de Abril económico». Que tinham sido, «finalmente, afastados os grandes suportes da ditadura». Sim, ele disse isto.

Depois, mal se apanhou com o poder na mão, foi buscar os banqueiros e, daí a tempos, estava a pedir ajuda ao FMI. Começou a destruir o aparelho produtivo nacional, coisa que estava intimamente relacionada com a adesão à então designada CEE. Haveria de ser presidente da República, onde se entreteve a dar várias voltas ao mundo. Depois de ter cavalgado os burros autóctones, chegou a cavalgar uma tartaruga, nas Ilhas Galápagos.  Hoje, nas horas vagas, e sempre que o governo não é do PS, dá uma – ou duas – de esquerda.

Cavaco Silva convenceu-se que depois das asneiras de Soares, que afundaram o país – e com os fundos comunitários a jorrar – a coisa estava no papo. Seria sempre a aviar. Estoirou tudo em cimento e a deixar os amigos encherem os bolsos – a verdadeira mãe-de-água do BPN, que viria a ser a maior burla alguma vez acontecida em Portugal. Delapidou ainda mais o aparelho produtivo nacional, até que foi forçado a «retirar-se», em grande parte empurrado por aqueles a quem enchera a mula. Comprou bem umas acções fantasmas, vendeu-as melhor, fez umas transações imobiliárias jeitosas e começou a pensar da presidência dos matarruanos, o que viria a conseguir. Hoje, não ganha para as despesas. Nem para se ralar.

António Guterres convenceu-se que depois de Cavaco e da sua gestão, que afundou o país, tudo o que viesse (que, por acaso, era ele) seria uma bênção. Bom rapaz, católico praticante – é o que consta – teve o primeiro susto ao inteirar-se do verdadeiro estado do país. Passou uns dias no Hospital da CUF, a recuperar do abalo.

Sabendo a escória que tinha no partido, resolver rodear-se de «gente nova e promissora», para o que foi buscar jovens ambiciosos e sedentos de sucesso. Sócrates e Vara, por exemplo. Não há job para boys, foi a sua frase mais sonante – e também aquela que teve menos correspondência na realidade. Os rapazes «ambiciosos e sedentos de sucesso», que tinham chegado a Lisboa aos trambolhões, logo se deslumbraram, como alguém disse, com as luzes da cidade, com os restaurantes da cidade, com os automóveis da cidade, com os bancos – e os banqueiros – da cidade, com os negócios da cidade, enfim, com as possibilidades da cidade, principalmente quando se tem o poder nas mãos.  

Um dia, depois de eleições autárquicas que não correram nada bem, reparou que estava atolado num pântano. E fugiu. Encontra-se, hoje em dia, refugiado no Alto Comissariado da ONU para os Refugiados, onde trata de si e, se houver tempo e verba, dos outros refugiados.

Durão Barroso convenceu-se que depois do pântano de Guterres, onde o país se afundara, nada de pior podia acontecer. Cedo descobriu que o país não só se afundara, como estava de tanga. Percebendo isto, piscou o olho a Bruxelas e, certamente por bruxedo, conseguiu fugir para lá, onde é presidente da Comissão Europeia. O país ficou ainda mais atascado – e a tanga mais esfarrapada. Ele está muito bem da vida, e quase ninguém se lembra dos seus tempos de esforçado MRPP.

Sócrates convenceu-se que era um génio e um protegido dos deuses. Se os seus antecessores lhe legaram um país de pantanas, e estavam todos bem na vida, ele tinha todas as condições para fazer mais e melhor. E fez. Alargou o pântano, vendeu a tanga e elevou à décima potência tudo o que de pior antes dele fora feito. Pelo meio, descobriu que o pântano era o sítio ideal para deitar toda a espécie de lixo, incluindo os lixos morais. O pântano passou a borbulhar. Como o país integrava um espaço económico livre a alargado como nunca o fora, todos os tipos de traficâncias passaram a ser permitidas.

Empenhado nestas proveitosas veniagas, não percebeu que o enriquecimento de uns quantos – ele incluído – não era o enriquecimento do país. Pelo contrário: agora, nem água pantanosa havia. Não quis acreditar no que via, e deu por si a acreditar, delirantemente, sabe-se lá em quê. Já na fase de estrebucho, pediu ajuda externa, mas, tal como Guterres e Durão, achou melhor mudar de ares. Juntou uns dinheirinhos que arrebanhara no meio de várias confusões – confusões, não: só cabalas e campanhas negras – e foi viver em Paris, onde é, finalmente, um nababo. Às vezes vem almoçar ou jantar a Lisboa, só para ver como param as modas. Pescar à linha. Diz-se por aí que se não foi internado num hospício, ou num estabelecimento prisional, é porque não há medicina que o trate, ou porque a Justiça está entregue à rainha de Inglaterra, que não tem poderes para o efeito.


Passos Coelho convenceu-se de várias coisas. Uma, é que lhe bastava dizer que herdara um país falido. Outra, é que era um génio maior do que Sócrates. Outra, é que o povo, tal como disse, com mágoa, Erasmo de Roterdão, é uma enorme e possante besta.  Outra, é que, dados os factos, tinha força, autoridade e competência para aplicar as medidas que entendesse. Outra, é que tinha o seu partido com ele e o CDS na mão. Outra, é que bastava agradar aos donos do dinheiro para poder fazer o que bem lhe desse na gana, e ainda o que o Gaspar mais o Relvas, aconselhados pelo Borges, lhe dissessem. Outra, é que era um homenzinho a sério, e não um fedelho com umas ideias neoliberais aprendidas à pressa nos meandros da JSD e trabalhadas qb num curso de economia tardio, para justificar um estatuto.

Convencido disto tudo, foi o «custe o que custar». Como ele nunca soube o que foi «custar», porque nunca trabalhou, nem o Gaspar sabe o que é ser gente comum, tal como o guru António Borges, que aos dois aconselha e é, em certa medida, o primeiro-ministro sombra, perdeu o controlo da situação. O seu partido logo percebeu que assim não vai lá nas próximas eleições, razão pela qual – não, claro que não é por causa do país, nem das pessoas – lhe começou a tirar o tapete. E Passos, tal como um garoto cobardolas e inconsciente que apenas sabe produzir uns lugares-comuns em voz estudada para impressionar os papalvos, aí está, a padecer do síndroma de Peter e sem saber que contas deitar à vida. Pela primeira vez, em mais de quarenta anos, tem um problema para resolver.


E O POVO PORTUGUÊS? Ter-se-á, finalmente, convencido

- que de Soares a Passos, nenhum se aproveita?

- que o problema não é só de pessoas, mas das políticas que aplicam?

- que TODOS estes governantes, cada qual com o seu carácter (desprezível, em qualquer deles, como se vê) são corresponsáveis pela miséria a que o país chegou?

- que no actual quadro político-partidário não há saída, nem recuos, nem remendos, nem soluções?


Sim, foram bonitas as manifestações, pá! Mas não creio que elas signifiquem, para além da justa revolta pelas medidas impostas pela mais desbragada austeridade, pelo esbulho e confisco que ela provoca, a consciência plena de que estes alegados governantes – TODOS ELES – são apenas os executores de políticas económicas determinadas de muito longe por gente sem rosto. Gente que ninguém elege.

Gente que nos empresta o dinheiro que nos foi roubado. Dinheiro para essa gente transferido pelos governos dos países.

Não basta, por isso, deitar abaixo um governo. É preciso deitar abaixo quem, realmente, comanda os povos, através dos governos. Ao mandarmos Passos para a rua, devemos exigir que «o senhor que se segue» não leia pela cartilha de Passos, Sócrates, Durão, Guterres, Cavaco ou Soares.

No fundo, é isto:

NACIONALIZAR OS INVESTIDORES. OS MERCADOS.

- A União Europeia não deixa? Problema dela.

- Os EUA não gostam? Problema deles. Na América Latina mandam cada vez menos, e «aquilo» já foi o seu pátio das traseiras.

Eu não tenho medo da Liberdade. E tu?

quarta-feira, 12 de setembro de 2012

DONA CÂNDIDA, A CÂNDIDA


Portugal não é um país corrupto, descobriu Dona Cândida de Almeida, alta figura do PS e da Justiça portuguesa. Convidada a perorar numa iniciativa do PSD, chamada Universidade de Verão (conclave dos jovenzinhos que medram na juventude partidária dos laranjas enquanto não arranjam tachos nas empresas dos amigos, ou jobs na administração pública, incluindo cargos de assessores de ministros e secretários de estado, como tirocínio para futuros governantes), Dona Cândida, candidamente, disse que «Portugal não é um país corrupto» e que existe uma «percepção» exagerada da dimensão deste crime, sublinhando que é dos poucos Estados europeus onde se investigam «grandes negócios do Estado».

Digo eu: esta senhora parece confundir investigar com acusar, julgar e – se for caso disso – condenar. Investigar, lá isso investigam. Mas depois… ignoram factos, destroem provas e face a isso, arquiva-se.

Continua a dizer a senhora dona: «O nosso país não é um país corrupto, os nossos políticos não são políticos corruptos, os nossos dirigentes não são dirigentes corruptos. Portugal não é um país corrupto. Existe corrupção, obviamente, mas rejeito qualquer afirmação simplista e generalizada de que o país está completamente alheado dos direitos, de um comportamento ético (...) de que é um país de corruptos», disse a ilustre directora do Departamento Central de Investigação e Acção Penal na tal Universidade de Verão do PSD, em Castelo de Vide.

Sem se rir, mas abanando muito a sua augusta cabeça, acrescentou que «as pessoas, de uma maneira geral, sem saber exactamente o que estão a dizer, falam de corrupção num conceito sociológico, ético-político eventualmente, mas falam de coisas que não são corrupção, falam de coisas afins», disse, acrescentando que «a corrupção tem a ver com cidadãos ou funcionários que se vendem ou querem vender-se».

Digo eu que a madame chegou à Terra há oito dias, mais dia, menos dia, razão pela qual desconhece os casos Freeport, Portucale, Submarinos e Face Oculta, já para não falar da Fundação para a Prevenção e Segurança, também conhecida por Fundos para o PS. Também nunca ouviu falar de Melancia, Abílio Curto, Felgueiras, Isaltino, Vara, Penedos, Godinhos e outros tantos. E que tais.

Mas continua sua excelência: A nível do combate a este crime, «Portugal está na média europeia» e é até um dos países que vai mais longe na investigação deste tipo de ilícito, dando como exemplo o processo judicial relacionado com a compra de submarinos pelo Estado português.

Digo eu: a eminente criatura desconhece que o caso dos Submarinos já provocou condenações na Alemanha, onde se provou que houve corruptores, faltando apurar, em Portugal, quem foram os corrompidos. Talvez nunca se apure, a julgar pelo que pensam – e dizem e fazem – certos altos magistrados. Vejam lá que até documentos essenciais do contrato de compra dos submarinos desapareceram, tendo outros sido encontrados no gabinete de uma importante firma de advogados!

Mas Dona Cândida continuou, imparável: «Temos feito efectivamente o nosso trabalho (...) Ninguém nos impediu e, portanto, se vocês virem a nível europeu (...) não vêem ninguém a ser investigado. Não há investigação de grandes negócios do Estado e que interessam ao Estado. E nós têmo-lo», afirmou.

Digo eu: Não há dúvida. Esta senhora chegou há pouco de Marte. Por um lado, Freeportes, Submarinos, Portucales, Aeroporto de Macau, etc, etc, não consta que proliferem na Europa civilizada. Por outro lado, ela nem sabe que, na Suécia, uma vice-primeira-ministra foi demitida por comprar um chocolate com o cartão do governo. Está bem. Isso é que é grave. Se fosse corrupção a sério, não acontecia nada. Cá, investiga-se, ignoram-se factos, destroem-se provas… e, na maior das calmas, arquiva-se.

E continuou ela, parecendo cada vez mais destrambelhada: um dos aspectos a melhorar, disse, é a questão do lobby, cujas fronteiras com os crimes de tráfico de influências e de corrupção são pouco claras. «Enquanto lá fora isto está regulamentado, em Portugal não está. E isto tem servido de panaceia para estas situações. E portanto quando há qualquer coisa, é lobby», explicou.

Digo eu: afinal, sempre há corrupção por cá. Pode é andar disfarçada de lobby, porque o lobby, cá, não está regulamentado. Que chatice, não é, Dona Cândida? Só uma pergunta: a que horas é que V. Exa. usou da preciosa palavra? Foi de manhã, ou da parte da tarde?

Depois, Dona Cândida em defesa da sua dama, não podia ser mais explícita: quando o «engenheiro» veio à baila, aí mostrou o que vale. Uma jovenzinha do PSD disse não entender como é que pessoas sobre as quais existem «fortes suspeitas» são investigadas e detidas, ainda que preventivamente, e isso não acontece com o anterior primeiro-ministro, José Sócrates, referindo que Sócrates vive e estuda em Paris, levando «uma vida de grande luxo com o dinheiro dos salários que ganhou em Portugal», e questionou se o ex-primeiro-ministro terá alguma protecção diferente.

Na resposta, Cândida Almeida referiu a incapacidade do Ministério Público para comparar declarações de património e património real. «Vamos instaurar o inquérito por suspeitas de quê?», questionou. «Hoje é este, amanhã é aquele e então é uma caça às bruxas e nós não queremos nenhuma república de juízes. Somos magistrados, devemos cumprimento à lei, as investigações seguem os termos da lei, os termos do processo penal, não há nem pode haver nenhuma república de juízes», afirmou. «Imaginem o que era os magistrados agora dizerem: vou ver a conta daquele e agora vou ver a conta deste. Isso acaba por ser também um perigo maior para a democracia», reforçou.

Digo eu: pronto! Finalmente. V. Exa., Dona Cândida, explicou-se! Disse, abertamente, isto: Claro que não podemos investigar o Sócrates, porque depois havia quem quisesse investigar o Cavaco, e logo outro a querer investigar o Soares, e outro a querer investigar o Relvas, ou o Jorge Coelho, e ainda outro a determinar que o Portas também fosse investigado. Bom… era o fim da República. Caíam todos! Ao dizer isto, V. Exa estava a dizer claramente à rapaziada do PSD que o melhor é não levantar muitas ondas, porque todos têm telhados de vidro, e ela, melhor do que ninguém, sabe disso. Assim como quem diz: Vejam lá se não vão à lã… e vêm de lá todos tosquiados.

Peço desculpa, Dona Cândida. Vossa Excelência é mesmo deste planeta e deste país. E sabe bem o que é a corrupção e quem são os grandes corruptos. Nisso, devido ao cargo que ocupa, V. Exa é mesmo uma especialista na matéria. Eu é que não sou de cá, nem do seu planeta, nem do seu país.

E deixe-me que lhe diga: Felizmente, porra!


(João Carlos Pereira)

quarta-feira, 29 de agosto de 2012

JACQUES AMAURY


Pessoa atenta enviou-me um artigo de Jacques Amaury, que é um reputado sociólogo e filósofo francês, professor na Universidade em Estrasburgo. Resolvi divulgá-lo, tendo em vista o seu enorme interesse e oportunidade, mas também – e fundamentalmente – por duas outras razões:

- porque este senhor diz aquilo que, em Portugal, o poder político pretende esconder,

- e porque não pode ser acusado de estar ao serviço das funestas e sinistras forças da oposição.

Na verdade, caros amigos, sabemos que grande parte do nosso povo não pensa.

Não consegue.

Outra parte, pensa aquilo que pensa o seu partido – ou o partido onde vota.

Depois, de entre estes – os que não pensam e os que pensam pela trela – há os que sempre que se lhes fala do Aqui e Agora – do Portugal que hoje sofremos – vêm-nos falar de outros países, de outras realidades, de outras culturas, como se aquilo que nelas possa ser criticado (já não digo compreendido) sirva de desculpa para os nossos males. Para os males que eles querem calar porque – lá está – não é o país nem o povo que lhes interessa, mas o seu bando. É triste, é feio, é mau, mas é a gente que temos.

E é porque esta gente ainda é muita, que os tipos que dirigem isto fazem o que querem das nossas vidas e com o nosso dinheiro.

Espero, para terminar, que nenhum dos meus leitores negue a este cidadão da Europa - Jacques Amaury o direito a ter opinião sobre Portugal, especialmente se for um daqueles leitores que tudo sabe sobre os tais países distantes, onde nunca esteve e dos quais só sabe por ouvir dizer.

(João Carlos Pereira)


Aqui vai o texto:

"Portugal atravessa um dos momentos mais difíceis da sua história que terá que resolver com urgência, sob o perigo de deflagrarem crescentes tensões e consequentes convulsões sociais.

Importa em primeiro lugar averiguar as causas. Devem-se sobretudo à má aplicação dos dinheiros emprestados pela CE para o esforço de adesão e adaptação às exigências da união.

Foi o país onde mais a CE investiu "per capita" e o que menos proveito retirou. Não se actualizou, não melhorou as classes laborais, regrediu na qualidade da educação, vendeu ou privatizou mesmo actividades primordiais e património que poderiam hoje ser um sustentáculo.

Os dinheiros foram encaminhados para auto-estradas, estádios de futebol, constituição de centenas de instituições público-privadas, fundações e institutos, de duvidosa utilidade, auxílios financeiros a empresas que os reverteram em seu exclusivo benefício, pagamento a agricultores para deixarem os campos e aos pescadores para venderem as embarcações, apoios estrategicamente endereçados a elementos ou a próximos deles, nos principais partidos, elevados vencimentos nas classes superiores da administração pública, o tácito desinteresse da Justiça frente à corrupção galopante e um desinteresse quase total das Finanças no que respeita à cobrança na riqueza, na Banca, na especulação, nos grandes negócios, desenvolvendo, em contrário, uma atenção especialmente persecutória junto dos pequenos comerciantes e população mais pobre.

A política lusa é um campo escorregadio onde os mais hábeis e corajosos penetram, já que os partidos cada vez mais desacreditados, funcionam essencialmente como agências de emprego que admitem os mais corruptos e incapazes, permitindo que com as alterações governativas permaneçam, transformando-se num enorme peso bruto e parasitário.

Assim, a monstruosa Função Pública, ao lado da classe dos professores, assessoradas por sindicatos aguerridos, de umas Forças Armadas dispendiosas e caducas, tornaram-se não uma solução, mas um factor de peso nos problemas do país.

Não existe partido de centro já que as diferenças são apenas de retórica, entre o PS (Partido Socialista) e o PSD (Partido Social Democrata), de direita, agora mais conservador ainda, com a inclusão de um novo líder, que tem um suporte estratégico no PR e no tecido empresarial abastado mais à direita, o CDS (Partido Popular), com uma actividade assinalável, mas com telhados de vidro e linguagem pública, diametralmente oposta ao que os seus princípios recomendam e praticarão na primeira oportunidade.

À esquerda, o BE (Bloco de Esquerda), com tantos adeptos como o anterior, mas igualmente com uma linguagem difícil de se encaixar nas recomendações ao Governo, que manifesta um horror atávico à esquerda, tal como a população em geral, laboriosamente formatada para o mesmo receio.

Mais à esquerda, o PC (Partido comunista) menosprezado pela comunicação social, que o coloca sempre como um perigo latente e uma extensão inspirada na União Soviética, oportunamente extinta, e portanto longe das realidades actuais.

Assim, não se encontrando forças capazes de alterar o status, parece que a democracia pré-fabricada não encontra novos instrumentos.

Contudo, na génese deste beco sem aparente saída, está a impreparação, ou melhor, a ignorância de uma população deixada ao abandono, nesse fulcral e determinante aspecto. Mal preparada nos bancos das escolas, no secundário e nas faculdades, não tem capacidade de decisão, a não ser a que lhe é oferecida pelos órgãos de Comunicação. Ora e aqui está o grande problema deste pequeno país; as TVs as Rádios e os Jornais, são na sua totalidade, pertença de privados ligados à alta finança, à industria e comercio, à banca e com infiltrações accionistas de vários países.

Ora, é bem de ver que com este caldo, não se pode cozinhar uma alimentação saudável, mas apenas os pratos que o "chefe" recomenda. Daí a estagnação que tem sido cómoda para a crescente distância entre ricos e pobres.

A RTP, a estação que agora engloba a Rádio e TV oficiais, está dominada por elementos dos dois partidos principais, com notório assento dos sociais-democratas, especialistas em silenciar posições esclarecedoras e calar quem levanta o mínimo problema ou dúvida. A selecção dos gestores, dos directores e dos principais jornalistas é feita exclusivamente por via partidária. Os jovens jornalistas, são condicionados pelos problemas já descritos e ainda pelos contratos a prazo determinantes para o posto de trabalho enquanto, o afastamento dos jornalistas seniores, a quem é mais difícil formatar o processo a pôr em prática, está a chegar ao fim. A deserção destes, foi notória.

Não há um único meio ao alcance das pessoas mais esclarecidas e por isso, "non gratas" pelo establishment, onde possam dar luz a novas ideias e à realidade do seu país envolto no conveniente manto diáfano que apenas deixa ver os vendedores de ideias já feitas e as cenas recomendáveis para a manutenção da sensação de liberdade e da prática da apregoada democracia.

Só uma comunicação não vendida e alienante, pode ajudar a população, a fugir da banca, o cancro endémico de que padece, a exigir uma justiça mais célere e justa, umas finanças atentas e cumpridoras, enfim, a ganhar consciência e lucidez sobre os seus desígnios.

quarta-feira, 22 de agosto de 2012

O PAGADOR DE FAVAS


Milhões de pessoas fazem o que sempre fizeram, cumprem o que lhes dizem para cumprir, sujeitam-se ao que são obrigadas a sujeitar-se e, como resultado, vêem a vida esvair-se numa espiral de mentiras sórdidas e desumanidade pura. Só têm uma função: pagar as favas.

Há dias, para subscrever um contrato de fornecimento de serviços audiovisuais, perguntaram-me a minha profissão. Pagador de favas, respondi eu. A jovem olhou para mim, estupefacta. Desculpe… mas disse pagador de quê? Pagador de favas, repeti. Não conheço essa profissão, confessou ela, perplexa. Sorri-lhe. Olhe, então não conhece a sua profissão. Meu caro senhor, peço-lhe que me perdoe, mas eu não sou isso... Pagadora de favas, não foi o que disse? Disse e repito. Eu sou pagador de favas, você é pagadora de favas e cerca de nove milhões de portugueses são pagadores de favas. Ela começara a perceber. E sorriu um sorriso triste, incomodado.

Estávamos sentados num café, onde éramos os únicos clientes, com duas bicas entre nós. Estiquei o braço para a mesa do lado e agarrei no Correio da Manhã, que folheara antes de ela chegar. Oiça o que escreve aqui um senhor chamado Manuel Catarino:
«Os números não mentem – e aí estão as cifras negras da miséria: o desemprego, que não pára de subir, já vai nos 15 por cento; entre os que não têm trabalho, pelo menos 93 mil já desistiram de lutar; e a riqueza nacional caiu no segundo trimestre 3,3 por cento (pior só a Grécia). Os sacrifícios que o Governo impôs à nação só trouxeram mais pobreza e mais desânimo. O nosso maior problema não é tanto a crise, mas a ausência de soluções – e, principalmente, a falta de líderes. Olhamos em frente, para a direita, para a esquerda – e o que vemos? Uma classe política mal preparada e sem ideias – um numeroso rancho de carreiristas incapaz de nos devolver a esperança».

Olhei para ela, muito sério. Encolheu os ombros, assim como quem diz: o que é que eu posso fazer? Perguntei-lhe: você acha-se culpada pelo estado a que o país chegou? Que não. E os seus pais, a sua família? Coitados, respondeu ela. O meu pai é engenheiro, ultimamente foi director de obra em diversas empreitadas, mas está desempregado há quase um ano. Não há trabalho, está tudo parado, não arranja nada. A minha mãe e eu é que vamos aguentando a casa. Ela trabalha num infantário. Tenho um irmão que está a acabar o 12.º ano. Voltou a encolher os ombros, resignada.

Eu também não sou culpado de nada, disse-lhe. Trabalhei desde os dezanove anos, sempre me descontaram o que era para descontar, sempre paguei os meus impostos – que remédio – estive, quatro anos ao serviço da pátria, dois dos quais numa parcela do império, ao todo trabalhei mais de quarenta e cinco anos, os últimos três e meio num call-center a tentar enganar o meu semelhante. E sabe que mais? Acho que eu, você e a sua família somos iguais, ou muito parecidos, a milhões de portugueses. Trabalhamos no que se consegue arranjar, cumprimos as nossas obrigações, mas depois vêm cobrar-nos o preço de uma crise que não fizemos. Pagamos as favas. Já sabe, agora, qual é a minha e a sua profissão? E a dos seus pais?

Mais uma vez aquela jovem que, de esferográfica na mão, esperava que eu me deixasse de conversas e assinasse o contrato que lhe ia render uns parcos euros, encolheu os ombros.

Ponha aí: reformado, mas não domado. Ela sorriu. Depois, pedi-lhe os papéis e a esferográfica e fiz as assinaturas necessárias. Olhei-a com simpatia e pena. Com tanta coisa para produzir neste país, e aqui estava ela – e milhares como ela, por aí a subir escadas e a tocar às campainhas – a tentar vender tralha a pessoas que, em muitos casos, nem para medicamentos têm dinheiro.

- Gosta do que faz? – perguntei-lhe.
- É o que se arranja – respondeu-me, com novo encolher de ombros.
- Dá para a bucha?
- É melhor do que nada.
- Já sabe o que é um pagador de favas?
- Fiquei com uma ideia – disse-me, com um sorriso sincero.
- Sabe quando é que acabam os pagadores de favas?
- Não faço ideia.
- Quando acabarem os encolhedores de ombros.

Ficou a olhar-me, muito séria. Depois, arrumou os papéis, guardou a esferográfica, agradeceu e saiu.


(João Carlos Pereira)

Crónica lida nas “Provocações” da Rádio Baía em 22/08/2012.

quarta-feira, 15 de agosto de 2012

CUBA, 14 – PORTUGAL, 1


Há uma pequena ilha do Caribe que foi um paraíso até 31 de Dezembro de 1958. Nessa altura, um grupo de barbudos mal cheirosos tomou de assalto o poder e acabou com o bem-bom. Até então, tudo era fácil nessa ilha de clima ameno e praias paradisíacas. Havana, por exemplo, era um glamoroso casino e um competente bordel, onde turistas endinheirados, na sua maioria ianques, esparramavam abundantemente milhões de dólares, espermatozoides e urina.

Quando, em Maio de 1902, havia sido proclamada a República de Cuba, terminado que fora o domínio colonial espanhol, logo o solícito e humanitário vizinho norte-americano ordenou à Assembleia Constituinte cubana que ajuntasse um apêndice à Constituição da República, a Emenda Platt, que concedia aos Estados Unidos o direito de intervir nos assuntos internos da nova república, negando à ilha a condição jurídica de nação soberana. E assim, por quase seis décadas, Cuba foi o casino, o bordel e o urinol dos comboys, que tiveram no ditador Fulgêncio Batista o seu «democrata» às ordens. Jogo, droga, prostituição e, a par disso, a riqueza concentrada nas mãos de uma pequena elite de janotas locais e dos chamados (a praga não é nova) investidores estrangeiros. Investidores que – ontem (lá), como hoje (cá) – eram os donos de todos os meios de produção, nababos norte-americanos que utilizavam testas-de-ferro cubanos para gerirem os seus negócios, sendo estes os primeiros sabujos a descobrir o caminho marítimo para Miami, quando as coisas deram para o torto na célebre passagem de ano de 1958 para 1959.

Nesse período dourado, tudo era fácil em Cuba. Para uns, jogatina, charutos, droga, álcool, sexo, milhões a escorrer, corrupção, enfim, aquela era a verdadeira Ilha dos Prazeres. Para outros, também era fácil ter fome, morrer sem assistência médica, ser-se analfabeto, não ter emprego, ganhar uma miséria, ver passar os automóveis de luxo made in USA (espectáculo perfeitamente gratuito, diga-se), tal como fácil era apodrecer-se nas prisões da grande democrata Fulgêncio, com o amém humaníssimo, solidário e cooperante do Tio Sam, o homem que é, há séculos, o maior democrata do mundo.

(Um parênteses para dizer que nas olimpíadas de 1900 e 1904, as primeiras em que participaram atletas cubanos, estes arrecadaram 5 medalhas de ouro, 3 de prata e 3 de bronze – onze, no total. Depois, já entregues às mãos democratas, impolutas, beatíficas e competentes de Fulgêncio Batista e dos seus tutores norte-americanos, Cuba conseguiu, entre 1904 e 1958 – isto é, em dez olimpíadas – uma(!) brilhante medalha de prata, em 1948, nos JO de Londres. Fecho os parênteses).

Voltando aos malvados, mal cheirosos, maquiavélicos e celerados barbudos. Mal tomaram o poder, apoiados pela esmagadora maioria da população, trataram de distribuir por todos os cubanos a comida, os charutos, a cana do açúcar – não só os lucros, mas também o trabalho de a apanhar – os medicamentos, os livros, as escolas e as universidades, os médicos e os professores, a água, a electricidade, as casas e o trabalho, as espingardas e o futuro, algo que, como toda a gente bem-pensante sabe, é profunda e violentamente antidemocrático e, principalmente, vai contra a economia de mercado. Ah! E (crime hediondo!) rasgaram a Emenda Platt.

Como resultado desta desumana hecatombe, os cubanos não só não têm o prazer de saber o que custa querer um médico e não o ter, ou precisar de uma operação e ir para uma humanitária e democrática lista de espera, como conseguem exportar médicos um pouco para todo o mundo, ajudando aqueles que menos podem, como é o caso de um país muito desenvolvido, democrático e respeitador dos direitos humanos que eu conheço. Para cúmulo, os cuidados de saúde, neste país destroçado por políticas que atentam contra a liberdade e os mais sagrados direitos das pessoas, a ninguém é permitido pagar uma consulta, uma operação, um internamento ou, sequer, uma consulta ou tratamento em estomatologia. Nem uma singela taxa moderadora os cubanos estão autorizados a pagar!

Apesar de tudo, os cubanos resistem a estas violências e arbitrariedades próprias de um regime totalitário, e recusam-se a morrer. A esperança de vida é das mais altas do mundo, na ordem dos 79,1 anos. A mortalidade infantil é, hoje, a mais baixa de todo o Continente Americano, o que prova que até os recém-nascidos resistem ao regime. Na verdade, só o Canadá é que apresentou, no ano de 2011, um índice abaixo dos 3,9%.

Como prova da resistência dos cubanos, refira-se que Cuba é o país com a maior proporção demográfica de pessoas com mais de 100 anos, à frente até do Japão, contando com cerca de 1.550 centenários, numa população de 11,2 milhões de habitantes.

A juntar a estes crimes contra os direitos humanos, denuncie-se o facto de o analfabetismo em Cuba ter sido erradicado, como se um ser humano já não tivesse o direito de ser analfabeto à vontade. Por outro lado, os médicos, os engenheiros, os arquitectos, os economistas, os advogados, enfim, aquelas pessoas que, noutras latitudes gostam de ser conhecidos como o senhor doutor, ou o senhor engenheiro, por exemplo, mas não têm tempo para perder nos estudos, ali são obrigados a estudar durante anos seguidos, estando-lhes miseravelmente vedado o direito a pedir equivalências e fazer o curso à la minuta, como acontece nas sociedades civilizadas e, principalmente, democráticas até ao tutano. Como se não bastasse de arbitrariedades, os estudos, os livros e os materiais escolares necessários à aprendizagem são completamente gratuitos.

Perante este quadro aterrador, é natural que os EUA tenham reagido no sentido de proteger o povo cubano, restituindo-lhe a liberdade, e recuperando, também a tal Emenda Platt. Desde 1959 que tudo tem sido tentado pela administração do país mais democrático e respeitador dos direitos humanos – e do direito internacional – que existe à face da terra. Invasões, bombardeamentos, assassinatos, atentados, guerra biológica e um bloqueio económico que é o bloqueio mais longo da história da humanidade. Tudo em vão! Nema célebre Emenda Platt os EUA conseguiram repor. Terrível, não é? Um raquítico David resistir ao gordo Golias!

Coitados dos cubanos. Frustrados, voltam-se para o desporto, só para esquecerem as agruras da vida. Sob o lema olímpico – Mais alto. Mais rápido. Mais forte – fazem das tripas coração e apresentam-se nos Jogos, só para ver o que dá. Assim – e apesar da desgraça em que vivem – já somaram, depois da terrível revolução, 196 medalhas (67 de ouro, 63 de prata e 66 de bronze) às que tinham conseguido até ao fim do regime da dupla extremamente democrática, Fulgêncio/EUA.

É uma tristeza, não é? Tome-se como exemplo um país como o nosso, em área e população semelhante a Cuba. É claro que há algumas diferenças, dado que em vez de sofrermos um bloqueio económico, estamos inseridos numa faustosa comunidade de estados (dos mais ricos do mundo), somos amparados pelo Banco Central Europeu e pelo FMI e, segundo consta, somos governados por democratas puros, patriotas dos quatro costados, gente honestíssima, inteligente, dedicada e competentíssima, o que deveria jogar a nosso favor. Mas não joga. O que é que falha no meio disto tudo?

Não! Não me estou a referir ao desempenho dos portugueses nos Jogos Olímpicos, nem às medalhas ganhas por Cuba. Ou à que Portugal ganhou.

Estou a falar de doentes à espera de uma consulta ou de uma operação, de fome, de desemprego, dos jovens que abandonam os seus cursos por carências económicas, de salários em atraso, de burlas gigantescas, de injustiças e desigualdades sociais, de mentiras, de corrupção, de desumanidade, de desprezo pela vida e pela condição humana, modalidades onde o meu país tem sempre um lugar no pódio. Estou a falar – e isto bastaria – de crianças com fome e velhos abandonados em tugúrios infectos. Coisas que existem em Portugal e que não existem em Cuba.

Londres, Ano da Graça de 2012. Cuba, 14 – Portugal, 1.

Só por si, isto não diz nada. Mas que é um reflexo do essencial, com certeza que é.


(João Carlos Pereira)

Crónica lida nas “Provocações” da Rádio Baía em 15/08/2012.

sexta-feira, 10 de agosto de 2012

CEM ANOS DE SERVIDÃO


Há muitos anos que o mais célebre livro de Gabriel García Márquez – Cem Anos de Solidão – é um dos meus objectos de culto no plano literário. Não vou contar – ou comentar – toda a história que García Márquez magistralmente nos relata, mas dizer que a interpretei como um fantástico tratado sobre os labirintos em que os seres humanos gostam de se perder. Ou a tal parece estrarem condenados. O homem, que pode ter nas mãos a possibilidade de decidir do seu destino, não raramente utiliza essa liberdade – o seu poder – contra si próprio. Num dado momento, o livro toca nas guerras entre conservadores e liberais, conflito que assolava vários países hispano-americanos em meados do século XIX.

No fundo, trata-se do eterno conflito entre exploradores e explorados, sendo que os conservadores tinham como apoio a Igreja e o Exército, consideravam-se inspirados por um poder divino – o que os absolvia de todas as sevícias que praticavam – e lutavam pela manutenção da estrutura do antigo regime, inspirado ainda na velha ordem colonial. Já os liberais perseguiam o fim das bases ideológicas e materiais que sustentavam o poder conservador, lutando pela revisão dos títulos de propriedade de terra, pela laicização da sociedade e do Estado, pelo fim dos privilégios da classe dominante, por uma legislação que promovesse a justa distribuição da riqueza e, naturalmente, pela tomada do poder político.

O pior é que no caldeirão da luta partidária, rapidamente o povo é deixado para trás, a tal ponto que à derrota dos liberais sucede um acordo que permite aos seus partidários ocupar cargos no governo conservador. É então que o Coronel Aureliano Buendía resume esse facto – bem pior que a derrota militar – numa única observação: «A única diferença actual entre liberais e conservadores, é que os liberais vão a missa das cinco e os conservadores à missa das oito».

Aqui temos as consequências de os povos deixarem os seus destinos nas mãos de caudilhos, razão pela qual García Márquez acaba assim o seu livro: « e que tudo o que estava escrito neles (nos pergaminhos) era irrepetível desde sempre e para todo o sempre, porque as estirpes condenadas a cem anos de solidão não tinham uma segunda oportunidade sobre a Terra».

Quase 48 anos de ditadura formal, mais 35 anos de ditadura mascarada de democracia, conduzida por caciques liberais como Soares, Cavaco, Guterres, Durão, Sócrates e Passos, eis-nos já com oitenta e três anos de solidão. Ou de servidão, tanto faz. Está quase esgotado o nosso prazo.

É hora, pois, de enfrentar o futuro e tomar as opções que têm de ser tomadas. Interessa-nos a manutenção de Portugal no euro e na UE, ou a recuperação da soberania monetária, com o lançamento de uma nova moeda de emissão estatal, sem a mão usurária dos banqueiros privados? Interessa-nos a renegociação da dívida – ou mesmo a cessação de pagamentos aos agiotas e de empréstimos cada vez mais ruinosos? Interessa-nos a renacionalização do sector financeiro e de grandes grupos económicos e a verdadeira democratização de Portugal?

Em suma: interessa-nos tomar o nosso futuro nas nossas mãos, ou enfrentar a sina da eterna servidão?


 (João Carlos Pereira)

Crónica lida nas “Provocações” da Rádio Baía em 08/08/2012.

quinta-feira, 2 de agosto de 2012

O SUCESSO NO PAÍS DOS CASTRADOS

A trupe que governa o país, onde pontifica um quarteto que seria risível caso não espalhasse angústia, sofrimento e morte (Pedro, Miguel, Vítor e Álvaro), continua a olhar-se ao espelho e a garantir que não há ninguém mais perfeito do que ela – a trupe. Frequentemente risonhos, os quatro truões afiançam que o programa de resgate financeiro do país está a ser um sucesso. São pontos de vista tão respeitáveis como quaisquer outros. Tudo depende dos objectivos, das prioridades e dos princípios ideológicos que se tenham. Os campos de extermínio nazis, por exemplo, eram tidos como um sucesso para um regime que visava eliminar tudo aquilo de que não gostava: opositores políticos, sindicalistas, pessoas de certas raças e credos, como ciganos e judeus. E até homossexuais, embora disso não faltasse nas hostes garbosas do regime. Já as vítimas foram de opinião diferente. Exagerei na comparação? Talvez. Mas fi-lo conscientemente, porque às vezes é preciso carregar no traço para se perceber o desenho – e eu sei para quem estou a desenhar.

Ao sucesso do governo – e dos quatro bufões – corresponde um número anormalmente alto de suicídios, realidade esta que se tenta disfarçar, havendo até indicações expressas nas redacções dos órgãos de comunicação social para não serem imputados à crise.

Ao sucesso do governo – e dos compères Passos, Relvas, Gaspar e Álvaro – corresponde o aumento de gente sem trabalho, designadamente o aumento de casais que sofrem (os dois) da magnífica «oportunidade» de estarem no desemprego. Actualmente, estão a beneficiar deste enorme «sucesso» 8.316 casais, mais 92% do que em igual mês do ano passado (números do IEFP, não meus).

Ao sucesso do governo – e dos três doutores, a que acresce o outro, o Miguel, que também gostava de o ser – corresponde, (segundos dados do INE, não meus), o aumento da população que está no limiar da pobreza, sendo já 1.900.000 o número de portugueses nessa situação. E o «sucesso» é tanto, que quatro milhões e meio de pessoas (ou seja: quase metade dos portugueses), só não estão na pobreza porque recebem prestações sociais pagas pelo Estado.

De sucesso em sucesso – e só no primeiro semestre deste ano –, o Estado, apesar do aumento dos impostos, regista uma quebra significativa nas receitas fiscais, a CP perde 6 milhões de passageiros, os restantes transportes públicos vêem desaparecer cerca de 40% de utilizadores, a Brisa cobra menos 27 milhões de euros em portagens, as famílias fogem de ter filhos, foge-se do país a sete pés e a Segurança Social perde receitas e vê crescer a despesa.

Feitas as contas ao tal sucesso, o empobrecimento dos portugueses é uma realidade, há cada vez mais fome, mais desemprego, mais falências, o alastramento da miséria é iniludível, a recessão instalou-se e, para o quadro ser perfeito, o défice e a dívida são maiores do que antes das medidas salvadoras. Do sucesso…

Entregues a um bando de gente medíocre e sem vergonha – do qual emerge a parelha Passos e Relvas como símbolo da bagunça oportunista, da imoralidade, da insensatez, da desumanidade e da vassalagem aos usurpadores imperiais da Alta Finança – os portugueses não revelam qualquer centelha insurgente.

Por concordarem com a sangria? Nada disso! Por evidente falta de tomates.


(João Carlos Pereira)

Crónica lida nas “Provocações” da Rádio Baía em 01/08/2012.