quarta-feira, 25 de julho de 2012

UMA COISA SEM NOME


Não podemos dar nome à coisa. Nenhum nome lhe assenta bem. Ou melhor: qualquer nome, por muito depreciativo que seja, pode acabar por ser elogioso. Esta coisa, portanto, não pode ter nome, porque ainda não foi inventado aquele que a pode definir com rigor. Dela sabemos que está identificada como portugal, que fica no extremo ocidental da europa, entalada na península ibérica entre o oceano atlântico e a espanha. Há quem lhe chame um país, ou um estado europeu, mas isso resulta apenas da tradição, do hábito. Já o terá sido, de facto, por alguns períodos de tempo, mas sempre de forma episódica, conjuntural, fugaz. E nunca o foi tão pouco, como hoje. Nem no tempo da ocupação filipina.

Desta coisa sabemos hoje que não é um estado soberano – um país independente, se quisermos – porque é governado do exterior, forçado a obedecer a desígnios políticos, económicos e financeiros definidos na estranja e não sufragados pelos indígenas. E que os indígenas, na sua maioria, em nada se incomodam com o facto. São abúlicos, tacanhos (por isso, facilmente manobráveis), desleixados, resignados e fatalistas.

Resulta daqui que outros indígenas, menos estreitos de espírito e mais largos de afoiteza e ganância, conseguem insinuar-se entre esta amálgama de gentios conformados e obtusos, deles se tornando pastores, tendo presente que o fazem em nome de recônditos senhores, aqueles que são, de facto, os donos disto tudo: do chão, dos corpos e das almas dos nativos.

Se a coisa não tem nome que lhe sirva, já os pastores têm vários. Deixemos de lado os que implicam, salpicando, familiares mais próximos, tais como as progenitoras ou as consortes, e vamos aos seus nomes próprios: soares, cavacos, guterres, sampaios, barrosos, santanas, sócrates ou coelhos. Todos eles conduziram – ou conduzem – o rebanho. E todos eles o deixaram mais pequeno, mais magro, mais definhado e mais doente do que ao recebê-lo.

Há dias, entre sons de clarins e trombetas triunfais, o mais recente pastor da carneirada – coelho, de seu nome – afirmou que o resgate português está a ser um sucesso. Dias depois, veio a explicação para a fantástica declaração: acabara de ser publicado um estudo onde se constatava que a coisa (portugal, no dizer deles) sofrera a maior quebra de salários da ocde. O salário médio real em portugal caíra 6,7% em 2011, a quebra mais acentuada no conjunto da ocde, dizia a organização. Mais do que na outra coisa, na chamada grécia. Sucesso, chama a isto o pastor coelho.

 

Em consequência, o rebanho nunca esteve tão magro, tão faminto, tão esfrangalhado, tão doente, tão miserável. E é precisamente nessa altura que salta um ajudante do pastor, até há pouco um indefectível defensor dos carneiros mais idosos e mais pobres, um tal portas, a garantir que o corte da ração feita aos carneiros do sector público não deve ser extensível aos carneiros do sector privado. Porquê? Porque, diz ele, «sendo o problema de portugal o défice do estado, é «injusto» querer que o sector privado tenha a mesma responsabilidade que o público de ajudar o país».

 

Se um carneiro pode criticar um pastor – mesmo sendo um que de acólito nunca passará – sempre lhe digo que vossemecê, ó portas, é um tonto chapado, caso não seja um velhaco da pior espécie. É que o défice do estado não é da responsabilidade de nenhum carneiro – nem do público, nem do privado.

 

É da quadrilha de pastores a que você pertence. E dos vossos patrões, os investidores.

 


(João Carlos Pereira)


Crónica lida nas “Provocações” da Rádio Baía em 25/07/2012.

quarta-feira, 18 de julho de 2012

UM PORTUGUÊS EXEMPLAR


Que me desculpem Agostinho da Silva, Saramago, Eduardo Lourenço, Maria Lamas, Vieira da Silva, Álvaro Cunhal, Miguel Torga, Almada Negreiros, José Régio, Sophia de Mello Breyner, Egas Moniz (o médico), Amália, Eugénio de Andrade, Rómulo de Carvalho, Vasco Gonçalves, Bento de Jesus Caraça, Luís de Freitas Branco, Tomás Alcaide, Vianna da Motta, Cutileiro, Pomar, Cargaleiro, Jorge de Sena e tantos outros que da lei da morte se foram libertando (isto para trazer Camões ao caso) por via da sua obra, do seu carácter, do seu intelecto, da sua arte, do seus méritos e da sua imensa qualidade enquanto seres humanos capazes de acrescentar deslumbramento, qualidade, valor, utilidade e grandeza à vida de todos nós. Que me desculpem, também, os portugueses anónimos que todos os dias aduzem de forma humilde e, principalmente, de forma honrada, qualquer coisa de útil ao país que os viu nascer. Desculpem, mas se há alguém que, nos dias que correm, pode ser considerado o português padrão, na justa medida que representa o carácter e o temperamento do português comum, esse português chama-se Relvas. Isso mesmo: o Miguel. Melhor ainda: o senhor doutor Miguel Relvas. Ele explica, também, o Portugal dos nossos dias.

Meão de altura e de intelecto, contudo espertalhaço, meio fadista, pimpão, lampeiro, oportunista, ganancioso, arrogante, vaidoso, imoral – ou, no mínimo, de moral duvidosa – e matreiro. Ou seja: alguém nada recomendável. Miguel Relvas – o senhor doutor Miguel Relvas – é, acima de tudo, o tipo de criatura que melhor descreve e ilustra o típico político lusitano. Ao atestar tão decisiva comparação sujeito-me, como é óbvio, ao repúdio dos que, achando que o senhor doutor Miguel Relvas, sendo isso tudo, não é paradigma do português comum nem da sua distinta classe política, mas uma singular excrescência. Como Sócrates, noutro estilo, também o terá sido.

Não posso discordar mais dessa visão. A nossa classe política, principalmente a que medrou depois do 25 de Abril, está tão cheia de Relvas que nada mais é que um imenso relvado. Gente que se arrimou à política para subir na vida, para ser alguém, para enriquecer depressa e muito, para se pavonear nos patamares e nas varandas do poder. E para no poder se manter – e à respectiva seita – a qualquer custo. Gente que sabe que pode fazer tudo menos pôr em causa o capital financeiro e as suas receitas económicas, já que é da babugem dele que vieram. E para lá voltarão, se souberem comportar-se. Gente que se deslumbrou na vertigem do mando, do poder, e que soube criar um ninho de promiscuidades lodosas onde se deita a mão a tudo o que se ambiciona, seja uma licenciatura fantasma, sejam luvas e comissões por benesses concedidas, sejam leis à medida dos muitos Eldorados estabelecidos para abrigar as várias quadrilhas que da democracia se alimentam. Gente que se esconde em lojas, sacristias, confessionários e noutros reposteiros do género, partindo e repartindo os bens que a poderosa besta que os elege ainda produz. Chamam-se Relvas, Sócrates, Varas, Loureiros (tanto os Valentins, como os Dias), Amarais, Felgueiras, Isaltinos, Limas, Ricardos Rodrigues, Melancias, Monterrosos, Abílios Curtos, Oliveiras e Costas. E até Soares, Cavacos e outros césares não se livraram de salpicos que em nada abonam o estatuto que gostam de apregoar.

Mas porque garanto ainda que o Relvas – o doutor Relvas – também representa o português comum? Porque não tenho a mínima dúvida que muito mais de metade do eleitorado – talvez uns setenta por cento – daria o seu voto a este «doutor» e ao outro «engenheiro», caso um dia eles voltassem a pedir-lho.
Quero eu dizer que a maioria dos portugueses ou é como Relvas e Sócrates, ou gostaria muito de o ser.


(João Carlos Pereira)

Crónica lida nas “Provocações” da Rádio Baía em 18/07/2012.

quarta-feira, 11 de julho de 2012

ASNOS E MAUS



Em cada dia que passa, o défice aumenta 35 milhões de euros, bastante pior do que no primeiro trimestre de 2011, quando eram Sócrates e Teixeira dos Santos os açougueiros de serviço. Quer isto dizer que a actual dupla de carniceiros, Passos / Gaspar, está a dar cabo do resto. E, pelo andar da carruagem, nenhum deles parece saber porquê. Aliás, do próprio governo surgem opiniões contrárias. Dizem uns, como Vítor Gaspar, que ficaram surpreendidos com a quebra das receitas, dizem outros que a coisa era absolutamente expectável. Nabo sou eu, e aqui há uns meses atrás escrevi e disse que o resultado da austeridade ia dar no que está a dar. Passos Coelho, esse, não diz nada que se perceba, salvo que ainda é cedo, para se falar em mais austeridade. Este ainda é cedo é assustador. Significa que o remédio que está a matar o doente já tem nova dose pronta a ser servida, para o que o Tribunal Constitucional fez o favor de passar a devida receita. Nem a pedido! Ou talvez sim…

Mas se o agravamento do défice provém, essencialmente, da quebra de receita relativa aos impostos indirectos, devido à enorme quebra do consumo das famílias – e estavam à espera de quê? – também resulta do agravamento da despesa, já que as prestações sociais aumentam a olhos vistos, fruto do desemprego e de milhares de novos pobres engrossarem o número dos beneficiários do Rendimento Social de Reinserção.

Segundo consta, Vítor Gaspar é economista. Passos Coelho também. Deviam saber que o buraco só pode ser reduzido e tapado sustendo a queda do PIB. Com menos riqueza gerada não há volta a dar, porque menos riqueza equivale a menos receita e, para além disso, porque cada euro de défice, sobre uma base (PIB) menor, tem um peso percentual maior. Deviam saber, mas parece que não sabem. Porque será?

Há quem garanta que um e outro não primam pela inteligência. Dizem outros que tudo resulta da sua formação neoliberal, a qual não comporta qualquer vestígio de preocupações sociais, vendo as pessoas como meros instrumentos ao serviço dos potentados económicos. Há quem seja da opinião que ambos padecem desses dois males: meio broncos e totalmente insensíveis aos valores humanistas que deviam caracterizar o homem moderno, principalmente quando se propõe gerir a coisa pública. 

Eu acredito que Passos e Gaspar são asnos e maus. E se o facto de serem maus lhes confere elevado estatuto nos meios financeiros que gostosamente servem, já o facto de serem estúpidos nos permite alguma esperança. Os patrões deles na Goldman Sachs, no Citigroup e quejandos, gostam daqueles que usam a inteligência para levar o saque a bom porto. Não é, notoriamente, o caso. Ora, nos tempos que correm, até para fazer o trabalho sujo é preciso ter alguns neurónios – e em bom estado. O tempo dos verdugos boçais já lá vai.

Mas nada disto é novo. Já Shakespeare dizia que «Homens são homens.
Esquecem-se, às vezes, de ser humanos».

E estas bestas de humanos nada têm.


(João Carlos Pereira)



Crónica lida nas “Provocações” da Rádio Baía em 11/07/2012.

quinta-feira, 5 de julho de 2012

VAMOS FAZER CONTAS


O leitor sabe quanto é um milhão de euros? Faz uma ideia, claro. Com ele, podia comprar uma excelente moradia, mobilá-la de alto a baixo, escolher um automóvel de luxo e constituir uma conta bancária que lhe rendesse cerca de mil euros líquidos por mês. Mas quando lhe perguntam quanto é mil milhões de euros, já lhe é mais difícil quantificar esse valor, ou seja, traduzi-lo em bens. Mas é simples: mil milhões de euros equivalem a mil belas moradias mobiladas, como aquela que vimos – que imaginámos –, mais mil automóveis de luxo, mais uma conta bancária que lhe rendesse mil vezes mais do que aquela que abriria com o que sobrasse do tal milhão. Ou seja: que lhe rendesse, não mil euros por mês, mas um interessante milhão de euros por mês. Duzentos mil contos. Nada mau, não é verdade?

Agora, uma pergunta chata: sabe quanto estão a custar ao país aquelas coisas chamadas Parcerias Público-Privadas? No mínimo, mil e trezentos milhões de euros. Ou seja: mil milhões de euros mais trezentos milhões de euros. A módica quantia de três milhões e meio de euros por dia – e sempre a subir.

Agora que já está apto a pensar em milhões de euros – e não em cêntimos, como faz no dia-a-dia – deixe-me perguntar-lhe se faz ideia de quanto foi a burla do BPN? Não se lembra, ou nem sabe dizer? Pois aí vai: foi a maior burla de sempre em Portugal, qualquer coisa como 9.710.539.940,09 euros. Nove mil e oitocentos milhões de euros, em números redondos. Isto dava para sete mil excelentes moradias mobiladas, mais sete mil automóveis de luxo, mais uma conta bancária que lhe rendesse sete milhões de euros por mês, isto é, um milhão e quatrocentos mil contos mensais.

Não lhe pergunto, caro leitor, se sabe quem está a pagar estes milhões todos, pois não quero cometer a indelicadeza de o considerar um atrasado mental, que anda por aí sem conseguir perceber como é que o sistema funciona. Claro que é você, sou eu, somos todos nós, salvo dois tipos de pessoas: as que subscreveram os contratos das PPP e os burlões do BPN.

Num e noutro caso, como sabe, estão altas figuras da finança e da política. Os figurões do costume. Os intocáveis do costume. O julgamento do caso BPN já começou, é verdade, mas a comunicação social pouco tem falado nisso, como convém. Há 15 arguidos, acusados dos crimes de burla qualificada, falsificação de documentos e fraude fiscal, mas estão dispensados de comparecer no julgamento. Furte-se uma lata de atum no supermercado e vai-se dali para o xilindró. Canalha da alta, nem no banco dos réus se senta. Nas PPP é – imagine-se! – a Troika a sugerir ao governo que desfaça o nó górdio, usando, se necessário a indignação popular para o efeito. O quê?! Nada disso, à bruta só se trata o Zé. Punhos-de-renda para quem se abotoa através de contratos leoninos. Compreende-se: parceiros privados e decisores políticos, tanto no governo, como no Parlamento, são unha com carne. São o toma-lá-dá-cá. E não te rales, que o Povo é sereno. E a Justiça é mesmo cega, para além de surda, muda e tetraplégica.

Entretanto, o défice sobe, a recessão aumenta, à austeridade querem juntar mais austeridade, esse chicote que fustiga trabalhadores, pensionistas, gente comum. Burlões intocáveis, gatunos, corruptos e corruptores, enfim, criminosos de alto gabarito ligados ao Centrão, próceres que no PS e no PSD – à vez ou em conluio – vão esvaindo o país, continuam a dividir o que resta pelos verdadeiros donos disto tudo.

Mas não lhe chamam pilhagem. Chamam-lhe privatizações. 

(João Carlos Pereira)

Crónica lida nas “Provocações” da Rádio Baía em 04/07/2012.