quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

POLVO… OU CANCRO?


O PS foi aos arames porque o presidente da República recordou as prioridades nacionais: resolver os problemas da fome e da miséria que por aí alastram, do desemprego, da dívida externa, da dívida pública, do défice, da fraca capacidade produtiva, entre outros. São estas as prioridades nacionais e não, por exemplo, o casamento entre homossexuais, já para não voltar a falar do TGV e de outras obras megalómanas e desnecessárias, que só servem para desviar a atenção dos portugueses dos seus problemas reais e, fundamentalmente, para alguns, entre adjudicantes e adjudicatários, meterem milhões aos bolsos e, claro está, para endividar o país até à ponta dos cabelos. Creio que as pessoas normais e sérias também pensam assim.

(Faço aqui um parênteses para recordar uma má notícia – mais uma: a electricidade vai subir quase 3%. Para vos abrir o apetite, apenas direi que o preço da electricidade, em Portugal, já está 2,2% acima da média europeia, a 27 membros. Para uma empresa que, apenas nos nove primeiros meses deste ano, arrecadou, de lucros líquidos, 835,2 milhões de euros, este não é um aumento: é um assalto. Mas para a semana falaremos disto, com a ajuda do economista Eugénio Rosa).

Mas retomando o fio à meada: criticar Cavaco Silva por alertar para o que alertou, alegando que o PR estava a interferir com a agenda do PS, significa que, na óptica socialista, o presidente não pode falar sobre as grandes questões nacionais, o que é uma rematada imbecilidade, para não lhe chamar um esgar absolutista. Confirma-se o que aqui disse há semanas: o PS entrou em parafuso, e já não diz coisa com coisa. Só estrebucha.

Numa altura em que as expectativas apontam para que o desemprego, em Portugal, possa atingir, em breve, os 15% (o que corresponderá a mais de 1 milhão e 200 mil de desempregados), o festival de irresponsabilidade continua. Já de nada serve a Sócrates e ao seu monolítico ministro das Finanças atirarem as culpas para cima da crise internacional, pois autoridades competentes e insuspeitas da União Europeia, a começar pelo Eurostat e a acabar em economistas de renome, recordam que Portugal lidera o aumento da destruição de empregos, que está, no nosso país, muito acima da média europeia. De facto, no terceiro trimestre deste ano foram destruídos 161 mil empregos face ao mesmo período do ano anterior, um ritmo de variação quase 50% acima da média da zona euro, e só entre o segundo e o terceiro trimestres deste ano a taxa de destruição de emprego foi de 1,1% (menos 58 mil postos de trabalho), e mais do dobro dos 0,5% registados pelo clube do euro.

Perante isto, a ministra do Trabalho garantiu que segue com «muita atenção» a destruição de emprego em Portugal, coisa que muito nos tranquiliza, pois a atenção da senhora ministra é, só por si, tão capaz de suster o ritmo a que o desemprego cresce, como de, ainda por cima, criar os tais 150 mil empregos que o seu primeiro-ministro uma vez prometeu mas não cumpriu. É o falar sem ter nada para dizer.


Quem não está com meias medidas para caracterizar as políticas do PS e da sua trupe governativa, é Medina Carreira. Diz ele que «José Sócrates, é um homem de circo, de espectáculo» e que «Portugal está a ser gerido por medíocres». Sem papas na língua, Medina Carreira nem precisa que lhe dêem corda. E continua: «O desemprego não é um problema, é uma consequência de alguma coisa que não está bem na economia. Já estou enjoado de medidinhas. Já nem sei o que é que isso custa, nem sequer sei se estão a ser aplicadas».
E apontando o dedo à comunicação social: «Vocês, comunicação social, o que dão é esta conversa de “inflação menos 1 ponto”, o “crescimento 0,1 em vez de 0,6”. Se as pessoas soubessem o que é 0,1 de crescimento, que é um café por português de 3 em 3 dias... Portanto, andamos a discutir um café de 3 em 3 dia… mas é sem açúcar».

E uma indirecta, mas muito bem metida: «De quem anda a viver da política para tratar da sua vida, não se pode esperar coisa nenhuma. A causa pública exige entrega e desinteresse». E continuando no mesmo tema – e no mesmo tom: «Eu, por mim, estou convencido que não se faz nada para pôr a Justiça a funcionar, porque a classe política tem medo de ser apanhada na rede da Justiça». Bruxo! – comento eu.

Ainda no campo da corrupção: «O João Cravinho tentou resolver o problema da corrupção em Portugal. Tentou. Foi "exilado" para Londres. O Carrilho também falava um bocado, foi para Paris. O Alegre, depois não sei para onde ele irá... Em Portugal quem fala contra a corrupção, ou é mandado para um "exílio dourado", ou então é entupido e cercado».

E ainda no mesmo tema: «Então, o meu amigo encomenda aí uma ponte que é orçamentada para 100 e depois custa 400? Não há uma obra que não custe 3 ou 4 vezes mais! Não acha que isto é um saque dos dinheiros públicos? E não vejo intervenção da polícia... Há-de acreditar que há muita gente que fica com a grande parte da diferença!».

E refrescando a memória dos portugueses: «Nós tivemos nos últimos 10-12 anos, 4 primeiros-ministros: um desapareceu; o outro arranjou um melhor emprego em Bruxelas, foi-se embora; o outro foi mandado embora pelo Presidente da República; e este, coitado, anda a ver se consegue chegar ao fim».

E à laia de conclusão, diz Medina Carreira: «Um país que empobrece, que se torna cada vez mais desigual, em que as desigualdades não têm fundamento, a maior parte delas são desigualdades ilegítimas, para não dizer mais, numa sociedade onde uns empobrecem sem justificação e outros se tornam multimilionários sem justificação, é um caldo de cultura que pode acabar muito mal. Eu receio mesmo que acabe».

Como se nota, gosto de trazer às minhas crónicas certas vozes descomprometidas e corajosas e que – ainda por cima – não são vozes de esquerda, nem por lá perto. Trago Medina Carreira, trago Mário Crespo, trago Ribeiro Ferreira, trago Pereira Coutinho, trago muitos outros. Não sou sectário. E não sou sectário porque defendo ideias e valores em que acredito, sejam eles numa perspectiva social e política, seja, tão-só – e já é muito – sob o ponto de vista moral. Por isso, se alguém diz por aí qualquer coisa com a qual eu concordo, nada me repugna citá-lo. É curioso, contudo, que a minha experiência política, tanto sindical – antes e depois do 25 de Abril – como autárquica, como na mera condição de cidadão, nunca me permitiu olhar com confiança e simpatia qualquer pessoa ligada ao PS.

Nos bancários, sempre foram um braço dos banqueiros, dos conselhos de gestão ou de administração e dos governos, uns reles traidores que, para cúmulo, sempre tentaram – e muitas vezes conseguiram – alcançar benesses pessoais, vendendo-se por dez reis de mel coado. Cada revisão da tabela salarial e do Contracto Colectivo dos bancários não passa de uma imunda farsa onde, quando o pano cai, os trabalhadores da banca ficam mais pobres e com menos direitos. Na Siderurgia Nacional, na Lisnave, no Arsenal do Alfeite ou na Sorefame, nunca foram outra coisa para além de reles bufos e solícitos sabotadores das lutas laborais.

Nas autarquias, onde bem os conheci, sacrificam tudo e todos aos seus interesses pessoais e partidários, e nunca encontrei nenhum que não me inspirasse um profundo nojo. São, por via de regra, gente que alia uma enorme falta de escrúpulos a uma profunda indigência mental, pessoas capazes das maiores insídias e falsidades.

Por aí, na nossa vida social, seja nos cafés, nas colectividades, nos locais de trabalho, seja onde for, topam-se à légua. Nunca lhes compraria um carro em segunda mão, não lhes confiaria um segredo, não teria ao pé deles um desabafo. São falsos. São maus. São perigosos. Fazem-te uma patifaria qualquer se te tomarem de ponta. Esta é a regra.

Curiosamente, tanto no PSD, como no CDS – e também na vida sindical, laboral, autárquica e social ou cívica – tenho bons amigos, gente com quem se pode debater ideias, gente leal, gente fraterna que sabe respeitar a diferença e aceita, sem dificuldade, pontos de vista novos, não se importando de ponderar e aplicar soluções conjuntas face a determinado problema.

E é por isso, meus amigos, que sempre que o PS toma o poder, a nossa vida social, económica e política se degrada até aos limites do impossível.

Em suma: são feios, porcos e maus. E tudo mais que vocês quiserem acrescentar.

Na verdade, começaram por ser um polvo. Mas já se transformaram num cancro.


(João Carlos Pereira)

Crónica lida nas “Provocações” da Rádio Baía em 30/12/2009.
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quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

PARA O ABISMO, EM ALTA VELOCIDADE


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Bom Natal! Não vai ser, mas ele vai desejar que seja. Não acredita, mas vai desejar. Fica bem desejar Bom Natal, com ar sério, ligeiramente comovido e com um sorriso de bem-aventurança. Especialmente se, atrás, estiver um belo motivo natalício. Por isso, repetirá: Bom Natal! Ele quer ser tido como uma português suave, quase santo, politicamente correcto, civilizado e doce, de acordo com a época. Sabe que não vamos ter um bom Natal, mas isso não importa. Não lhe importa. Quer é que nós pensemos que faz os possíveis e os impossíveis para que o Natal seja aquilo que nos deseja: bom. Aprendeu que, em política, o que parece, é. Se parecer que nos deseja, do fundo do coração, um Bom Natal, todos passaremos um Natal feliz. Ou, se não passarmos, nenhum de nós pensará que a culpa é dele. Bem pelo contrário. Dito daquela maneira, até parece que aquele senhor bem vestido e engravatado, de ar lavado e voz delicodoce, tudo fez, tudo faz e tudo fará para que cada português tenha sempre um bom e santo Natal.

Acabou, aliás, de nos dar uma prenda. Aquilo por que todos aspirávamos há largos anos. Iremos ter no sapatinho os primeiros quilómetros do TGV. Assim, dentro de alguns anos, quando formos passar o Natal ao Porto, ou, se do Porto formos, desejarmos passar o Natal em Lisboa, ou em Badajoz, por exemplo, já poderemos ir e vir de TGV. Pouparemos vinte minutos para lá, mais vinte minutos para cá o que, contas feitas – e se o que ele aprendeu quando se licenciou na Universidade Independente ainda está em vigor – dá qualquer coisa como quarenta minutos bem contados. E ele sabe que tempo é dinheiro. É com tempo – e muita tarimba – que se faz dinheiro. No governo, nos bancos, nas sucatas. Nas adjudicações, em suma.

Os inimigos do desenvolvimento, os derrotistas, os que nada fazem e vivem de braços cruzados, não se cansam de denegrir esta grande obra, que vai, definitivamente – e a grande velocidade – meter Portugal mesmo no meio da Europa. Dizem, por exemplo, que na Escandinávia, não há TGV, apesar de qualquer um dos três países daquela península – a Suécia, a Noruega e Finlândia – ser várias vezes maior do que o nosso país. A Suécia e a Noruega, que são dos países mais desenvolvidos da Europa e do mundo, não querem, nem precisam, de TGVs. Mas referir isto é produzir afirmações maldosas e, também elas, fazendo parte de monstruosa cabala, pois os suecos e noruegueses, por razões históricas e geográficas, não têm o espírito de conquista, de descoberta e, principalmente, de miscigenação que nós, os portugueses, sempre tivemos. Nós queremos continuar a dar novos mundos ao mundo, e quanto mais depressa chegarmos a Madrid, a Paris, a Milão e Roma, a Berlim ou a Bruxelas, mais depressa espalharemos o Magalhães por toda a parte, essa obra prima da capacidade inventiva portuguesa, já que invenção não deixa de ser uma monstruosa intrujice azulada, pirateada da Intel, e destinada, fundamentalmente, a desenrascar uns camaradas com dívidas ao fisco.

Ele quer que acreditemos que o TGV representa, no nosso tempo, aquilo que representaram as caravelas para a época dos Descobrimentos. Longe dele comparar-se ao Infante de Sagres, pois é pessoa humilde, de sangue plebeu e, principalmente, falta-lhe um título nobiliárquico, algo que, infelizmente, a Universidade Independente ainda não tinha no seu cardápio. Apesar disso, há quem lhe chame o Marquês de Freeport, certamente em homenagem ao seu honrado esforço e desinteressada desenvoltura em despachar, num abrir e fechar de olhos, um complicadíssimo processo do licenciamento em Alcochete, essa maravilha da actividade mercantil, que um dia a Natureza, cujas leis não se compram nem se pagam com libras, euros ou outra moeda humana, há-de reconquistar. Já a divisa escolhida por mentes conturbadas e facciosas para este novel marquês – Minto com a Facilidade com que Respiro – denota apenas raivas incontidas e invejas que só os iluminados suscitam.

É verdade que o défice está descontrolado, que a dívida pública é galopante e o endividamento externo parece um incêndio em dia de vento. É verdade que o desemprego é um cavalo com o freio nos dentes, que a fome alastra como uma maré negra, tal como é verdade que, para que milhares de famílias tenham algo de comer na consoada, e milhares de crianças um brinquedo pelo Natal, é necessário andar-se por aí de mão estendida, a apelar à caridadezinha, seja na televisão, seja à porta dos hipermercados, seja a bater à porta das pessoas. É verdade que andamos a mendigar uns para os outros.

É verdade que temos estádios de futebol magníficos – a maioria às moscas – mas o Instituto Português de Oncologia está a rebentar pelas costuras e todos os anos é necessário pedir esmola (é mais fino dizer-se: fazer um peditório) para que aos doentes oncológicos não falte mais do que já falta.

É verdade que não há dinheiro para nada necessário. Mas vamos ter o TGV, pois então. Para todos nós podermos viajar por essa Europa fora. Nós, e os nossos míseros ordenados congelados. Nós, e os nossos empregos precários e a recibos verdes. Nós, e os nossos 700 mil desempregados. Nós, e as nossas pensões de 200 euros. Nós, os pindéricos da Zona Euro, cada vez mais pendurados no último pelo da cauda da Europa. É bonito. E é comovente. Apesar de ser uma paródia.

Ele diz que a construção do TGV vai criar emprego. Pois vai. Mas não diz que vai ser um emprego temporário e restrito, e que o nosso endividamento, que já é galáctico, passará a ser astronómico. Mas não diz que o TGV não vai ser rentável, e que alguém vai ter que pagar, para além da construção, os custos de exploração, para alguns endinheirados se divertirem a dar umas voltinhas a alta velocidade. Mas não diz que os impostos vão ter de aumentar ou, então, pagaremos o TGV com ainda menos saúde, menos educação, menos segurança, menos salários, menos pensões e menos reformas. Com mais fome, mais doença e mais atraso.

Ele não diz que, à semelhança de todas as obras públicas, a construção do TGV vai custar três ou quatro vezes mais do que for orçamentado, pois o saque dos dinheiros públicos é uma norma e uma constante da nossa economia, e que a autorização para o saque, se não for recompensada em euros, vale, pelo menos, um tabuleiro de xadrez ou uma dúzia de robalos.

Ele não diz que os interessados em que se façam estas obras são os governantes que as adjudicarem, são os partidos do poder, são os banqueiros, são os donos das empresas de construção, são os vendedores de equipamentos. Esses é que esfregam as mãos com o TGV. Os portugueses, vão pagar a factura e só esfregarão as mãos… para as aquecer.

E não diz que quando ele desaparecer da cena política, e nós ainda estivermos a pagar o TGV – e outros criminosos destemperos – por muitos e muitos anos, ele e os seus rapazes de estimação estarão bem da vida, a gozar os resultados das suas adjudicações em qualquer recanto do mundo.

Caso, como é previsível, a Justiça, para além de cega, se mantenha surda, muda, coxa e devidamente algemada pelo poder político.

Porque nos graúdos ninguém toca. Como convém, aliás, à ordem natural das coisas.

(João Carlos Pereira)

Crónica lida nas “Provocações” da Rádio Baía em 23/12/2009.
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domingo, 20 de dezembro de 2009

A HORA DA VERDADE

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As notícias que chegam da capital dinamarquesa refletem o caos. Os anfitriões, depois de conceber um evento no qual participariam aproximadamente 40 mil pessoas, não têm forma de cumprir a sua palavra. Evo, que foi o primeiro de todos os Presidentes da ALBA que chegou, exprimiu profundas verdades que emanam da cultura milenar de sua raça.

Assegurou, segundo as agências de notícias, que tinha um mandato do povo boliviano de bloquear qualquer acordo se o texto final não satisfizer as alternativas. Explicou que a mudança climática não é a causa, senão o efeito, que somos obrigados a defender os direitos da Mãe Terra perante um modelo de desenvolvimento capitalista, a cultura da vida perante a cultura da morte. Falou sobre a dívida climática que os países ricos devem pagar aos países pobres e devolver-lhes o espaço atmosférico arrebatado.

Classificou de ridícula a cifra de 10 bilhões de dólares anuais oferecidos até ao ano 2012, quando, na verdade, precisam-se de centenas de milhares de milhões anuais, e acusou os Estados Unidos de gastarem trilhões na exportação do terrorismo para o Iraque e Afeganistão, e na criação de bases militares na América Latina.

O Presidente da República Bolivariana da Venezuela falou no dia 16 na Cúpula às 8h:40, hora de Cuba. Proferiu um discurso brilhante, que foi muito aplaudido. Os seus parágrafos foram lapidares.

Impugnando um documento proposto à Cúpula pela Ministra dinamarquesa que chefiava a Conferência, exprimiu:

“... é um texto que vem do nada, não aceitaremos nenhum texto que não venha dos grupos de trabalho, que são os textos legítimos que foram negociados durante estes anos”.

“Há um grupo de países que se crêem superiores a nós os do Sul, os do Terceiro Mundo...”

“...não nos estranhemos, não há democracia, estamos perante uma ditadura”.

“...vinha lendo alguns lemas que há nas ruas pintados pelos jovens...Uma delas: `não mudem o clima, mudem o sistema`...Outra: “se o clima fosse um banco, já teria sido salvo.”

“Obama [...] recebeu o Prêmio Nobel da Paz no mesmo dia em que enviou 30 mil soldados para matar inocentes no Afeganistão”.

“Apoio o critério dos representantes das delegações do Brasil, da Bolívia, da China, apenas queria apoiar [...], mas não me deram a palavra..."

“Os ricos estão a destruir o planeta, será que vão para outro depois de destruirem este?”

“...a mudança climática é, sem dúvida, o problema ambiental mais devastador deste século.”

“...os Estados Unidos atingirão talvez os 300 milhões de habitantes; a China tem quase cinco vezes mais população do que os Estados Unidos. Os Estados Unidos consomem mais de 20 milhões de barris diários de petróleo; a China chega apenas a cinco ou seis milhões de barris por dia. Não se pode pedir o mesmo aos Estados Unidos e à China.”

“...reduzir a emissão de gases poluentes e alcançar um convênio de cooperação a longo prazo [...] parece ter fracassado, por enquanto. Qual é a razão? [...] a atitude irresponsável e a falta de vontade política das nações mais poderosas do planeta.”

“...a fenda que divide os países ricos dos pobres não deixou de crescer, apesar de todas as cúpulas e das promessas não cumpridas e o mundo segue o seu rumo destruidor.”

“...A receita total dos 500 indivíduos mais ricos do mundo ultrapassa a receita dos 416 milhões de pessoas mais pobres."

“A mortalidade infantil é de 47 óbitos por cada 1000 nascidos vivos, mas nos países ricos é de apenas 5.”

“...até quando vamos permitir que continuem a morrer milhões de crianças por doenças curáveis?”

“Dois mil e seiscentos milhões vivem sem serviços de saneamento.”

“O brasileiro Leonardo Boff escreveu: `Os mais fortes sobrevivem sobre as cinzas dos mais fracos'.”

“Juan Jacob Rosseau dizia... ' Entre o forte e o fraco a liberdade oprime. ' Por isso é que o império fala de liberdade, é a liberdade para oprimir, para invadir, para assassinar, para aniquilar, para explorar, essa é a sua liberdade. E Rousseau acrescenta a frase salvadora: ' Só a Lei liberta."

“Até quando vamos permitir conflitos armados que massacram milhões de seres humanos inocentes no intuito dos poderosos se apropriarem dos recursos de outros povos?”

“Há quase dois séculos um libertador universal, Simon Bolívar disse: 'Se a natureza se opõe, lutaremos contra ela e faremos com que nos obedeça.”

“Este planeta viveu milhares de milhões de anos sem nós, sem a espécie humana; nós não lhe fazemos falta para que ele exista, mas nós sem a Terra não vivemos..."

Evo falou na manhã de hoje, nesta quinta-feira. O seu discurso também será inesquecível.

“Desejo exprimir a nossa inconformidade pela desorganização e pelas dilações que existem neste evento internacional...", disse com franqueza no início das suas palavras.

As suas idéias básicas foram:

“Quando perguntamos o que se passa com os anfitriões, [...] dizem-nos que são as Nações Unidas; quando perguntamos o que se passa com as Nações Unidas, dizem que é a Dinamarca, e não sabemos quem desorganiza este evento internacional..."

“...estou espantado demais porque apenas falam dos efeitos e não das causas da mudança climática.”

“Se nós não identificamos de onde provem a destruição do meio ambiente [...] com certeza, nunca iremos resolver este problema...”

“...debatem-se hoje duas culturas: a cultura da vida e a cultura da morte: a cultura da morte, que é o capitalismo. Nós, os povos indígenas, dizemos, é o viver melhor, melhor à custa do outro.”

“...explorando o outro, saqueando os recursos naturais, violando a Mãe Terra, privatizando os serviços básicos...”

“viver bem é viver na solidariedade, na igualdade, na complementaridade, na reciprocidade..."

“Estas duas formas de vida, estas duas culturas da vida são questionadas quando falamos da mudança climática, e caso não decidamos qual a melhor forma de vivência ou de vida, com certeza nunca iremos resolver este tema, porque temos problemas de vivência: o luxo, o consumismo que faz mal à humanidade, e não queremos dizer a verdade neste tipo de eventos internacionais.”

“dentro da nossa forma de vida, o não mentir é algo sagrado, e isso não o praticamos aqui.”

“...na Constituição está o ama sua, ama llulla, ama quella: não roubar, não mentir, nem ser fracos.”

“...a Mãe Terra ou a Natureza existe e existirá sem o ser humano; mas o ser humano não pode viver sem o planeta Terra e, portanto, somos obrigados a defender o direito da Mãe Terra."

“...cumprimento as Nações Unidas, que este ano, finalmente, declarou o Dia Internacional da Mãe Terra.”

“...a mãe é algo sagrado; a mãe é a nossa vida; a mãe não se aluga, não se vende nem se viola, há que respeitá-la.”

“Temos profundas diferenças com o modelo ocidental, e isso está sendo questionado neste momento.”

“Estamos na Europa, vocês sabem que muitas famílias bolivianas, famílias latino-americanas vêm para a Europa. Para que vêm? Para melhorarem as suas condições de vida. Na Bolívia poderiam estar a ganhar 100, 200 dólares por mês; mas essa família, essa pessoa vem aqui para cuidar um avô europeu, uma avó europeia e ganha 1000 euros mensais.”

“Estas são as assimetrias que temos de continente para continente e somos obrigados a debater como procurar determinado equilíbrio, [...] reduzindo estas profundas assimetrias entre famílias, entre países, e especialmente entre continentes.”

“Quando [...] as nossas irmãs e irmãos chegam aqui para sobreviverem ou para melhorarem as suas condições de vida, são expulsos, existem esses documentos chamados de retorno [...], mas, quando há muito tempo, os avós europeus chegavam à América Latina nunca foram expulsos. As minhas famílias, os meus irmãos não chegam aqui para monopolizarem nem minas, nem têm milhares de hectares para ser terratenentes. Antes nunca existiram nem vistos nem passaportes para que eles chegassem à Abya Yala, agora chamada América.”

“...se não reconhecemos o direito da Mãe Terra, em vão estaremos falando de 10 000 milhões, de 100 000 milhões, o que é uma ofensa para a humanidade.”

“os países ricos devem acolher todos os migrantes que sejam afectados pela mudança climática e não devolvê-los aos seus países como estão fazendo neste momento...”

“...a nossa obrigação é salvar toda a humanidade e não a metade da humanidade.”

“...a ALCA, Área de Livre Comércio nas Américas. [...] não é uma Área de Livre Comércio nas Américas, é uma área de livre colonização nas Américas...

Entre as perguntas que Evo sugeria para realizar um referendo mundial sobre a mudança climática estavam:

“...Você concorda com restabelecer a harmonia com a natureza, reconhecendo os direitos da Mãe Terra?...

“...Você concorda com mudar este modelo de consumismo e esbanjamento, que é o sistema capitalista?...”

“...Você concorda com que os países desenvolvidos reduzam e reabsorvam as suas emissões de gases de efeito estufa...?”

“...Você concorda em recolher tudo o que se gasta nas guerras para colocar esse dinheiro num maior orçamento de defesa para a mudança climática?...”

Como é conhecido, em 1997, na cidade japonesa de Kyoto foi assinado o Convênio das Nações Unidas sobre a Mudança Climática, que obrigava 38 países industrializados a reduzirem as suas emissões de gases de efeito estufa numa determinada percentagem com respeito às emitidas durante o ano 1990. Os países da União Europeia comprometeram-se a reduzir 8%, esse convênio começou a vigorar no ano de 2005, quando a maioria dos países assinantes já o tinham ratificado. George W. Bush, então presidente dos Estados Unidos, – o maior emissor de gases de efeito estufa, responsável da quarta parte dessas emissões – tinha rejeitado o convênio desde meados de 2001.

O resto dos membros das Nações Unidas seguiu em frente. Os centros de pesquisa continuaram a sua tarefa. É evidente, dado que uma grande catástrofe ameaça a nossa espécie. Talvez o pior seja o egoísmo cego de uma minoria privilegiada e rica pretende lançar o peso dos sacrifícios necessários sobre a esmagadora maioria dos habitantes do planeta.

Essa contradição é reflectida em Copenhague. Lá milhares de pessoas estão defendendo com grande firmeza os seus pontos de vista.

A força pública dinamarquesa utiliza métodos brutais para vencer a resistência; muitos dos que protestam são presos preventivamente. Comuniquei-me com o nosso chanceler Bruno Rodríguez, que participava num acto de solidariedade em Copenhague junto de Chávez, de Evo, de Lazo e de outros representantes da ALBA. Perguntei-lhe a quem estava reprimindo com tanto ódio a polícia dinamarquesa, torcendo-lhes os braços e golpeando-os repetidamente nas costas. Respondeu-me que eram cidadãos dinamarqueses e de outras nações europeias, bem como membros dos movimentos sociais que exigiam à Cúpula uma solução real agora para encarar a mudança climática. Além disso, disse-me que às 24h00 continuariam os debates da Cúpula. Quando falei com ele já era de noite na Dinamarca. A diferença horária é de seis horas.

Desde a capital dinamarquesa, os nossos companheiros informaram que amanhã, sexta-feira, a sessão será ainda pior. Às 10h:00 da manhã a Cúpula das Nações Unidas será suspensa durante duas horas e o Chefe de Governo da Dinamarca terá um encontro com 20 Chefes de Estado que foram convidados por ele para discutir “problemas globais” com Obama. Assim é denominada a reunião cujo objetivo é impor um acordo sobre a mudança climática.

Embora nessa reunião participem todas as delegações oficiais, só poderão opinar “os convidados”. É claro que, nem Chávez, nem Evo se encontram entre os que podem dar a sua opinião. A ideia é que o ilustre Prêmio Nobel possa proferir o seu discurso pré-elaborado, antecedido pela decisão que será adoptada nessa reunião de adiar o acordo para fim do próximo ano na Cidade de México. Aos movimentos sociais não lhes será permitido participar. Após esse show, no salão principal do evento continuará a “Cúpula” até o seu inglório encerramento.

Como a televisão veiculou as imagens, o mundo pôde contemplar os métodos fascistas empregues em Copenhague contra as pessoas. Jovens na sua esmagadora maioria, os manifestantes reprimidos ganharam a solidariedade dos povos.

Para os chefes do império, apesar das suas manobras e das suas cínicas mentiras, está a chegar a hora da verdade. Os seus próprios aliados acreditam neles cada vez menos. No México como em Copenhague e em qualquer outro país do mundo, encontrarão a resistência crescente dos povos que ainda não perderam a esperança de sobreviver.
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(Fidel Castro Ruz)
17 de Dezembro de 2009

quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

OFENSAS E ELOGIOS

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Uma senhora deputada chamou palhaço a um senhor deputado. E caiu o Carmo e a Trindade. Segundo percebi, a intenção da senhora era ofender o senhor deputado – e a maioria das pessoas também assim pensou. Se a intenção era essa, falhou. Aquilo foi um elogio. Ofensa seria chamar deputado a um honesto palhaço.

Incapaz de perceber o elogio, o senhor deputado retorquiu que a senhora deputada se vendia por qualquer preço para conseguir um lugar, expressão que tem, como sabemos, certas leituras nada laudatórias. No entanto, se o deputado queria ofender a deputada, nada mais fez do que elogiá-la. Ofensa grave, isso sim, seria chamar deputada a uma mulher que vende esforçadamente o que tem – e que é dela e só dela – para sobreviver.

Não percebendo isto, a senhora deputada voltou à carga, lembrando que outro ilustre deputado, da mesma trupe socialista do senhor deputado em causa, havia dito que os não menos distintos – e ainda mais ilustres – deputados da oposição tinham comportamentos esquizofrénicos.

Ora, chamar esquizofrénico a alguém, mesmo que este o não seja, jamais pode ser considerada uma ofensa por aí além. Cá para mim, não é mesmo uma ofensa, de todo. Seria, quando muito, um mau diagnóstico. E chamar esquizofrénico a quem o é, só pode ser, no máximo, uma pura manifestação de mau gosto e crueldade. Mas ofensa não é, certamente.

Porém, chamar deputado a um esquizofrénico, caso este não seja parlamentar, aí já estamos perante um insulto dos fortes, se não se tratar mesmo de uma difamação gravíssima, passível de agravar o estado clínico do doente, podendo levá-lo, até, a actos desesperados.

Como vemos, não insulta quem quer, mas quem sabe. Contudo, fiquei com a vaga ideia, depois destas brilhantes pérolas de debate parlamentar, que muitos dos senhores e senhoras deputadas pensam que a Assembleia da República – a casa mãe da nossa insigne democracia – não passa de um circo, um prostíbulo ou um hospício. Enfim, eles lá sabem…

Já estou a ver e a escutar as reacções negativas dos devotos deste estado de coisas, ao lerem – ou ouvirem – as minhas palavras. Rangem os dentes, roem as unhas, ruminam insultos, imaginam cruzes ou fogueiras inquisitoriais onde puniriam os meus desaforos, pensam, talvez, nos velhos cárceres de Caxias ou Peniche. Que se danem. Por enquanto, ainda posso ter opiniões políticas e debatê-las. É aproveitar enquanto há. Mas antes que alguém pense o que não deve, por míngua de massa cinzenta ou simples má-formação, deixem-me explicar porque digo que é preferível ser palhaço, prostituta ou esquizofrénico (se não forem, também deputados, é bom de ver…) a ser um eminente deputado da nação.

O palhaço faz rir, ameniza o nosso sobrolho carregado pelo peso da vida difícil que nos é imposta. O palhaço faz a alegria das crianças, desperta o seu riso puro e deslumbrado, enche de brilho os seus olhos. O palhaço ensina como a vida é, de um modo colorido e bem disposto, pintando de tons risonhos e insólitos as coisas do nosso quotidiano. Se nos lembrarmos das cenas do palhaço rico e do palhaço pobre, veremos que ali está retratada a nossa sociedade desigual e, principalmente, que é para o palhaço pobre que vai a nossa atenção e a nossa maior simpatia. O palhaço ganha honestamente a vida, espalhando risos e úteis esquecimentos. E, apesar dos seus disfarces, não engana. Não mente. Não mata. Não rouba. Não espalha a miséria e desigualdade. Um palhaço é útil à sociedade.

A prostituta – a mulher que se vende – é também ela, de certa forma, um palhaço. Vende momentos de prazer. Vende a ilusão do amor. E quem a ela vai, sabe ao que vai. Porque, tal como o palhaço, representa mas não engana. Nunca será por ela que o mundo explodirá em guerras, e definhará com o desemprego, a miséria e a desigualdade. Uma prostituta é útil à sociedade. Por isso, vive da mais antiga profissão do mundo, que também será, certamente, a última. Quando já ninguém se lembrar do que era um deputado.

Um esquizofrénico é um doente. A esquizofrenia é uma doença do cérebro, que atinge uma em cada cem pessoas, independentemente da sua raça, condição social e cultura. No essencial, esta doença interfere com a capacidade de uma pessoa pensar de uma forma clara, de lidar com as suas emoções, de tomar decisões e de se relacionar com os outros. E, ao contrário de um deputado, não é esquizofrénico quem quer.

Um deputado, contudo, mesmo não sendo esquizofrénico, tem uma enorme incapacidade para se relacionar com os outros, desde que esses sejam de uma bancada diferente, salvo algumas excepções, como Manuel Alegre, que, enquanto deputado, também não se relacionava muito bem com alguns dos seus correligionários. Pelo que se vê, ouve e, principalmente, sente na pele, um deputado também tem uma enorme dificuldades em tomar decisões, pois não se conhece nenhuma – mas nenhuma, mesmo – que tenha contribuído para melhorar o país, transformando-o, pelo menos, num país menos desigual, mais justo e livre das muitas chagas sociais que por aí proliferam e que ninguém, em seu perfeito juízo, pode negar.

Por outro lado, um deputado, pela maneira como fala e age, demonstra uma clara dificuldade em controlar as suas emoções, exaltando-se com facilidade, não dizendo coisa com coisa – ou dizendo uma coisa hoje, e o contrário amanhã, caso passe do governo para a oposição, e vice-versa – esbracejando agora, dormitando logo a seguir, rindo a despropósito, exclamando «apoiados» ou uivando sonoras vaias a torto e a direito.

Bom, posto isto, falta dizer que um deputado é aquele ser humano que, pago pelo bolso de todos nós, passa o tempo espreguiçado nos estofos parlamentares – quando não está cá fora a tratar da sua vida privada ou dos interesses do seu partido – e que manda uns bitaites de vez em quando (devo dizer que bitaite não é um vocábulo com dignidade de acordo ortográfico, tal como bué, por exemplo, mas um calão empregado pelos portugueses há tempo indeterminado, com origem obscura, mas que quer dizer opinião ou palpite). Ou seja – e face aos resultados práticos da actividade parlamentar – um deputado, no geral, é um inútil caríssimo e perigoso.

Assim sendo, só me resta concluir que, ao invés de sustentar o Parlamento, sai mais barato – e é mais saudável – a malta ir ao circo, ir às meninas e comparticipar, a 100%, as despesas com os medicamentos e tratamentos da esquizofrenia.

Pelo menos, enquanto a rebaldaria que vai ali por S. Bento for o que é.


(João Carlos Pereira)

Crónica lida nas “Provocações” da Rádio Baía em 16/12/2009.
Não deixe de ouvir em 98.7 Mhz e participar pelos telefones 212277046 ou 212277047 todas as quartas-feiras entre as 09H00 e as 10H00.


quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

UM PARTIDO EM PARAFUSO

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Não sei se já repararam, mas sempre que se fala em corrupção na Assembleia da República, o Partido Socialista fica de cabelos em pé. Arranja sempre uma desculpa para evitar a discussão e, principalmente, para aprovar medidas eficazes que combatam o fenómeno, mesmo que as propostas partam de gente sua, como foi o caso das medidas preconizadas pelo engenheiro João Cravinho, que é mesmo engenheiro e tudo e, principalmente, é pessoa séria e sem rabos de palha. Não ficam bem no retrato, mas por aquelas bandas já se perdeu completamente a cabeça, depois de se ter perdido completamente a vergonha.

Talvez por isso, no último debate, Sócrates voltou a ser o animal feroz. Ou, para sermos mais exactos, o animal furioso. A sua atitude, os seus esgares, a sua agitação e o seu discurso demonstram o quanto se sente encurralado e sem saída para os muitos problemas que o afogam. A governação não passa de uma catadupa de palavras, promessas, explicações atabalhoadas e ridículas acções de pura propaganda. Todos os sectores da nossa vida política, social e económica pioraram durante o seu reinado, mesmo antes – e muito para além – do que as costas largas da crise internacional permitem justificar. Na verdade, a única coisa que insiste em dizer é que tudo estaria ainda pior se não fosse a sua iluminada governação. Esquece-se que foi o último a admitir a crise e o primeiro a declarar o seu fim, mesmo que o descalabro económico e social seja aquele que se sabe e que se sente.

Para além da hecatombe governativa, vê-se atolado em embrulhadas do arco-da-velha. Não me lembro de personagem da nossa vida pública ou privada com um pendor tão grande para se envolver em sarilhos. Casas serranas, apartamentos de Lisboa, aterros sanitários, processo Cova da Beira, co-incineração, Freeport, licenciatura e, agora, o Face Oculta, são coisas demais para um homem só. E – convenhamos – são coisas demais para se tratar, apenas, de uma campanha negra ou monstruosa cabala.

Fase caricata e reveladora do desnorteio socialista (também não é para menos), foi aquela investida contra Manuela Ferreira Leite, por esta ter dito, há meses, que Sócrates mentia quando afirmava que nada sabia sobre o negócio da TVI, que, entre outras coisas, visava calar – e calou – vozes incómodas para o senhor primeiro-ministro. Desembaraçados e sem papas na língua – mas com muitas papas nos miolos – lá vieram à liça gritar Aqui, del Rei!, que a senhora, para dizer aquilo, já sabia das escutas do caso Face Oculta. Brilhante! A questão passou a ser, então, uma eventual quebra do segredo de justiça, e não a eventual maquinação antidemocrática para calar um órgão de comunicação social? Estou enganado, ou isto nada mais é do que a confissão de que pelo menos uma das conversas entre Vara e Sócrates versava o negócio TVI? Para mim, fica claro que se o PS acha que Ferreira Leite sabia que Sócrates mentia porque teve acesso às escutas, então é porque o PS sabe que as escutas apanharam Sócrates e Vara com a boca na botija. Se houver por aí outra leitura disto, fico à espera dela.

Já que estamos a falar em corrupção, vem a propósito tocar na iniciativa do PSD destinada a investigar o que é isso, afinal, da Fundação para as Comunicações Móveis, cuja grande – e, praticamente, única – tarefa foi entregar, sem concurso público, o projecto de produção e distribuição do famoso computadorzinho Magalhães a uma firma de rapaziada do PS com dívidas ao Fisco. Falámos precisamente disso aqui há um bom par de meses atrás, manifestando as mesmas dúvidas que o PSD agora manifesta. Seria bom que toda a oposição se esforçasse a sério em apurar a verdade, porque estou fartinho de me sentir lixado e mal pago com tanta bagunça que por aí vai, sempre à conta dos nossos bolsos. É tempo de gritar um sonoro Irra! (ou coisa pior) Basta de trafulhices!

Já estou a ouvir por aí alguns puristas – e juristas – a dizer que não se pode falar em trafulhices sem que o caso seja devidamente apurado e, como se costuma dizer, transite em julgado. Isso era se, em Portugal, as coisas funcionassem com clareza, rigor e isenção. Ou, simplesmente, com normalidade. Isso era se Portugal fosse um país de razoável grau de pureza. O que, como é sabido e mais que sabido, não é o caso.

Mas se dúvidas eu tivesse sobre a pouca clareza e muita opacidade da tal Fundação para as Comunicações Móveis (irmã gémea da famigerada Fundação para a Prevenção e Segurança, de um certo Armando Vara) elas, as dúvidas, teriam desaparecido quando o inefável Assis (mais conhecido por ter levado uns apertões em Felgueiras, dados por alguns outros socialistas, aficionados da madame Fátima, e por Rui Rio lhe ter dado um belo banho nas autárquicas de há 4 anos) se enxofrou todo contra a iniciativa. Mais uma vez não se compreende de que tem medo o PS.

Assis não foi de meias medidas, e classificou logo a iniciativa do PSD de «radical, extremista e irresponsável (…) e de todo imprópria de um grande partido com vocação de alternativa de poder». Ouvi… e não acreditei! Então, saber o que se passou numa fundação financiada por dinheiros públicos e tutelada pelo Governo, se há dúvidas sobre as suas actividades, é ser-se irresponsável, extremista e radical? Por alma de quem? E imprópria de um grande partido com vocação para ser alternativa de poder, porquê? Ocorre-me a ideia que isto pode querer dizer que, na óptica de Assis, o PSD deveria saber como a coisas são, ou seja: amanho-me eu hoje, amanhas-te tu amanhã.

Este estrebuchar desvairado do PS, esta incapacidade de parar para pensar antes de abrir a boca, este estado de irritabilidade permanente e estes tiques próprios de capataz que perdeu o chicote, significam que o partido já entrou em parafuso. Abra o PS a porta à Comissão de Inquérito, sem medos e sem reservas, e todos ficaremos satisfeitos se nada de anormal for detectado. Pena foi que a mana, a defunta Fundação para Prevenção e Segurança, tivesse morrido de morte macaca e fosse cremada sem se ter feito e devida autópsia. A mesma e conveniente morte que teve a Universidade Independente, não se está a ver.

Estava eu nestas tristes lucubrações, quando me passaram pelos olhos as palavras de uma pessoa insuspeita, nem mais, nem menos, que o presidente da Caritas Portuguesa, Eugénio da Fonseca, que afirmou o seguinte:

«São escandalosos os níveis de corrupção que este país está a registar. É escandalosa a disparidade que existe de compensações que determinados cidadãos têm pelos cargos que desempenham, relativamente ao geral dos rendimentos que são auferidos pela população portuguesa». A estas palavras, proferidas no final do conselho geral da Caritas Portuguesa, Eugénio da Fonseca acrescentou que «há, muitas vezes, até prémios que se concedem por maus serviços prestados». Depois de se dizer chocado com estas situações, o presidente da Caritas Portuguesa declarou que «a corrupção toda ela é má, mas há pessoas que, pelos lugares que ocupam, não podem, de forma nenhuma, entrar em mecanismos que não sejam éticos, para poderem ser farol pelo qual se orientam os demais cidadãos».

Que diabo! Será que o senhor se está a referir àquelas pessoas que nós sabemos?

Sim, ou não? Aceitam-se apostas.

(João Carlos Pereira)

Crónica lida nas “Provocações” da Rádio Baía em 09/12/2009.
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quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

AS PALAVRAS E OS ACTOS



Na semana passada abriu-se aqui uma discussão interessante. Pelo menos dois ouvintes criticaram os termos que eu utilizei para definir quem tinha defendido certas ideias num programa anterior. Disse eu que o ouvinte em causa, para defender o que defendeu, só poderia ser uma de duas coisas: ou um cego mental, ou um crápula absoluto. Cego mental é aquele que não é capaz de compreender a realidade, porque lhe falta a lucidez para tanto. Crápula, no sentido em que apliquei o termo, é aquele que, não sendo cego mental, se porta como se o fosse, pois nega a realidade, tentando, com isso iludir os outros. É uma pessoa falsa, libertina, devassa, podre, que são outros sinónimos de crápula.

Os dois ouvintes que saltaram contra a rispidez das minhas palavras, apesar de estarem contra as posições do alvo delas, afirmaram que elas, as expressões, eram impróprias do debate democrático e de quem defende a liberdade de expressão e de opinião. Parece-me que os dois ouvintes, não sendo ingénuos, são, pelo menos, excessivamente passivos no que respeita à luta ideológica, que, certamente, situam num campo de um debate de ideias entre pessoas com visões diferentes da vida e da sociedade, algo que se passa lá por cima, ao pé das nuvens, sem nada ter a ver com as misérias da nossa vidinha real. Uma coisa assim: uns defendem que este sistema político e económico é mau porque produz desemprego, se sustenta de baixos salários, fomenta as desigualdades sociais, condiciona o acesso à saúde e à educação, promove a corrupção, subverte a justiça – que é uma para os poderosos e outra para o cidadão comum – enfim, transforma a nossa vida colectiva num inferno terreno, um campo de miséria, violência, injustiça e morte; outros defendem que assim é que está bem… e siga o baile.

Bom. Se tudo se limitasse a um jogo de palavras, uma amena cavaqueira, uma espécie de passatempo desligado da vida e dos seus dramas, eu até compreendia a crítica dos dois ouvintes. Mas o que se passa é que estamos a falar de coisas que vão muito para além das palavras. Estamos a falar da vida e da morte, da saúde e da doença, do saber e do obscurantismo, da opulência e da miséria, da justiça e da devassidão, da honra e da iniquidade, dos valores éticos e da mais absoluta imoralidade. E se eu admito que um ignorante, um analfabeto, um néscio como milhares de néscios que a nossa sociedade produz em cadeia, possa aceitar – ou, até, aplaudir – a bagunça asquerosa em que está transformada a nossa vida (os tais cegos mentais), já não levo à conta da estupidez e da ignorância que um senhor doutor, maior e vacinado, aceite e justifique este estado de coisas, a não ser que seja um dos beneficiados e, no fundo, cúmplice, das malfeitorias que o povo português sofre.

Há – ou não há – cerca de dois milhões de pobres em Portugal? Há – ou não há – milhares de idosos sem amparo, que não têm acesso aos cuidados médicos e medicamentosos necessários? Há – ou não há – cerca de 600 mil desempregados, o que equivale a centenas de milhares de famílias a viver o drama da pura subsistência? Há – ou não há – doentes há meses à espera da operação que lhes salve a vida? Há – ou não há – crianças com fome, que não sabem o que é um copo de leite ou um bife? Há – ou não há – uma criminalidade galopante, desde a mais rasteira e violenta, até à mais alta e sofisticada, de colarinho imaculado, instalada nos altos patamares do estado e das grandes empresas? Há – ou não há – milhares de jovens, muitos deles licenciados, que não conseguem saber que dia vai ser o de amanhã, ou porque não conseguem emprego, ou porque o que têm, precário, vai chegar ao fim? Há – ou não há – mortes escusadas às portas das urgências fechadas e grávidas a parir à beira da estrada ou dentro de ambulâncias, porque nem todas vivem perto de Badajoz? Há – ou não há – uma monstruosa disparidade entre os salários e as pensões de reforma da população em geral e os ordenados e mordomias da elite empresarial – tanto pública, como privada – que representa o maior fosso de rendimentos registado na Europa comunitária? Há – ou não há – uma situação de corrupção galopante, onde altas figuras do estado e do mundo empresarial estão comprovadamente associadas? Há – ou não há – um esforço enorme para abafar tudo isto e denegrir aqueles agentes da justiça que ainda têm consciência dos seus deveres e do que é a palavra honra? Há – ou não há – quem já tenha posto termo à vida porque não encontrou saída para os seus problemas económicos e sociais? Há – ou não há – quem tenha morrido de abandono e miséria?

Se eu vos responder que há, sim senhor, estarei a mentir?

E digam-me, agora: o que é mais grave? Defender as políticas e os políticos que estão na origem disto tudo – ou seja: ser cúmplice assumido desta chacina social – ou chamar cego mental, ou crápula, a quem defende, consciente e criminosamente, este estado de coisas?

Todos têm a liberdade de emitir as suas opiniões, é certo. Concordo e subscrevo. Mas eu tenho a liberdade de as qualificar. E de justificar, como acabei de fazer, os termos que usei. Porque, meus amigos, eu não venho aqui brincar aos jogos florais ou falar de coisas abstractas e inócuas. Não venho aqui trocar ideias, como quem troca prendas ou abraços, e no fim todos ficamos felizes. Eu estou aqui para denunciar os crimes e os criminosos que, em nome da democracia e sob o manto da política, espalham a miséria e a devassidão por esse país fora. Que se aproveitam dos cargos para enriquecer, enquanto determinam, com força de lei, o aperta o cinto para os governados.

Eu estou aqui, em suma, para combater as políticas neoliberais que espalham a fome, a morte e a guerra por todo o mundo, enquanto os seus autores se banqueteiam na mais degenerada e revoltante opulência. E se há que ache que as minhas palavras são mais graves que os males de que todos padecemos, então é porque alguém não percebeu do que estou a falar. Ou eu não me soube fazer entender.

Talvez um poema que escrevi há uns anos diga melhor as coisas:


O menino sentou-se numa poça de água e fez um poema de lama
A mãe sentou-se à mesa vazia e fez um poema de lágrimas
O pai sentou-se à beira do desespero e fez um poema de sangue

E o poeta
ao vê-los
sentou-se e limitou-se
a transcrevê-los.


(João Carlos Pereira)

Crónica lida nas “Provocações” da Rádio Baía em 02/12/2009.

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quarta-feira, 25 de novembro de 2009

CRÓNICA PARA OS CASTRADOS

...
«A história da justiça é negra quando é avaliada pelos resultados e pela eficácia no combate ao crime económico e à corrupção. O sistema de justiça treme e abana todo, quando é confrontado com uma investigação criminal em que os visados são gente poderosa e com influência. E treme de baixo para cima e de cima para baixo, dando uma imagem de si própria de medo e de falta de confiança.

A justiça e os seus actores não estão preparados para lidar com este tipo de criminalidade, nem têm capacidade ou força para enfrentar gente fina de colarinho branco, para investigar os “donos” do regime democrático. Sim, porque o verdadeiro dono do regime político não é o povo que vota de quatro em quatro anos, mas os partidos políticos com vocação de poder. A lógica clientelar partidária transformou os partidos em oligarquias que se servem do poder para ajudar os amigos, os confrades, a conseguir bons empregos e bons financiamentos. Há muito que o mérito deixou de ser o elemento fundamental a ter em conta no preenchimento dos bons lugares. E esta teia é tão poderosa e tentacular que, servindo-se dos valores da democracia representativa, já conseguiu, também, contaminar o sistema judicial.

A ideia de nepotismo começa a ser aceite, face ao laxismo cívico. Somos o País do faz-de-conta, das aparências e do deixa-andar. O que é preciso é fazer o jeito e não incomodar quem nos governa. E este mal já chegou à justiça. E quando a justiça treme e tem dois pesos e duas medidas, quem salva a República?

A qualidade e a eficácia da investigação criminal medem-se pelos resultados obtidos no combate e na repressão do crime económico. Tudo o mais pouco interessa para a transparência e qualidade da democracia.

O défice da acção penal, no campo da repressão deste tipo de crimes, o desfasamento dos códigos relativamente a estes crimes, a ausência de uma prevenção corajosa e a morosidade, fazem o resto que falta para esta pálida imagem da justiça.

Neste momento difícil na vida dos tribunais, devido a processos como ‘Submarinos’, ‘Sobreiros’, ‘Freeport’, ‘Apito Dourado’, ‘BPN’ e ‘Face Oculta’, era chegada a hora de os juízes dizerem basta. Bastava, que quisessem exercer as suas competências constitucionais, de forma exemplar e rigorosa, pondo na ordem esta gente que pensa estar acima da lei. Não era preciso invadir as competências atribuídas ao poder político.

E, se em vez de tremerem, agissem bem e depressa, tinham o cidadão como aliado, reganhando, junto da sociedade, o prestígio e a confiança perdida. A escolha é entre o abismo com morte certa e o paraíso da moral e da ética que nos salva a alma».

Estas palavras não são minhas, caso já esteja por aí alguém a afiar as unhas para saltar em defesa da malandragem reinante e a acusar-me de perseguir, com fixações maldosas, certos patifes. São palavras do juiz desembargador Rui Rangel. Elas são uma cacetada, de alto a baixo, na cabeça daqueles que, sendo mentalmente cegos, absolutamente crápulas ou castrados militantes, ainda se atrevem a defender o bando de gente desprezível que tomou conta do país, seja através das rédeas da governação, seja através do sistema económico, seja através do abraço espúrio entre as duas coisas. Elas respondem, de forma exemplar, ao cego mental – ou ao crápula refinado – que, há oito dias, dizendo-se jurista, ergueu a voz em defesa dos suspeitos do caso Face Oculta, pondo-se ao lado de José Sócrates e dos defensores da destruição das escutas que o implicam em acções mais do que suspeitas.

«O processo Face Oculta deu-me, finalmente, resposta à pergunta que fiz ao ministro da Presidência, Pedro Silva Pereira – se no sector do Estado que lhe estava confiado havia ambiente para trocas de favores por dinheiro. Pedro Silva Pereira respondeu-me, na altura, que a minha pergunta era insultuosa.

Agora, o despacho judicial que descreve a rede de corrupção que abrange o mundo da sucata, executivos da alta finança e agentes do Estado, responde-me ao que Silva Pereira fugiu: Que sim. Havia esse ambiente. E diz mais. Diz que continua a haver. A brilhante investigação do Ministério Público e da Polícia Judiciária de Aveiro revela um universo de roubalheira demasiado gritante para ser encoberto por segredos de justiça.

O país tem de saber de tudo, porque por cada sucateiro que dá um Mercedes topo de gama a um agente do Estado, há 50 famílias desempregadas. É dinheiro público que paga concursos viciados, subornos e sinecuras. Com a lentidão da Justiça e a panóplia de artifícios dilatórios à disposição dos advogados, os silêncios dão aos criminosos tempo. Tempo para que os delitos caiam no esquecimento e a prática de crimes na habituação. Foi para isso que o primeiro-ministro contribuiu quando, questionado sobre a Face Oculta, respondeu: "O Senhor jornalista devia saber que eu não comento processos judiciais em curso (…)". O "Senhor jornalista" provavelmente já sabia, mas se calhar julgava que Sócrates tinha mudado neste mandato. Armando Vara é seu camarada de partido, seu amigo, foi seu colega de governo e seu companheiro de carteira nessa escola de saber que era a Universidade Independente. Licenciaram-se os dois nas ciências lá disponíveis quase na mesma altura. Mas sobretudo, Vara geria (de facto ainda gere) milhões em dinheiros públicos. Por esses, Sócrates tem de responder. Tal como tem de responder pelos valores do património nacional que lhe foram e ainda estão confiados e que à força de milhões de libras esterlinas podem ter sido lesados no Freeport.

Face ao que (felizmente) já se sabe sobre as redes de corrupção em Portugal, um chefe de Governo não se pode refugiar no "no comment" a que a Justiça supostamente o obriga, porque a Justiça não o obriga a nada disso. Pelo contrário. Exige-lhe que fale. Que diga que estas práticas não podem ser toleradas e que dê conta do que está a fazer para lhes pôr um fim. Declarações idênticas de não-comentário têm sido produzidas pelo presidente Cavaco Silva sobre o Freeport, sobre Lopes da Mota, sobre o BPN, sobre a SLN, sobre Dias Loureiro, sobre Oliveira Costa e tudo o mais que tem lançado dúvidas sobre a lisura da nossa vida pública. Estes silêncios que variam entre o ameaçador, o irónico e o cínico, estão a dar ao país uma mensagem clara: os agentes do Estado protegem-se uns aos outros com silêncios cúmplices sempre que um deles é apanhado com as calças na mão (ou sem elas) violando crianças da Casa Pia, roubando carris para vender na sucata, viabilizando centros comerciais em cima de reservas naturais, comprando habilitações para preencher os vazios humanísticos que a aculturação deixou em aberto, ou aceitando acções não cotadas de uma qualquer obscuridade empresarial que rendem 147,5% ao ano. Lida cá fora, a mensagem traduz-se na simplicidade brutal do mais interiorizado conceito em Portugal: nos grandes ninguém toca».

Estas palavras também não são minhas. São do jornalista Mário Crespo e respondem, também elas, ao cego mental – ou ao crápula absoluto – que saltou em defesa dos bandos de corruptos, pedófilos, ladrões, e vigaristas de todos os calibres que vão delapidando o país e o povo, todos eles contando com a cumplicidade da Justiça ou dos seus mais altos dignitários.

Respondem a esse e a todos os totós que por aí abundam, cúmplices, por omissão, da roubalheira desenfreada em curso, e que apenas sabem dizer, confrontados com estas miserável realidade, que «não há nada a fazer, eles são todos iguais.» Trata-se de uma cretinice chapada, que nada mais significa do que a aceitação bovina de uma realidade vergonhosa, geralmente nascida de afectos partidários ou pessoais. No fundo, a simples confissão da sua condição de castrados militantes.

Entretanto, enquanto sucateiros, banqueiros, políticos e todo um séquito de repugnantes abutres se banqueteiam, o número de desempregados inscritos nos centros de emprego subiu 29,1% em Setembro, em relação ao mesmo mês do ano passado, e aumentou 1,7% face a Agosto, segundo os dados divulgados pelo Instituto de Emprego e Formação Profissional.

Na mesma altura, o Eurostat informou a Europa e o mundo que uma em cada quatro crianças portuguesas vive em condições de pobreza. A incidência de pobreza infantil no nosso país é de 23%. A subida de dois pontos percentuais, num ano, representa mais 43 mil crianças pobres. Apenas 43 mil. Não é muito, se nenhuma delas for da nossa família, não é?

Aos cegos mentais e aos crápulas, nada mais digo.

Mas aos castrados militantes ainda é tempo de esclarecer que, se quiserem, podem voltar a
«tê-los no sítio».

A operação é simples: começa – e termina – por terem vergonha na cara.

(João Carlos Pereira)
...
Crónica lida nas “Provocações” da Rádio Baía em 25/11/2009.
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sábado, 21 de novembro de 2009

CHEIRO A DEFUNTO

Vivemos à volta das palavras. Ou melhor: vivemos perdidos no meio das palavras. Mas, tal como li recentemente num livro, não são as palavras que respondem às nossas dúvidas, às perguntas que fazemos; ou que nos fazem. O que responde a tudo são os factos, a realidade, a vida. A vida, em sentido lato, e a vida de cada um de nós.

Tomemos, como exemplo, o caso Face Oculta. Há palavras ditas e gravadas que, para uns, são indiciadoras de práticas ilícitas; de crimes. Para outros, porém, não terão indícios «probatórios que levem à instauração de procedimento criminal», tal como diz o Procurador-Geral da República. Contudo, para uns e para outros, as palavras são as mesmas. Ouviram – ou leram – exactamente a mesma coisa. Estudaram pelos mesmos livros, tiveram os mesmos mestres. Porque razões uns entendem certas palavras como suficientes para abrir investigação, e os outros não?

Aquele que as disse – José Sócrates, em conversas com Armando Vara – garante que é pessoa séria e respeitadora das leis e do Estado de Direito. Afirma que nunca disse ou fez nada de censurável, e que as conversas em causa nada têm de repreensível. Pode pensar-se – e eu penso isso – que José Sócrates nunca poderia dizer outra coisa. É ele que está em causa, defende-se como pode. Diria isso, sendo verdade; diria isso, sendo mentira.

Contudo, olhando para o percurso político e pessoal de José Sócrates, concluiu-se que tem uma tendência natural para fugir à verdade. Pior: para adulterar a verdade. Admitamos, no entanto, que não mente agora no que às suas conversas com Armando Vara respeita, isto é, que nada foi dito por si que aponte para uma violação das leis e, por isso, indicie práticas criminosas, apesar de quase todo o país, face ao ruído criado e ao passado do primeiro-ministro, pensar o contrário. Se assim for, que faria qualquer um de nós, enquanto pessoa que está a ser posta sob suspeita, mas que tem a gigantesca possibilidade de calar os seus detractores, provando que o que se diz é, neste caso, uma enorme e infame cabala?

O que eu faria – e o que faria qualquer pessoa em seu juízo normal – era exigir que as minhas palavras fossem escutadas pelo país inteiro. Aí estava a prova de que eu nada dissera de censurável. Aí estava a prova de que alguém andava a difamar-me. Aí estava a possibilidade de calar, de uma vez por todas, os autores da tal campanha negra. Se Sócrates agisse assim, em vez de se refugiar na tese do pobre inocentinho perseguido por poderes ocultos – sempre e sempre as palavras, sempre e sempre a representação, sempre e sempre a poeira do parlapié – responderia com factos, com a realidade. E de forma inatacável e definitiva.

Mas Sócrates recusa essa possibilidade. Por estupidez? Não acredito que seja por isso. O que eu penso – e creio que toda a gente pensará, mesmo os socretinos encartados – é que o primeiro-ministro não exige a divulgação das conversas com Armando Vara porque elas são altamente comprometedoras. Porque não pode. Ponto final.

Entretanto – e com isso – agrava-se o problema da confiança na Justiça. De tudo isto fica a ideia de que ela está cada vez mais perdida nas ruas da amargura, o mesmo é dizer-se: nas ruas do poder político. Que não há, de facto, independência do poder judicial e – tão mau como isso – que a Justiça é uma para o cidadão comum, e outra para os poderosos.

Socorro-me de palavras (sempre as palavras, não é?) escritas por dois jornalistas, que corroboram o que acabo de dizer. Disse um deles (Carlos Amorim):

«Estou farto de uma Justiça talhada para que a verdade dos factos se perca no emaranhado burocrático dos tribunais. Estou farto das guerras deprimentes entre Noronha do Nascimento (STJ) e Pinto Monteiro (PGR) que só revelam – para além da obsessiva sua cegueira – falta de grandeza humana para as funções tão elevadas que ocupam.

Estou farto de um primeiro-ministro que saltita alegremente por entre casos suspeitos e nauseabundos (licenciatura, Cova da Beira, as casas beirãs, os apartamentos lisboetas, o Freeport, e, agora, a “Face Oculta”). Estou farto do seu tom de mártir improvável, do seu ar postiço de quem é permanentemente injustiçado por todos aqueles que não confiam nas suas pseudo-justificações. No fundo, estou farto desta III República».

Disse o outro (João Coutinho):

«O presidente do Supremo Tribunal anulou e mandou destruir as escutas entre Sócrates e Vara. Infelizmente, Noronha Nascimento não anulou nem destruiu as dúvidas do país sobre o conteúdo dessas escutas.

O problema, longe de ser legal, é agora político: pode um primeiro-ministro sobreviver ao clima de desconfiança que paira sobre ele? Um clima onde “tráfico de influências” e “conspiração contra o Estado de Direito” fazem parte da suspeição? A pergunta responde-se a ela própria: se Sócrates não esclarece coisa alguma; e se o Presidente, junto do PGR, não parece interessado em avaliar a insanidade do regime, pondero seriamente se os jornalistas não deviam fazer serviço público e, caso as tivessem, que publicassem as conversas em falta. Seria um crime? Ainda que fosse, a história ensina que há crimes necessários para evitar crimes maiores».

É altura de dizer que me estou borrifando para José Sócrates – o Zezito para a família, o Sapatilhas, para os amigos da Covilhã, ou o Pinóquio, para a zona mais risonha dos meios políticos – mas não me posso estar borrifando para o primeiro-ministro que governa o meu país, para o senhor Procurador-Geral da República ou para a Justiça, em geral. É que tudo isto que se passa à volta de Sócrates tem reflexos imediatos na minha vida, na nossa vida, no nosso presente e no nosso futuro. Não é um problema de anedotas, de palavras, mas de factos. Quando a bagunça é de tal ordem, todo o país se desmorona. A ideia de que o crime compensa – e que é, aliás, a única maneira de subir na vida – alastra e infecta a sociedade no seu todo. Conviver com a corrupção e aceitá-la como uma fatalidade, depaupera a moral e os cofres do Estado, minando irremediavelmente a economia.

«O país está a saque» é a expressão que por aí volta a ouvir-se, acompanhada pelo inevitável encolher de ombros. Os valores baixam, a esperança de que Portugal seja um país decente e viável diminui dia após dia, ninguém se mobiliza para objectivos comuns, porque sabe que o resultado de qualquer esforço vai encher bolsos já cheios e alimentar os circuitos de uma corrupção galopante e desenfreada.

De facto, o país desfaz-se num clima de desbragamento sem remissão, porque o exemplo vem de cima. Políticos, banqueiros, empresários (mesmo sucateiros) tratam da sua vida como se fossem donos absolutos da nação, confiantes numa Justiça adaptada aos seus interesses e, por isso, incapaz de cortar a direito.

Em Belém, Cavaco assiste impávido a tudo isto, sujeitando-se a que o país pense que está – como Sampaio esteve – à espera que o seu partido dê sinais de estabilidade para partir a loiça. Se assim é, será colocar a estratégia e os interesses partidários à frente dos interesses nacionais.

Sócrates, como político, entrou em coma. Resiste ainda, porque está ligado à máquina dos interesses partidários e económicos – enfim, da conjuntura política actual. Respira, porque está ventilado, mas já cheira a defunto. Já fede.

O problema – volto a dizê-lo – é que esse cheiro sufoca o país inteiro.


(João Carlos Pereira)

Crónica lida nas “Provocações” da Rádio Baía em 18/11/2009. Não deixe de ouvir em 98.7 Mhz e participar pelos telefones 212277046 ou 212277047 todas as quartas-feiras entre as 09H00 e as 10H00.

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

REABRIU O CIRCO LUSITANO

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Começo por transcrever dois significativos comentários colocados no blogue "cronicasdoseixal" onde as minhas Provocações das quartas-feiras, na Rádio Baía, são publicadas.
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Diz um:

«A corrupção é essencial aos negócios do Estado. Nada funcionava neste país se não se pagasse por debaixo da mesa. Tudo está organizado e elaborado, incluindo os orçamentos públicos e privados, para o dinheiro vivo que é necessário pagar em pesados envelopes. Não teríamos sequer políticos nem partidos políticos, porque eles são pagos e financiados pelos dinheiros da corrupção. Isto vale para as obras e compras do poder central, para as obras e compras do poder local, para os negócios privados, para a mais simples obra ou compra. Para o excelentíssimo senhor administrador da maior empresa pública ou privada, para o senhor empregado do Fisco, para o senhor ministro, para o senhor presidente da autarquia e respectivos vereadores (especialmente os do urbanismo) esforçados técnicos, assessores, conselheiros e adjuntos e, como não podia deixar de ser, para o senhor José da Silva, reles fiscal da mais insignificante autarquia. Porque ou há moralidade, ou comem todos.
Sem falar, obviamente, na mais colorida e doce corrupção, normalmente vestida de azul e branco, e cuja moeda é o chocolate, as viagens ao Brasil, favores de prostitutas e outros mimos semelhantes.
Viva a corrupção! VIVA!
Viva Portugal corrupto e dinâmico! VIVA!
Viva a degeneração absoluta! VIVA!»


Se a cáustica ironia deste comentário é evidente, não é menos verdade que retrata uma realidade cada vez mais palpável, tal o à-vontade – descaramento nascido da impunidade, direi eu – com que se corrompe e se é corrompido. Quase se pode dizer que o fenómeno, de tão corriqueiro, já se transformou num método legítimo, inerente à actividade económica no seu todo. Ou seja: a corrupção existe, de facto, a um nível tão generalizado e impune, que é como se também já existisse de jure. Com cobertura legal. E porque Portugal perdeu a vergonha, talvez já não falte muito.

Lembro-me, a propósito, do que aconteceu aqui há uns anos com a despenalização do consumo de drogas. Incapazes – ou não querendo ser capazes – de lidarem com o fenómeno do tráfico e consumo, os nossos queridos governantes fizeram passar a mensagem que a melhor maneira de combater o tráfico era deixar os consumidores em paz, levando-os ao tratamento em vez de os levar à cadeia, como se as duas coisa fossem incompatíveis. Disse, na altura, que a vida provaria que se tratava de uma medida facilitadora do consumo e, consequentemente, do tráfico. Em consequência, aumentou o número de consumidores e, embora os preços tenham descido ligeiramente, aumentou o tráfico e o lucro dos traficantes. Mas, o que é dramático, aumentaram as mortes devido ao uso de drogas. E não foi pouco, já que dados recentemente divulgados pelo Observatório Europeu da Droga e da Toxicodependência revelam que as mortes provocadas pela droga subiram 45% em Portugal, só nos anos de 2006 e 2007. Sem orgulho, verifico que a razão estava do meu lado.

Se não me engano – e seguindo o raciocínio que liberalizou o consumo de drogas – um dia destes as brilhantes mentes que dirigem Portugal ainda nos vão dizer que a melhor maneira de combater a corrupção será, precisamente, legalizá-la. Tudo rolará sobre esferas ainda mais lubrificadas e, acima de tudo, a classe política e os grandes empresários deixarão de correr o risco de malhar com os ossos na prisão, que na realidade já é o mínimo, ou de verem o seu nome na praça pública. Medida justíssima, pois, como todos sabemos, o que os senhores políticos e os senhores empresários querem, coitados, é só – e apenas – o desenvolvimento do país. E isso tem um preço.

O outro comentário dizia apenas isto:

«As crónicas do senhor João Pereira têm dois defeitos. Não dão para discutir, porque se limitam a relatar factos e a recordar verdades antigas ou actuais. E não agradam a ninguém, porque todos os que andam metidos na política, de uma maneira geral, se sentem retratados nelas. O meu caro senhor assim não faz amigos».

Igualmente irónico, este leitor, parecendo criticar-me, faz-me um rasgado elogio. Tenho o «defeito» de dizer verdades indiscutíveis, a que acresce o «defeito» de não agradar aos políticos. Logo, não faço amigos entre aqueles que as minhas palavras atingem. Ou seja: faço por aí inimigos em barda, especialmente entre os que fazem da política um modo de vida e, por arrastamento, entre aqueles que são indefectíveis dos políticos ou das políticas que eu costumo visar. Mas como só digo verdades, é para esse lado que eu durmo melhor. Aliás, sentir-me-ia desonrado se certa gentinha que por aí se amanha à conta da política – o mesmo é dizer: com dinheiro sugado aos nossos bolsos – estivesse no rol dos meus amigos ou das pessoas que me estimam. Assim é que eu estou bem.

Entretanto, reabriu o Grande Circo Nacional. Sem os animais ferozes, porque o governo acha que é uma barbaridade usar animais selvagens nas condições que os circos oferecem, embora ache – porque não legisla para o evitar – que não é uma barbaridade andar a exaurir um toiro numa arena e espetar-lhe ferros até o sangue jorrar – ou abatê-lo à estocada, como em Barrancos – só para gáudio daqueles que se excitam com os resquícios da barbárie que ainda os habita. Mas, desculpem-me… parece-me que me perdi. O que eu queria dizer é que reabriu a Assembleia da República, sem o animal feroz da maioria absoluta, mas ainda com o mestre-de-cerimónias enfatuado e convencido de si que, todo empinocado no seu Armani, lá vai esclarecendo os indígenas sobre as bondades das suas políticas.

Mas o que vimos e ouvimos durante os debates? Se foi circo, foi do pior. Se foi farsa, não deu para rir. O que foi, então? Uma desgraçada reposição do espectáculo do costume, com as mesmas frases, as mesmas tiradas, as mesmas rábulas, os mesmos tiques, os mesmos actores – ou muito parecidos – enfim, uma deslavada e saturante liturgia, que se repete sempre e sempre, como se ali estivesse a ser discutido e decidido o futuro de todos nós. Do país.

Meus amigos, ali não se resolve nada. Ali só se representa um espectáculo indecoroso e caro, onde os actores repetem vezes sem conta os seus papéis, enquanto cá fora, no mundo real, a tragédia que é a vida de muitos milhões de portugueses continua a decorrer, com sangue a sério, com lágrimas a sério, com suor a sério, sem Armanis, sem águas de colónia caríssimas, sem gravatas de seda, sem senhas de presença, sem bons ordenados e reformas rápidas e nutridas, sem ar condicionado e cadeirões estufados, sem esperança e sem futuro.

Se na Assembleia da República se resolvesse alguma coisa, Portugal não seria o país atrasado que é, o desemprego não bateria recordes atrás de recordes, os baixos salários e reformas não seriam o único suporte da economia, o trabalho precário e mal pago não seria a norma, a economia não estaria de rastos, a justiça e a educação não seriam a anedota que são, os ricos não parariam de enriquecer e os pobres não parariam de aumentar em número e em pobreza. Se na Assembleia da República só tivessem lugar portugueses sérios e dedicados ao seu país – em vez de lá se sentarem, maioritariamente, portugueses chicos-espertos e dedicados, apenas, à sua vidinha e aos seus partidos – Portugal seria um país mais desenvolvido, justo e respeitável, em vez de ser uma coisa indecifrável pendurada na cauda da Europa.

Mas aí, meus amigos, voltamos sempre à mesma conversa. Eles estão lá porque alguém votou neles.

Eu estou inocente, de mãos e consciência limpas. Por isso, como disse aquele leitor, não faço amigos entre essa gente.

Nem quero.

(João Carlos Pereira)


Crónica lida nas “Provocações” da Rádio Baía em 11/11/2009. Não deixe de ouvir em 98.7 Mhz e participar pelos telefones 212277046 ou 212277047 todas as quartas-feiras entre as 09H00 e as 10H00.


quarta-feira, 4 de novembro de 2009

POLVO À PORTUGUESA

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Quem me ouve – ou quem me lê – sabe que esta não é a primeira vez que toco no nome de Armando Vara, essa eminência parda do Partido Socialista, que antes de se meter na vida política era um obscuro empregadito bancário, exercendo as funções de caixa num balcão perdido da Caixa Geral de Depósitos, em Trás-os-Montes.

Homem desde há muito ligado a Sócrates, foi sócio deste, da senhora dona Fátima Felgueiras e de um certo Sobral de Sousa, numa empresa chamada Sovenco – Sociedade de Vendas de Combustíveis, Lda., que havia de estoirar após uma vida curta e atribulada. Sócrates teve o cuidado de riscar do seu currículo esta fase empresarial da sua vida, talvez porque os seus três sócios acabaram a contas com a justiça, sendo de destacar os quatro anos de prisão, com pena suspensa, que Vara já tem no seu interessante cadastro. Tudo boa gente, no entanto. Percebe-se, por isso, o cuidado de Sócrates em apagar a Sovenco da sua vida; para ter trapalhadas, dispensa a boleia de certos camaradas…

Para além desta fase bem escondida da sua vida, Vara ficou famoso por duas coisas. A primeira, foi quando participou solidariamente, como moço de recados do PS, no buzinão da Ponte 25 de Abril, no tempo de Cavaco Silva, embora depois os governos do PS viessem a manter as portagens e a permitir que este imposto medieval pago pelas populações da Margem Sul para acederem a Lisboa, sem que tenham alternativas gratuitas – só se for a nado – todos os anos seja agravado. Sem esquecer que o ditador Salazar, quando construiu a ponte e instituiu as portagens, garantiu ao país que elas acabariam mal a obra estivesse paga. E cumpriria, sem dúvida. A segunda, foi quando estoirou a bronca da famigerada Fundação para a Prevenção e Segurança, que nada mais era que um descabelado e desavergonhado meio de desviar dinheiros públicos para fins partidários e pessoais, para além de dar sustento a firmas, familiares e amigos da caterva socialista.

Quando Jorge Sampaio, perante a enormidade da desvergonha, impôs a Guterres a saída imediata de Vara do governo, o rapaz não regressou às suas funções originais na Caixa Geral de Depósitos, como seria normal. Acabado o exercício dos cargos públicos, volta-se ao que se tinha antes, mandam assim as boas regras da decência e do princípio sagrado de que não se deve tirar vantagens sociais, económicas ou de outra natureza, dos cargos exercidos voluntariamente e com alto sentido de missão, como, aliás, não se cansam de afirmar. Coitados, os sacrifícios que eles fazem a bem da nação…

Nada disso. Sua excelência foi reintegrado na Caixa Geral de Depósitos, mas como director-adjunto, passando, sem o mínimo de escrúpulos, por cima de trabalhadores mais antigos e mais habilitados para a função. Mas como um ex-ministro tem, como sabemos, direitos divinos (mesmo sendo laico, republicano, democrata e, ainda por cima, «socialista»), rapidamente passou a administrador, talvez porque, entretanto, havia conseguido obter um precioso diploma que lhe conferia uma licenciatura em Relações Internacionais. Não preciso de vos dizer onde a licenciatura foi obtida, a menos que insistam comigo. Ah! Querem que diga? Então, lá vai: foi na UNI, precisamente. Foi na mesma virtuosa universidade privada que licenciou Sócrates a um domingo, e onde a rapaziada socialista arranjava canudos num vê-se-te-avias. A quatrocentos contos a unidade.

Passado uns tempos – e com a bronca de Jardim Gonçalves e outros impolutos banqueiros do Millenium BCP – aí está o nosso ilustre ex-caixa da Caixa Geral de Depósitos e ex-ministro corrido por indecente e má figura, a ser guindado, por indiscutível mérito próprio, dados os seus comprovados conhecimentos na manipulação de notas, moedas, cheques, outros valores e coisas afins, a vice-presidente do maior banco privado português. Uma boa escolha, pois há que aproveitar ao máximo as capacidades de cada um, e Vara já tinha mostrado, sem margem para dúvidas, do que era capaz. Currículo não lhe faltava.

Mas eis que, de repente – e sem que nada o fizesse esperar – Vara é suspeito de estar metido numa grande embrulhada, falando-se em corrupção da grossa, subornos e grandes prejuízos para o erário público. Milhões andaram por aí, passando por debaixo da mesa, beneficiando gente gorda e de muito bom-nome e, em contrapartida, lesando o Estado e lixando ainda mais a nossa vida. Depois do Millenium, do BPN, do BPP, dos submarinos, dos sobreiros da Portucale, do Freeport, da Operação Furacão e de tanta embrulhada do género, aí está a Face Oculta, implicando, outra vez, gente de bago e da política, em amoroso conluio.

«Tanta vez o cântaro vai à fonte, que um dia deixa lá a asa», dizem uns, esperando que, desta vez, a justiça corte a direito, depressa e bem. «Mais uma cabala, mais uma campanha negra», garantem outros, os crentes nas virtudes imaculadas do PS, de Sócrates e da sua gente. Entretanto, uma senhora magistrada, de quem também já falei várias vezes, chamada Cândida Almeida, já foi entrevistada pela comunicação social a este propósito, e não disse nada que se entendesse. Não sei se ainda estão lembrados, mas recordo que a senhora é uma socialista dos quatro costados, várias vezes fotografada aos abraços e aos beijinhos a figuras gradas do PS, e foi ela que afirmou, sem se rir, que não tinha visto o vídeo onde Charles Smith chamava, também sem se rir nem hesitar, corrupto a Sócrates. E acrescentou. «Não vi, nem estou interessada em ver». O pior, foi que a Moura Guedes mostrou – e nós vimos e percebemos. Bem… mas a Moura Guedes também já percebeu que quem se mete com o PS, experimenta a força dos tentáculos do polvo. «Quem se mete com o PS, leva!», vociferava, com a sua habitual subtileza, Jorge Coelho, outro ilustre nome da família. Ora aí está cumprida a profecia.

Para que as coisas se esclareçam, que é o que eu quero, seria bom, no meu curto entender, que a senhora magistrada se afastasse de tudo o que meter gente do PS – e não é pouco. Em nome da transparência e dos bons costumes. Não é por nada, é só por causa daquela história da mulher de César. E também porque uma pessoa não é de ferro. Ao ritmo a que estalam por aí broncas envolvendo rapaziada socialista – socialista, salvo seja; rapaziada do PS – a senhora magistrada pode, a manter-se o ritmo até hoje verificado, apanhar um esgotamento. O passado dá-nos uma ideia do que pode ser o futuro. Abílio Curto, Melancia, Fátima Felgueiras, Sócrates, Pedroso, Mesquita Machado, Vara, Jorge Ritto, Alberto Costa (o de Macau, e que foi ministro da Justiça durante o último governo), Lopes da Mota, ou Luís Monterroso, por exemplo, são nomes que, por isto ou por aquilo, com condenações ou sem elas, constituídos arguidos, ou disso se safando, enfim, assim ou assado, deram – ou estão a dar – que fazer às autoridades e muito que pensar ao povo.

Falando de corrupção, subornos e luvas brancas, com ou sem faces ocultas, acentua-se a convicção geral de que o caso Freeport só vai bater na arraia-miúda, caso haja alguma, o que é discutível. Tal como o caso Casa Pia. No caso Freeport, dois dos implicados disseram aos investigadores que houve pagamento de luvas a políticos, mas nenhum deles assumiu esse facto formalmente nos autos, com medo de represálias através de eventuais processos por difamação. Não vá «levarem» também.

Também a assessora de Manuel Pedro, outro dos arguidos com ligações ao PS, disse que assistiu à destruição de provas informáticas, e que em 2004, durante o processo de licenciamento, houve pagamento de avultadas comissões, tendo ouvido várias conversas que confirmam essa tese, recordando mesmo uma delas, entre Manuel Pedro e João Cabral, este com ligações à empresa Freeport, em que era dito ao segundo para «se desenrascar». Aí, a comissão falada era de 400 mil euros, a que acresciam cem mil euros, que não conseguiu precisar a quem se destinavam. Falhou aí a memória da senhora, coitada, não fosse também «levar».

Veremos, agora, no que vai dar a Face Oculta, sabendo nós que o polvo existe e tem tentáculos poderosos. Tal como noutros casos, os investigadores podem ser afastados, os juízes mudados, enfim, podem ser usadas as mil ventosas que prendem a verdade e as forças tentaculares que esmagam e deformam a justiça.

Afinal… todos os dias comemos Polvo à Portuguesa. E parece que gostamos.

Olhem, meus amigos. A mim, dá-me vómitos.

(João Carlos Pereira)

Crónica lida nas “Provocações” da Rádio Baía em 04/11/2009.
(Não deixe de ouvir em 98.7 Mhz e participar pelos telefones 212277046 ou 212277047 todas as quartas-feiras entre as 09H00 e as 10H00).


quarta-feira, 28 de outubro de 2009

A FOME, OS DEUSES E OS GATOS

O senhor governador do Banco de Portugal, cujo vencimento e respectivos aumentos são decretados por ele, e que, muito patrioticamente, ganha mais que o seu homólogo norte-americano, apesar de só Nova York ter mais habitantes do que Portugal inteiro, pediu realismo e aconselhou que os aumentos salariais não fossem além de 1,5%.

Este socialista – ou dizendo melhor: este militante do PS, que é uma coisa completamente diferente – deve pensar que todos ganham o que ele ganha. Se assim fosse, um aumento de 1,5% não seria nada mau. E quanto ganha o senhor governador do Banco de Portugal? Isso é coisa difícil de saber, porque os vencimentos dos senhores que governam aquela instituição pública… não são públicos. Ou seja: nós pagamos-lhe, mas tenta-se impedir que saibamos quanto é que lhe pagamos. Compreende-se. O descaramento, a desvergonha e a bagunça são de tal ordem, que as cautelas nunca são demais, não vá o povo, um dia destes, acordar e pedir contas. È difícil, mas pode acontecer.

Sendo assim, os últimos dados que tenho disponíveis remontam a 2005, e dizem-me que ele ganha – ou ganhava, se ainda não se aumentou desde aí, coisa em que não acredito – mais de 280.000 euros por ano, sem contar com as várias mordomias inerentes ao cargo. Feitas as contas, são. Em números redondos, 24.000 euros por mês, algo que ronda, na moeda antiga, os 5.000 contos. Um aumento de 1,5% sobre 5 mil contos, vale cerca de 75 contos, o que é superior à maioria das reformas e pensões pagas nesta coisa fétida a que chamamos país.

Já percebemos, então, o que quer dizer a palavra socialismo para o senhor Vítor Constâncio, como percebemos muito bem o grande socialista que ele é. A sorte dele – e de muitos como ele – é que o povo é sereno, resignado, cabisbaixo, medroso, algo cobarde e – diga-se a verdade – é aquela «enorme e possante besta» que, um dia, lhe chamou Erasmo de Roterdão, para explicar a incompreensível mansidão das massas face aos desmandos das elites possidentes.

Vem isto a propósito de duas coisas. A primeira, prende-se com as declarações do médico fundador da AMI, Fernando Nobre, durante o congresso dos economistas que decorreu no Funchal. Fernando Nobre, que é dos poucos portugueses vivos que merece o meu respeito, falava para uma plateia onde se destacavam antigos, actuais e, provavelmente, futuros ministros, tudo gente muito sábia e de mãos limpas, quando disse, entre outras coisas, que «é uma vergonha a pobreza que temos em Portugal», perguntando depois aos presentes quem é que, naquela sala, conseguia viver com 450 euros. Não vi, mas posso jurar, que os dedos médios daqueles senhores se esticaram de imediato, enquanto o indicador e o anelar se curvavam. E se não fizeram o gesto, certamente que o imaginaram.

Fernando Nobre lembrou que sem os apoios sociais e os diversos subsídios, a pobreza em Portugal não estaria nos 18% oficiais, mas nos 40%, o que significa que dois em cada cinco portugueses estão em risco de pobreza. Assim, todos os dias, em Portugal, o sistema económico e a governação que o serve produzem novos pobres, entre os quais estão os jovens com menos de 30 anos, milhares com curso superior, mas que, apesar disso, são as principais vítimas do desemprego ou do emprego precário mal remunerado. E muitos milhares de portugueses são obrigados a emigrar para fugirem à miséria, à insegurança e a uma vida sem esperança.

Fernando Nobre não disse, mas digo eu, que se isto está péssimo para dois em cada cinco portugueses, é porque eles não são, claro está, do grupo para o qual isto está muito bom, ou seja, o grupo do senhor governador do Banco de Portugal, ministros, deputados, autarcas, administradores disto e daquilo, presidentes, vice-presidentes e correspondentes assessores (e respectivos e respeitáveis séquitos) todos bem instalados nos vários organismos do Estado ou nas empresas públicas e privadas, apenas sujeitos às alternâncias provocadas pelas mexidas eleitorais, mas logo compensadas com opulentas reformas previamente legisladas.

Fernando Nobre afirmou, em conclusão: «Não aceito esta vergonha no nosso país». Não estive no Funchal, mas sei que todos o aplaudiram, como se aquilo não fosse nada com eles, principalmente com os antigos e actuais ministros lá presentes. Aliás, como sabemos, a pobreza é uma coisa que acontece, assim como uma tarde de chuva, ninguém tem culpa, ninguém pode impedir. É a vida. Só os alucinados ou os revolucionários idealistas mais ou menos líricos é que pensam o contrário: que a pobreza tem autores humanos, a começar por aqueles que detêm as rédeas da economia, os principais meios de produção, o capital financeiro e, para compor o ramalhete, o poder de fazer as leis pelas quais todos se regem.

Por isso, volto a fazer aquela pergunta simples e básica:

- Então, se a situação do país é péssima para a maioria – e óptima para uma minoria – e é essa minoria que tem governado, mandado, pondo, dispondo e impondo, nem assim é possível saber-se de quem é a culpa pela situação que se vive, continuando a fingir-se que estamos a sofrer, apenas, a fúria dos deuses?

Saramago não acredita em Deus. E eu, francamente, não acredito em deuses. Mas, pelos resultados eleitorais, parece que alguém acredita…



A segunda coisa diz respeito aos Gatos Fedorentos, de quem sou um admirador inabalável. As várias entrevistas que esmiuçaram os políticos e outras figuras, tiveram o mérito de colocar questões importantes e actuais, através de um registo de humor inteligente e relativamente cáustico. Mas o que escapou aos Gatos foi que, nas contas finais, se concluiu que tudo está bem quando acaba bem, ou seja, no meio de umas boas gargalhadas e palmadinhas nas costas. Todos saíram risonhos e com os egos em alta, fossem os esmiuçados, fossem os esmiuçadores.

Gente altamente responsável pela miséria que por aí alastra, impostores de alto gabarito, fazedores e aprovadores de leis que transformaram a vida de milhões de portugueses num inferno, indivíduos ao pé dos quais não devemos deixar estar os nossos filhos ou netos, figuras sinistras e imorais da governação passada e actual, todos eles por ali desfilaram com ar de gente normal, simples, impoluta e virgem de qualquer crime.

Compreendo os Gatos. Eles é que não compreenderam que o resultado final seria o branqueamento e a humanização da malandragem que quiseram esmiuçar. Ou compreenderam e não se importaram. Fizeram-nos rir, é certo, mas transformaram os crimes e os criminosos numa anedota bem contada.

Cá fora, no entanto, o desemprego, a fome e a insegurança continuavam a alastrar.


(João Carlos Pereira)

Crónica lida nas “Provocações” da Rádio Baía em 28/10/2009.
(Não deixe de ouvir em 98.7 Mhz e participar pelos telefones 212277046 ou 212277047 todas as quartas-feiras entre as 09H00 e as 10H00).