quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

Uma tarde de sol

 
Lisboa. Esplanada de um café numa tarde de sol. Pouco gente, fruto do tempo frio e dos bolsos vazios. Conversa-se em voz baixa. Algumas pessoas ainda fumam, como se gostassem de destruir os pulmões e de oferecer dinheiro ao Gaspar. Eu sei que, muitas vezes, o cigarro é o único consolo, o escape para a angústia, uma fuga da realidade, que parece esvair-se no fumo azulado que a brisa leva.

Na mesa ao lado da minha estão dois homens. Casa dos trinta, a roçar os quarenta. Já beberam as bicas e conversam, agora, um pouco mais animadamente. Uma frase desperta a minha atenção: «Se isso acontecer, não descanso enquanto não limpar o sebo aos que puder. Um, pelo menos, há-de cair». O «isso» era ficar desempregado. O outro olha-o e encolhe os ombros. «Se fosse fácil, já algum maluco o tinha feito», respondeu.

Finjo que estou mergulhado na leitura, mas a partir daqui estou sintonizado na mesa dos dois indivíduos. Não me é possível reproduzir a conversa textualmente, mas não andou longe disto:

- Posso ser eu o primeiro maluco. Mas se me vejo sem dinheiro para a comida, para a casa e para os filhos, juro-te que dedico o resto da vida a caçá-los. A eles e aos filhos deles. Seja lá onde for, seja lá quando for.

O outro contemporizava, sem deixar de lhe reconhecer razão. Do género:

- Pois é, pá, a malta tem razão, mas um gajo não pode dar cabo da vida, desgraçar-se. E ainda por cima eles andam sempre bem guardados, mesmo depois de saírem do governo. Pensas que é fácil, não?

- Que se lixe. A mulher está em casa há oito meses, não arranja nada. Sou eu só a ganhar. Agora, até o meu emprego está tem-te-não-caias. E se ficamos os dois no desemprego? Eh, pá, eu tinha uma vida jeitosa desde que casei. De há dois anos para cá, lixou-se tudo. A vida aumenta, o dinheiro diminui, os filhos a crescer. Agora, ela ficou pendurada. E se amanhã sou eu? Que culpa tenho eu disto estar assim?

A conversa era esta, mais palavra, menos palavra. Entre um silêncio ou outro, repetiam-se as queixas. E a revolta latente em todas as palavras.

- Um gajo farta-se trabalhar, corta em tudo o que pode, não se gasta um cêntimo mal gasto, se gastar num café ou num jornal é gastar mal. Se calhar é. Mas se a minha vida ficar completamente destruída sem que eu tenha qualquer culpa nisso, ai, pá, aí eu não descanso enquanto não limpar os que puder.

E o amigo, rindo-se, eventualmente por não levar a sério o desabafo:

- A malta ladra mas não morde. Até um dia, não é?

Mais um silêncio. Longo, longuíssimo.

- Pois. É melhor não ladrar.

Fizeram um sinal ao empregado, puseram umas moedas em cima da mesa e sumiram-se para os lados da Estrela.

Não sei porquê, mas pereceu-me que aquele homem estava a falar a sério.

Muito a sério.

quinta-feira, 13 de dezembro de 2012


Os pardais e os abutres

 
Hoje vou contar-vos uma história verdadeiramente macabra
Um amigo meu, que adora o PSD, o Passos, o Gaspar, o Borges, o Relvas e tutti quanti estejam a esfrangalhar Portugal para o passar a patacos ao Goldman & Sachs e a outros marmanjões do Grupo Bilderberg, acha que eu sou imbecil por não concordar com as políticas que ele defende e que, como sabemos, são excelentes, basta olhar para os resultados.
A propósito do salário mínimo dos diversos países, reencaminhei há dias um e-mail onde destacava o salário mínimo nacional pela sua exiguidade, comentando eu, imbecil, que até o da Grécia era, depois de todos os cortes, superior ao nosso. Tanto bastou para que o génio – sim, o meu amigo é um génio – me criticasse nestes termos (geniais):
«… e assim se percebe como é que os gregos foram à falência: "dar milho aos pardais", não é difícil. O difícil é pagar a conta. Por cá atira-se a responsabilidade da falta de produtividade para os patrões e governos. A velha treta comunista ... »
Infere-se daqui, desta genial tirada, que os baixos salários portugueses – quer o mínimo, quer o médio – são o «milho» que os trabalhadores (perdão, os «pardais») meteram no papo e que levaram o país à crise. Este meu amigo é técnico municipal e ainda – diz ele – se farta de trabalhar «por fora».
Não sei quanto milho come, nem sei se ele se considera um pardal. Ou um pardalão. Sei é que ele acha que foram os salários mais pindéricos da Europa que deram cabo do país.
Citando o Scolari: E o imbecil sou eu?!
Certamente. Se me tivesse arrimado ao partido certo, andava de papo cheio e a acusar os outros de terem dado cabo disto.
E sabem uma coisa? Gosto muito de ser imbecil.
Este desvelado partidário do PSD e das suas políticas neoliberais acha, então, que Portugal está como está porque os pardais (o povo) tiveram milho (dinheiro) a mais. Não se refere aos grandes abutres, mas aos pardalitos dos salários e pensões mínimos e à volta disso. A escumalha. Para ele, não há PPPs, não há golpadas, não há sacos azuis, laranjas, cor-de-rosa, luvas brancas nem colarinhos da mesma cor. Não há corrupção, incompetência, negócios ruinosos e, sobretudo, não há o alibi da crise para justificar o roubo de salários e prestações sociais.
As golpadas de Duarte Lima, que vão ser pagas pelos contribuintes portugueses, não aquecem nem arrefecem o extremoso partidário laranja. Para já, 32 milhões é a parte que o Estado assume na golpada com os financiamentos do ex-deputado do PSD no BPN. Entretanto, o senhor já não tem nada em seu nome. Só uma pulseira electrónica, por acaso também paga por nós.
No BPN, conforme diz o insuspeito João Marcelino, estamos a pagar «o maior escândalo financeiro da história de Portugal. Nunca antes houve um roubo desta dimensão. Para já, tapado por uma nacionalização que já custou 2.400 milhões de euros delapidados algures entre gestores de fortunas privadas em Gibraltar, empresas do Brasil, offshores de Porto Rico, um oportuno banco de Cabo Verde e a voracidade de uma parte da classe política portuguesa que se aproveitou desta vergonha criada por figuras importantes daquilo que foi o cavaquismo na sua fase executiva». Nada disto o comove o militante social-democrata, nada disto o preocupa.
Oliveira e Costa, o cabeça-de-turco do BPN, vai morrer um dia destes e, convenientemente, vai ser o único responsável pelo crime. Também já não tem nada em seu nome. E para que teria? Não estão cá os pardais para pagar a conta? Claro. Os pardais e o milho que comem - que é milho que semeiam e colhem – é aquilo que preocupa o tal cavalheiro, como se, bem vistas as coisas, ele também não fosse um mísero pardal.
Olhando para este país e para portugueses como este, conseguimos perceber como medraram Hitler e Pinochet e, ao fim e ao cabo, como é fácil arranjar lacaios nos dias que correm.