Uma tarde de sol
Lisboa. Esplanada de um
café numa tarde de sol. Pouco gente, fruto do tempo frio e dos bolsos vazios.
Conversa-se em voz baixa. Algumas pessoas ainda fumam, como se gostassem de
destruir os pulmões e de oferecer dinheiro ao Gaspar. Eu sei que, muitas vezes,
o cigarro é o único consolo, o escape para a angústia, uma fuga da realidade,
que parece esvair-se no fumo azulado que a brisa leva.
Na mesa ao lado da
minha estão dois homens. Casa dos trinta, a roçar os quarenta. Já beberam as
bicas e conversam, agora, um pouco mais animadamente. Uma frase desperta a
minha atenção: «Se isso acontecer, não descanso enquanto não limpar o sebo aos
que puder. Um, pelo menos, há-de cair». O «isso» era ficar desempregado. O
outro olha-o e encolhe os ombros. «Se fosse fácil, já algum maluco o tinha
feito», respondeu.
Finjo que estou
mergulhado na leitura, mas a partir daqui estou sintonizado na mesa dos dois
indivíduos. Não me é possível reproduzir a conversa textualmente, mas não andou
longe disto:
- Posso ser eu o
primeiro maluco. Mas se me vejo sem dinheiro para a comida, para a casa e para
os filhos, juro-te que dedico o resto da vida a caçá-los. A eles e aos filhos
deles. Seja lá onde for, seja lá quando for.
O outro contemporizava,
sem deixar de lhe reconhecer razão. Do género:
- Pois é, pá, a malta
tem razão, mas um gajo não pode dar cabo da vida, desgraçar-se. E ainda por
cima eles andam sempre bem guardados, mesmo depois de saírem do governo. Pensas
que é fácil, não?
- Que se lixe. A mulher
está em casa há oito meses, não arranja nada. Sou eu só a ganhar. Agora, até o
meu emprego está tem-te-não-caias. E se ficamos os dois no desemprego? Eh, pá,
eu tinha uma vida jeitosa desde que casei. De há dois anos para cá, lixou-se
tudo. A vida aumenta, o dinheiro diminui, os filhos a crescer. Agora, ela ficou
pendurada. E se amanhã sou eu? Que culpa tenho eu disto estar assim?
A conversa era esta,
mais palavra, menos palavra. Entre um silêncio ou outro, repetiam-se as
queixas. E a revolta latente em todas as palavras.
- Um gajo farta-se
trabalhar, corta em tudo o que pode, não se gasta um cêntimo mal gasto, se
gastar num café ou num jornal é gastar mal. Se calhar é. Mas se a minha vida
ficar completamente destruída sem que eu tenha qualquer culpa nisso, ai, pá, aí
eu não descanso enquanto não limpar os que puder.
E o amigo, rindo-se,
eventualmente por não levar a sério o desabafo:
- A malta ladra mas não
morde. Até um dia, não é?
Mais um silêncio.
Longo, longuíssimo.
- Pois. É melhor não
ladrar.
Fizeram um sinal ao
empregado, puseram umas moedas em cima da mesa e sumiram-se para os lados da
Estrela.
Não sei porquê, mas
pereceu-me que aquele homem estava a falar a sério.
Muito a sério.