sábado, 21 de novembro de 2009

CHEIRO A DEFUNTO

Vivemos à volta das palavras. Ou melhor: vivemos perdidos no meio das palavras. Mas, tal como li recentemente num livro, não são as palavras que respondem às nossas dúvidas, às perguntas que fazemos; ou que nos fazem. O que responde a tudo são os factos, a realidade, a vida. A vida, em sentido lato, e a vida de cada um de nós.

Tomemos, como exemplo, o caso Face Oculta. Há palavras ditas e gravadas que, para uns, são indiciadoras de práticas ilícitas; de crimes. Para outros, porém, não terão indícios «probatórios que levem à instauração de procedimento criminal», tal como diz o Procurador-Geral da República. Contudo, para uns e para outros, as palavras são as mesmas. Ouviram – ou leram – exactamente a mesma coisa. Estudaram pelos mesmos livros, tiveram os mesmos mestres. Porque razões uns entendem certas palavras como suficientes para abrir investigação, e os outros não?

Aquele que as disse – José Sócrates, em conversas com Armando Vara – garante que é pessoa séria e respeitadora das leis e do Estado de Direito. Afirma que nunca disse ou fez nada de censurável, e que as conversas em causa nada têm de repreensível. Pode pensar-se – e eu penso isso – que José Sócrates nunca poderia dizer outra coisa. É ele que está em causa, defende-se como pode. Diria isso, sendo verdade; diria isso, sendo mentira.

Contudo, olhando para o percurso político e pessoal de José Sócrates, concluiu-se que tem uma tendência natural para fugir à verdade. Pior: para adulterar a verdade. Admitamos, no entanto, que não mente agora no que às suas conversas com Armando Vara respeita, isto é, que nada foi dito por si que aponte para uma violação das leis e, por isso, indicie práticas criminosas, apesar de quase todo o país, face ao ruído criado e ao passado do primeiro-ministro, pensar o contrário. Se assim for, que faria qualquer um de nós, enquanto pessoa que está a ser posta sob suspeita, mas que tem a gigantesca possibilidade de calar os seus detractores, provando que o que se diz é, neste caso, uma enorme e infame cabala?

O que eu faria – e o que faria qualquer pessoa em seu juízo normal – era exigir que as minhas palavras fossem escutadas pelo país inteiro. Aí estava a prova de que eu nada dissera de censurável. Aí estava a prova de que alguém andava a difamar-me. Aí estava a possibilidade de calar, de uma vez por todas, os autores da tal campanha negra. Se Sócrates agisse assim, em vez de se refugiar na tese do pobre inocentinho perseguido por poderes ocultos – sempre e sempre as palavras, sempre e sempre a representação, sempre e sempre a poeira do parlapié – responderia com factos, com a realidade. E de forma inatacável e definitiva.

Mas Sócrates recusa essa possibilidade. Por estupidez? Não acredito que seja por isso. O que eu penso – e creio que toda a gente pensará, mesmo os socretinos encartados – é que o primeiro-ministro não exige a divulgação das conversas com Armando Vara porque elas são altamente comprometedoras. Porque não pode. Ponto final.

Entretanto – e com isso – agrava-se o problema da confiança na Justiça. De tudo isto fica a ideia de que ela está cada vez mais perdida nas ruas da amargura, o mesmo é dizer-se: nas ruas do poder político. Que não há, de facto, independência do poder judicial e – tão mau como isso – que a Justiça é uma para o cidadão comum, e outra para os poderosos.

Socorro-me de palavras (sempre as palavras, não é?) escritas por dois jornalistas, que corroboram o que acabo de dizer. Disse um deles (Carlos Amorim):

«Estou farto de uma Justiça talhada para que a verdade dos factos se perca no emaranhado burocrático dos tribunais. Estou farto das guerras deprimentes entre Noronha do Nascimento (STJ) e Pinto Monteiro (PGR) que só revelam – para além da obsessiva sua cegueira – falta de grandeza humana para as funções tão elevadas que ocupam.

Estou farto de um primeiro-ministro que saltita alegremente por entre casos suspeitos e nauseabundos (licenciatura, Cova da Beira, as casas beirãs, os apartamentos lisboetas, o Freeport, e, agora, a “Face Oculta”). Estou farto do seu tom de mártir improvável, do seu ar postiço de quem é permanentemente injustiçado por todos aqueles que não confiam nas suas pseudo-justificações. No fundo, estou farto desta III República».

Disse o outro (João Coutinho):

«O presidente do Supremo Tribunal anulou e mandou destruir as escutas entre Sócrates e Vara. Infelizmente, Noronha Nascimento não anulou nem destruiu as dúvidas do país sobre o conteúdo dessas escutas.

O problema, longe de ser legal, é agora político: pode um primeiro-ministro sobreviver ao clima de desconfiança que paira sobre ele? Um clima onde “tráfico de influências” e “conspiração contra o Estado de Direito” fazem parte da suspeição? A pergunta responde-se a ela própria: se Sócrates não esclarece coisa alguma; e se o Presidente, junto do PGR, não parece interessado em avaliar a insanidade do regime, pondero seriamente se os jornalistas não deviam fazer serviço público e, caso as tivessem, que publicassem as conversas em falta. Seria um crime? Ainda que fosse, a história ensina que há crimes necessários para evitar crimes maiores».

É altura de dizer que me estou borrifando para José Sócrates – o Zezito para a família, o Sapatilhas, para os amigos da Covilhã, ou o Pinóquio, para a zona mais risonha dos meios políticos – mas não me posso estar borrifando para o primeiro-ministro que governa o meu país, para o senhor Procurador-Geral da República ou para a Justiça, em geral. É que tudo isto que se passa à volta de Sócrates tem reflexos imediatos na minha vida, na nossa vida, no nosso presente e no nosso futuro. Não é um problema de anedotas, de palavras, mas de factos. Quando a bagunça é de tal ordem, todo o país se desmorona. A ideia de que o crime compensa – e que é, aliás, a única maneira de subir na vida – alastra e infecta a sociedade no seu todo. Conviver com a corrupção e aceitá-la como uma fatalidade, depaupera a moral e os cofres do Estado, minando irremediavelmente a economia.

«O país está a saque» é a expressão que por aí volta a ouvir-se, acompanhada pelo inevitável encolher de ombros. Os valores baixam, a esperança de que Portugal seja um país decente e viável diminui dia após dia, ninguém se mobiliza para objectivos comuns, porque sabe que o resultado de qualquer esforço vai encher bolsos já cheios e alimentar os circuitos de uma corrupção galopante e desenfreada.

De facto, o país desfaz-se num clima de desbragamento sem remissão, porque o exemplo vem de cima. Políticos, banqueiros, empresários (mesmo sucateiros) tratam da sua vida como se fossem donos absolutos da nação, confiantes numa Justiça adaptada aos seus interesses e, por isso, incapaz de cortar a direito.

Em Belém, Cavaco assiste impávido a tudo isto, sujeitando-se a que o país pense que está – como Sampaio esteve – à espera que o seu partido dê sinais de estabilidade para partir a loiça. Se assim é, será colocar a estratégia e os interesses partidários à frente dos interesses nacionais.

Sócrates, como político, entrou em coma. Resiste ainda, porque está ligado à máquina dos interesses partidários e económicos – enfim, da conjuntura política actual. Respira, porque está ventilado, mas já cheira a defunto. Já fede.

O problema – volto a dizê-lo – é que esse cheiro sufoca o país inteiro.


(João Carlos Pereira)

Crónica lida nas “Provocações” da Rádio Baía em 18/11/2009. Não deixe de ouvir em 98.7 Mhz e participar pelos telefones 212277046 ou 212277047 todas as quartas-feiras entre as 09H00 e as 10H00.

Sem comentários: