quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

LAISSEZ FAIRE, LAISSEZ PASSER

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Quando a Justiça já não funciona, porque deixou de o ser, a Verdade e a Moral devem ser preservadas a qualquer custo. Quando as mais altas figuras do sistema judiciário se acobardam perante o poder político – ou dele se tornam cúmplices ou encobridores por interesses ou afectos – devem ser os homens sérios e corajosos a romper essa teia nauseabunda de crime e encobrimento. É isso que, nos dias que correm, está a acontecer na sociedade portuguesa. E, felizmente, o cidadão comum já dá mostras de compreender e aplaudir esse desmascaramento, não se deixando iludir pelos discursos pomposos ou ameaçadores daqueles que, violando as leis, querem estar acima delas, cavalgando o estatuto da mais absoluta e descarada impunidade.

A divulgação das escutas que implicam Sócrates numa teia conspirativa para controlar a comunicação social e restringir, assim, a liberdade de opinião e expressão e, também, para condicionar a actuação do presidente da República, foi um magnífico exemplo de consciência e acção cívicas e patrióticas.

Quando, há umas semanas atrás, falávamos da divulgação das escutas do Apito Dourado, era precisamente disto que falávamos. Não era de futebol, conforme alguns terão julgado. Realmente, há semelhanças notáveis entre os processos Apito Dourado e Face Oculta.

Em ambos, as escutas realizadas indiciam a prática de crimes, quer de forma tentada, quer de forma efectivamente conseguida.

Em ambos, as escutas foram desvalorizadas ou dadas como não existentes, fosse com base em meros – e convenientes – formalismos legais, fosse com base em leituras generosas do seu teor.

Em ambos, se tentou impedir que o país soubesse o que foi dito e escutado.

Em ambos, a divulgação das escutas demonstrou que houve crime e encobrimento.

Em ambos os casos se ficou a perceber que a República, que este ano festeja 100 anos, se transformou num reles feudo controlado por gente capaz de tudo, e a Democracia e o Estado de Direito meras alcunhas e capas de uma realidade completamente oposta.

Em ambos os casos, numa patética e ridícula fuga para a frente, altas figuras da nossa magistratura, hipócritas puritanos da lei e da ordem, aduladores do partido no poder, mercenários dos poderes instituídos e acólitos bem pagos deste sórdido laissez faire, laissez passer, acham que o mal não está no que as conversas gravadas claramente denunciam, mas na sua divulgação.

É, então, o laissez faire, laissez passer – deixai fazer, deixai passar. A expressão, que teve, inicialmente, no século XVIII, conexões meramente políticas e económicas (sintetizava o liberalismo puro e duro), rápida e facilmente, por isso mesmo, adquiriu conotações de ordem moral, que podemos traduzir por: finge que não vês os crimes que eu cometo, e serás recompensado por isso. A isto chegámos. Já não cantando e rindo, mas comendo o pão que o diabo amassou.

Na mesma semana em que Sócrates – em alto e bom som, ao que consta – exigiu o silenciamento de um jornalista incómodo, na senda do que já fizera em relação a outros jornalistas e órgãos de comunicação social, a divulgação das escutas do Face Oculta não só nos dá a verdadeira imagem da sua desprezível estatura moral e política – o que não será uma novidade absoluta – mas do ambiente de verdadeira promiscuidade que se estabeleceu entre o poder judicial e o poder político.

Referi, há tempos, neste mesmo espaço, que Sócrates estava a ser cozinhado em lume brando, e em lenha que ele próprio carregara. Disse, também, em Novembro do ano passado – e cito: Sócrates, como político, entrou em coma. Resiste, ainda, porque está ligado à máquina dos interesses partidários e económicos – enfim, da conjuntura politica actual. Respira, porque está ventilado, mas já cheira a defunto. Já fede.

Não me preocupa a agonia de Sócrates, mas a agonia em que, por culpa dele e das suas políticas, está Portugal e estão os portugueses. E quando Sócrates se for, dele apenas ficando uma justa nódoa para a página que a história lhe reservar, iremos ver se a lição nos serviu para alguma coisa.

(João Carlos Pereira)

Crónica lida nas “Provocações” da Rádio Baía em 10/02/2010.
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