quarta-feira, 28 de abril de 2010

O OUTRO DISCURSO


Senhor Presidente da República

Senhor Presidente da Assembleia da República

Senhoras e Senhores Deputados


Acabo de ouvir os vossos discursos alusivos ao 36.º aniversário do 25 de Abril. Se me permitem a ousadia, quero dizer-vos que não divergiram muito – se é que divergiram alguma coisa – dos discursos proferidos em anos anteriores, pela mesma altura. Aliás, já no ano passado, em iguais circunstâncias, constatei exactamente o mesmo. E, se bem me recordo, idêntica sensação me ficou em todos os anos para trás, pelo menos até onde a minha memória alcança. Sem querer ser indelicado, devo confessar-vos que não percebi, no contexto em que estamos – comemorar o 25 de Abril – a utilidade das vossas preciosas alocuções. Não que estivessem elaboradas em português menos escorreito, nada disso, que os vossos assessores sabem da poda e, em termos de ortografia e sintaxe, tudo é passado por apertados crivos. Não que, apesar das várias e reconhecidas limitações de dicção de alguns dos senhores oradores, ficasse alguma palavra por entender. Não que a pompa e a solenidade do momento não favorecessem a audição das falas. Nada disso. Não percebi, simplesmente, o nexo entre toda a arenga produzida e a realidade. Ou seja: porque é que as vossas análises e teorias, tão exuberantemente debitadas, não têm e não terão, como não tiveram antes, quaisquer reflexos práticos; porque há tanta sabedoria nas vossas brilhantes mentes e, depois, tanta incapacidade nas vossas vontades ou competências.


Ouvi relatos relativamente acertados sobre a nossa triste realidade. Já os tinha ouvido no ano anterior, e no outro, e no outro, e por aí fora até onde a penumbra da memória me deixa ir. Ouvi lindas teorias sobre métodos e princípios de actuação, sementes de projectos inovadores, varinhas mágicas capazes de, finalmente, nos libertarem desta apagada e vil tristeza que Camões voltaria a cantar. Já perdi o conto a quantas outras exposições do mesmo género este Parlamento ouviu, sem que delas resultasse o mínimo efeito. Ouvi sérias reprimendas a actuações despojadas de honra, que são o pão-nosso de cada dia para certos indignos dignitários, que dão agora à política ainda pior fama do que ela, merecidamente, já tinha. Mas nunca das palavras se passou aos actos, como se os vossos discursos fossem um fim em si mesmo. Em suma: V. Exas. sabem, aparentemente, o que é preciso fazer para salvar o país do atoleiro onde – e desculpem-me a franqueza – por acção ou omissão, o meteram, mas não são capazes de levar à prática uma única das muitas medidas que preconizam para de lá o tirarem. Uma tristeza.


Contudo, está aqui, no Parlamento – ou, pelo menos, devia estar – todo o poder. É aqui que são – ou, pelo menos, deviam ser – estabelecidas as linhas que definem o rumo do país. A mais ninguém podem os portugueses pedir responsabilidades pelas suas dificuldades actuais. Foram os senhores deputados desta Assembleia – e os governos dela emanados – que fizeram de Portugal o que ele hoje é. Um país com uma economia anémica, um desemprego galopante, falências em série, baixos salários e pensões, prestações sociais miseráveis, exportações ridículas, endividamento externo suicida, são estes os indicadores de um país sem rei nem roque. E são estas as provas de que V. Exas. falharam rotundamente. E, no entanto, aí estão de novo a divagar sobre receitas milagrosas que, à semelhança do que sempre fizeram, não sabem – ou, mais precisamente, não querem – aplicar.


Notaram, certamente, que pus em dúvida que seja o Parlamento a sede do poder político. Conscientemente o faço. Na verdade, desde há cerca de 34 anos que todas as medidas que aqui se tomam – ou as que se deviam ser tomadas e o não são – favoreceram, exclusivamente, um outro poder: o poder económico, a alta finança. Ano após ano, legislatura após legislatura, década após década, definham as condições de vida das classes laboriosas, dos reformados e das pequenas e médias empresas, definha, resumindo, o país, mas florescem as grandes fortunas e consolida o seu poderio o grande capital financeiro, que nem nos velhos tempos do fascismo se sentiu tão à rédea solta. Pior: o país foi vendido ao estrangeiro.


Nesta Assembleia da República, onde o PS e o PSD (com ou sem a ajuda do CDS/PP) sempre dispuseram de amplas maiorias, foi-se destruindo, mais do que o 25 de Abril, hipotecou-se a própria independência nacional. É a História e são os factos que o dizem, não sou eu, que só me limito a recordá-los. O que fizeram da nossa agricultura? O que fizeram das nossas pescas? O que fizeram da nossa indústria siderúrgica? Porque somos obrigados a importar cereais, fruta, carne, peixe, azeite, leite, vestuário, aço e uma quantidade infindáveis de bens de consumo, quando existem campos ao abandono, o mar não é aproveitado e impediu-se a ampliação da Siderurgia Nacional – que foi desmantelada e vendida a preço de saldo aos estrangeiros – ampliação essa que tornaria o país praticamente auto-suficiente em produtos siderúrgicos?


Senhor Presidente da República

Senhor Presidente da Assembleia da República

Senhoras e Senhores Deputados


O país está como está – à beira da bancarrota – porque V. Exas. foram, indesmentivelmente, incompetentes. Mas esse ainda seria o mais leve dos vossos pecados. V. Exas. optaram, com plena consciência – logo, com inegável dolo – por políticas que atentavam contra os interesses da Pátria e do povo português. V. Exas. venderam, com perfeito conhecimento das consequências dos vossos actos, o país aos interesses dos grandes mercadores nacionais e estrangeiros. E o resultado aí está.


E já que falamos em 25 de Abril, devo recordar-vos – ou esclarecer alguns dos senhores deputados mais novos – que a Revolução dos Cravos, ao derrubar a ditadura, pretendeu, também, transformar Portugal num país, justo, próspero e desenvolvido, onde não tivessem lugar as misérias sociais que hoje nos assolam.


Em vez disso, as políticas desenvolvidas – e ferreamente defendidas – por V. Exas., negando todos os ideais do 25 de Abril, acabaram por transformar o país numa coutada de interesses espúrios, um país à deriva desses mesmos interesses, onde a corrupção é um modo de vida, a imoralidade faz escola, a miséria alastra, a injustiça é a regra e os recursos são esbanjados na mesa de muitos poucos.


Convosco, senhor Presidente da República, senhor Presidente da Assembleia da República, senhoras e senhores Deputados, convosco e com as vossas políticas, o país afunda-se e dilui-se num mar de podridão moral e estrutural. E os vossos discursos não passaram, hoje como ontem, de palavras de circunstância, cortinas atrás das quais se esconde o avolumar da nossa decadência.


Por isso – e tal como o cravo caiu mal em muitas das vossas lapelas – também falar em 25 de Abril foi, na boca de alguns dos oradores, uma verdadeira obscenidade.


Lá fora, porém – e para vosso desassossego – o mundo pula e avança.


(João Carlos Pereira)


Crónica lida nas “Provocações” da Rádio Baía em 28/04/2010.

Não deixe de ouvir em 98.7 Mhz e participar pelos telefones 212277046 ou 212277047 todas as quartas-feiras entre as 09H00 e as 10H00.



quarta-feira, 21 de abril de 2010

O VAMPIRO ATACA DE NOVO

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Quando o saudoso Zeca Afonso falava, cantando, dos vampiros, naturalmente que não se referia a essa espécie de morcegos, aos vampiros propriamente ditos, que, como quaisquer outros animais, merecem o nosso respeito. Fazia-o em termos metafóricos, comparando aqueles que vivem do que produzem milhões de pessoas, enriquecendo à custa alheia, com esse animal, comum na América Central e do Sul, e que se
alimenta, essencialmente, do sangue doutros animais, sugando-o pela calada da noite.

Os vampiros eram, no tempo da ditadura, os banqueiros, os donos dos grandes grupos económicos, os seus sequazes e servidores, e toda uma tribo de parasitas que gravitava em seu redor, sorvendo o sangue de quem trabalhava. Para que tudo permanecesse como era, alguns desses vampiros – os Pides – vinham de noite, pela calada, e levavam para as celas de Peniche ou de Caxias os elementos da manada que ousassem exigir o fim do vampirismo.

Os vampiros – esses vampiros – não morreram com o 25 de Abril. São, neste tempo de alegada democracia e liberdade, os mesmos (ou os novos) banqueiros, os mesmos donos dos grandes grupos económicos, os seus sequazes e servidores, e todo uma imensa chusma de parasitas que gravita em seu redor. Os vampiros – esses vampiros – estão aí. Têm lugar de destaque no aparelho do Estado, dependuram-se em tudo o que é lugar da administração das empresas públicas e privadas, instalam-se nos órgãos de soberania, de que fazem gruta sua, dominam a generalidade da comunicação social, têm tribuna nos jornais, tempo de antena na televisão, falam nas rádios, enfim, chiam de poleiro. E, principalmente, sugam desenfreadamente o rebanho. No fundo, determinam que as relações económicas se baseiem, exactamente, no vampirismo mais desenfreado, chamando a isso economia de mercado. Eu chamo-lhe modo de produção capitalista.

Os vampiros – esses vampiros – são, em suma, seres sem vergonha e sem quaisquer vestígios de humanidade. Só lhes interessa sugar o sangue da manada e, para tanto, tentam convencê-la que isso é a coisa mais natural deste mundo, a ordem natural das coisas. Que sempre foi assim – e sempre assim será. Há dias, um destes vampiros, que nos contacta com alguma regularidade, voltou ao ataque. Não disse nada de novo, porque só sabe dizer uma coisa: as políticas de direita são as únicas praticáveis; aos governantes cumpre impô-las, aos governados resta acatá-las; a sociedade, tal como está estruturada, é que está bem, faltando apenas transferir o que ainda é público para as mãos dos privados. As suas intervenções têm o ranço do passado, o que leva aos arames muitos ouvintes. Pela minha parte, esfrego as mãos de contente sempre que o vampiro em questão se faz anunciar. Ele – seguramente sem querer – anima a discussão e traz para cima da mesa o debate ideológico que, em última análise, é o objectivo destas crónicas. E tem, com o seu discurso, outra não menos importante utilidade: demonstra como é perversa e inumana a ideologia que diz defender. E embora alguns ouvintes reajam a quente, a verdade é que há outros com uma leitura curiosa destas intervenções vampirinas. Vale a pena ler-vos um e-mail que recebi a propósito da última aparição do vampiro:

«Senhor João Carlos Pereira. Gosto bastante das intervenções do senhor Gonçalo, ao contrário do que acontece com a maioria dos ouvintes. Na minha opinião, ele não é um homem de direita, mas uma pessoa de esquerda que, muito inteligentemente, representa o papel de um direitista estúpido, com alguns laivos de fascista à mistura. Realmente, ao produzir afirmações que revelam tanta falta de carácter, tanta desumanidade, tanto cinismo e tanta insensibilidade perante o resultado desastroso das políticas que defende (o desempenho económico e a situação social estão aí a prová-lo), o senhor Gonçalo consegue, ainda melhor do que o meu amigo, explicar-nos todos os malefícios dessas mesmas políticas. Se for a ver, esse hipotético senhor Gonçalo nada mais é que um perspicaz agitador ao serviço da esquerda, que encontrou uma forma muito inteligente e original de denegrir Sócrates, o PS e, de uma maneira geral, o neo-liberalismo reinante, já que Sócrates e o PS não passam de meros executores das políticas neo-liberais que estão a levar o país para o estado em que se encontra. Mas caso o senhor Gonçalo seja mesmo aquilo que diz ser, então ele que me perdoe, mas não passa de uma pessoa da direita mais cavernícola, mas muitíssima obtusa (a tender para o bronco) e malévola (a tender para o pérfido), pois nada mais faz do que demonstrar como é cruel, cínica e desumana a estrutura política e económica que defende. Assim não vai lá. Cumprimentos. André Seabra – Lisboa.»

Depois de ler este e-mail, se eu acrescentasse algo mais, o estúpido era eu.


(João Carlos Pereira)

Crónica lida nas “Provocações” da Rádio Baía em 21/04/2010.
Não deixe de ouvir em 98.7 Mhz e participar pelos telefones 212277046 ou 212277047 todas as quartas-feiras entre as 09H00 e as 10H00.

quarta-feira, 14 de abril de 2010

O PEDITÓRIO DO COSTUME


Sempre que o senhor presidente da república pede, solenemente, a união de todos os portugueses, com o objectivo de vencer a crise, começo logo a ranger os dentes. E quando ele, logo a seguir, apela ao esforço e ao espírito de sacrifício de todos os portugueses para resolver os graves problemas com que o país de debate, contenho a custo o desabafo agreste que tal apelo me suscita.

Não sei, porque ele não explica, o que entende o senhor presidente da república por todos os portugueses. Nem sei, porque ele também não esclarece, como é que todos os portugueses se podem unir em volta desse ingente objectivo de salvar a pátria, se a pátria – ou alguém por ela – já decidiu que os portugueses divididos é que estão bem. Ou dizendo por outras palavras: se a pátria é mãe extremosa para uns poucos, mas terrível madrasta para todos os demais. Ou ainda: há uns portugueses mais portugueses do que outros.

Por outro lado, ao pedir sacrifícios a todos os portugueses, o senhor presidente não esclarece se está perfeitamente ciente de que a maioria dos portugueses anda a fazer sacrifícios desde que nasceu, e que isso não serviu absolutamente para nada. Não aproveitou a eles, nem aproveitou ao país. Aproveitou – isso eu sei – a alguns outros portugueses, muito poucos, que têm visto os seus pecúlios astronomicamente acrescidos. Aos tais que são filhos queridos da pátria. Mais portugueses do que os restantes.

O senhor presidente da república não nos explica se é do seu conhecimento o sacrifício que fazem, desde sempre, os mineiros portugueses, imolando a saúde e, muitas vezes, a vida, a troco de ordenados ridículos. Nem se tem consciência dos sacrifícios que fazem os homens do mar, ceifados frequentemente pelos riscos e dureza da faina, na luta diária pelo sustento. O senhor presidente ignorará, certamente, que a maioria dos trabalhadores portugueses já há muito que se sacrifica num quadro de ordenados baixos e preços e impostos altos, incompatível com uma vida digna e própria de um país que se diz republicano e democrático – e, principalmente, civilizado. O senhor presidente desconhece, pela certa, que milhões de reformados e pensionistas portugueses já nada mais têm para sacrificar. Nem os jovens que se arrastam para receber uns trocos nos call-centers, vendendo a banha da cobra que as empresas financeiras ou de serviços querem impingir aos portugueses. O que pode, na imaginação do senhor presidente, sacrificar ainda mais um trabalhador que recebe o salário mínimo? E que outros sacrifícios se podem pedir aos mais de 700 mil desempregados?

Todos nós gostaríamos que o presidente da república nos esclarecesse, concretizando, sobre o tipo de sacrifícios de que fala. Ainda mais impostos? Ordenados ainda menores? Prestações sociais ainda mais reduzidas? Menos Saúde? Menos Educação? Menos Justiça? Trabalhar mais por menos dinheiro? Será deste tipo de sacrifícios que fala o senhor presidente da república?

E quando fala em união de todos os portugueses, o que quererá dizer, exactamente, o senhor presidente da república? Pôr no mesmo saco – o saco da união, ou da unidade nacional – o senhor Mexia, presidente da EDP, com os seus 8.500 euros por dia, e a dona Maria, com a sua reforma de 280 euros por mês? Unir, no mesmo esforço de salvação nacional, o senhor Armando Vara, que recebe do BCP mais de meio milhão de euros por ano (isto sem contar com o que escorreu de outros lados), com o senhor Sousa, auxiliar de serviços gerais, com um ordenado de 480 euros mensais? Juntar, num abraço patriótico, o senhor Mira Amaral, com os seus vários ordenados e reformas (a última das quais de 18.000 euros mensais, por apenas ano e meio de «trabalho» na Caixa Geral de Depósitos) com a jovem Vanessa, desempregada da indústria de cablagem, e cujo subsídio de desemprego já terminou? Juntar, no mesmo emocionado abraço, os sete administradores da Galp, que levaram para casa, em 2009, 4.148 milhões de euros, com sete operadores de call-center, que, todos juntos, entre ordenados, prémios e subsídios, somaram, nos mesmos 365 dias, 73.500 euros? (Ou seja: os sete administradores da Galp ganharam o equivalente a cerca de 40 mil operadores de call center).

É nesta base – e nestas circunstâncias – que o senhor presidente da república imagina possível a unidade nacional e pede um esforço a todos os portugueses? Repito: a quais deles? Aos filhos, ou aos enteados? E admitamos que o povo ia na conversa e, ajudado por um milagre qualquer – e com muito sangue, suor e lágrimas – recuperava a economia. Como se distribuiria, a partir daí, a riqueza criada e a abundância produzida? Inverter-se-ia a lógica actual, de tudo para meia dúzia de nababos, e nada para a plebe? Ou ficaria tudo na mesma, como suspeito? E enquanto estas questões não forem respondidas, só me resta dizer:

União de todos os portugueses? Mais esforços e mais sacrifícios? Não, obrigado! Faça o favor de ir bater a outra porta. Aqui, está tudo teso.

E, para além do mais, já estamos fartos de encher a pança a malandros.


(João Carlos Pereira)

Crónica lida nas “Provocações” da Rádio Baía em 14/04/2010.
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quarta-feira, 7 de abril de 2010

O 25 DE ABRIL DOS RICOS

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Submarinos, Freeport, Face Oculta, Operação Furacão, sobreiros da Portucale, paquetes da Expo, BCP, BPN, BPP, eu sei lá que mais! Os escândalos são tantos, que é fácil algum ser esquecido. É verdade que as generalizações são perigosas, mas será demais concluir que o país está nas mãos de gente sem escrúpulos, tanto ao nível da alta finança como – e principalmente – ao nível da chamada classe política? E que a Justiça, claramente dependente do poder político – e infiltrada por agentes partidários sem a mínima noção de honra – é incapaz de cumprir as suas funções? Que já não é só uma Justiça de class
e (a classe dos poderosos) mas, também, uma Justiça onde a rédea partidária arrepanha a verdade e a conduz para onde quer?

Dizer-se que, em Portugal, a culpa morre sempre solteira, já é um lugar comum. Perdeu a graça. Afirmar-se que há uma Justiça para os pobres e outra para os ricos, só provoca um desalentado encolher de ombros. Portugal é um país dividido
em dois extractos sociais: de um lado, os senhores do grande capital, da alta finança e dos grandes negócios e, com eles mancomunado, um poder político atento e serviçal, dividindo entre si a riqueza produzida. Partem e repartem o PIB a seu bel-prazer, forjando leis que lhes garantam a opulência e a tornem intocável. Sem decoro ou hesitação, reservam para si benesses e proveitos vitalícios, traduzidos em lucros inimagináveis e em ordenados e pensões ilimitados. Não contentes com isso, não raramente se deixam apanhar pela febre do ouro, cometendo excessos a que nem a mais afável das leis dá cobertura. É aí que a Justiça é manietada, pois a fazem permeável e obediente aos seus desígnios e interesses; do outro lado, milhões de seres humanos a quem estão reservadas as dificuldades da vida, o lado mau da existência, a muitos se negando as condições básicas da simples sobrevivência. Sobre estes, a Justiça tem mão de ferro – e rápida.

De um país assim não se pode dizer que seja uma república. Nem se pode dizer que seja um país democrático. E correndo o risco de me tornar fastidioso, lá volto eu a dizer que, tal como no feudalismo, a uns compete trabalhar e suportar
o rigor das leis, enquanto outros se refastelam com o produto desse trabalho e se colocam acima de qualquer regra.

Para aqueles que sejam levados a pensar que estou a ser exagerado e imbuído de má-fé, deixem-me dar-vos um exemplo, pelo qual verificaremos que as regras e as leis não se aplicam de igual a todos os portugueses e – o que é pior – há leis feitas de propósito para beneficiar certas castas da população.

Soubemos, há tempos atrás, que uma professora, doente oncológica, foi considerada apta pela Junta Médica que avaliou a sua pretensão de passar á reforma. Morreu passado algum tempo. Entretanto, um senhor que era administrador do BCP, e que perdeu o lugar na sequência das trapalhadas que assolaram aquele banco, foi considerado inapto para o trabalho, apesar de já ter um emprego bem remunerado numa conhecida consultora financeira – e apesar de ser perfeitamente saudável. Pelo meio, o senhor em causa ainda recebeu do BCP perto de 10 milhões de euros. Resumindo: um trabalhador com cancro não pode reformar-se e é obrigado a trabalhar até à morte. Um senhor ex-administrador de um banco, em perfeito estado de saúde, que saiu com perto de 10 milhões de euros de indemnização por rescisão do contrato (o despedimento com justa causa é só para os trabalhadores…) e que já tinha arranjado outro emprego, vê uma solícita Junta Médica considerá-lo inapto para o trabalho. O valor da pensão atribuída ronda os 35.000 euros mensais. Para os menos atentos a estas coisas, recordo o nome do senhor em questão: Paulo Teixeira Pinto.

Claro que tudo isto aconteceu dentro da mais estrita legalidade, dentro do mais rigoroso cumprimento das leis. O que, se me dão licença, torna as coisas ainda mais perversas, já que para os senhores legisladores é tão normal obrigar-
se um professor com cancro a trabalhar até à morte, como conceder a um saudável (e mau) administrador – e já bem recompensado pela incompetência – uma pensão milionária… por suposta invalidez.

Tudo isto é, visto na sua espantosa nudez, uma infâmia inconcebível. Mas é o pão-nosso de cada dia. Tudo para os senhores, nada para os servos. A moral e os valores republicanos que levaram à queda da monarquia e à implantação da repúb
lica, que este ano festeja o seu centenário, são há muito letra morta. Os valores que balizam e definem um estado democrático, onde a liberdade se conjuga com a fraternidade, a solidariedade, a justiça e a decência, foram, trinta e seis anos depois da queda da ditadura, ostensivamente desprezados e espezinhados por uma elite económica e política que rapina o país e apresenta a conta às classes trabalhadoras.

Abúlico, o povo português parece disposto a suportar tudo. Parece, de resto, nada ser capaz de entender, nada ser capaz de analisar. Qualquer j
umento escoiceia e abana as orelhas, se espicaçado ou atacado pelas moscas. O povo português, pelo contrário, suporta a canga sem um lampejo de dignidade, de resistência, sem um berro, sem saber dizer basta.

Trinta e seis anos depois de Abril, só os herdeiros do fascismo e a plutocracia reinante podem – e com toda a razão – festejar a Revolução dos Cravos. Nunca as coisas estiveram tanto ao seu jeito.

(João Carlos Pereira)
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Crónica lida nas “Provocações” da Rádio Baía em 07/04/2010.
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sábado, 3 de abril de 2010

A REFORMA SANITÁRIA DOS EUA


Barack Obama é um fanático crente do sistema capitalista imperialista imposto pelos Estados Unidos ao mundo. "Deus abençoe os Estados Unidos”, conclui nos seus discursos.

Alguns dos seus factos feriram a sensibilidade da opinião mundial, que viu com simpatia a vitória do cidadão afro-americano perante o candidato da extrema direita desse país. Apoiando-se numa das mais profundas crises económicas que tem conhecido o mundo e na dor provocada pelos jóvens norte-americanos que perderam a vida ou que foram feridos ou mutilados nas guerras genocidas de conquista do seu antecessor, obteve os votos da maioria dos 50% dos norte-americanos que se dignam ir às urnas nesse democrático país.

Por elementar sentido ético, Obama devia ter-se abstido de aceitar o Prêmio Nobel da Paz, quando já tinha decidido enviar quarenta mil soldados para uma guerra absurda no coração da Ásia.

A política militarista, o saque dos recursos naturais, o intercâmbio desigual da actual administração com os países pobres do Terceiro Mundo, em nada se diferenciam da política dos seus antecessores, quase todos de extrema direita, salvo algumas excepções, ao longo do passado século.

O documento antidemocrático imposto na Cúpula de Copenhaga à comunidade internacional – que tinha acreditado na sua promessa de cooperar na luta contra a mudança climática – foi outro dos factos que causaram desapontamento a muitas pessoas no mundo. Os Estados Unidos, o maior emissor de gases de efeito estufa, não estava disposto a realizar os sacrifícios necessários apesar das palavras melosas prévias do seu Presidente.

Seria interminável a lista de contradições entre as ideias que a nação cubana tem defendido com enormes sacrifícios durante meio século e a política egoísta desse colossal império.

Apesar disso, não temos nenhuma adversão contra Obama, e muito menos contra o povo dos Estados Unidos. Achamos que a Reforma da Saúde foi uma importante batalha e um sucesso do seu governo. No entanto, parece algo verdadeiramente insólito que apenas 234 anos depois da Declaração de Independência, na Filadélfia no ano 1776, inspirada nas idéias dos franceses, o governo desse país aprovara o atendimento médico para a imensa maioria dos seus cidadãos, algo que Cuba conseguiu para toda a sua população há já meio século, apesar do cruel e desumano bloqueio imposto e ainda vigente pelo país mais poderoso que jamais existiu. Antes, depois de quase um século de independência após uma sangrenta guerra, Abraham Lincoln pôde conseguir a liberdade legal dos escravos.

Por outro lado, não posso deixar de pensar num mundo, no qual mais de um terço da população não tem atendimento médico e de remédios essenciais para garantir a saúde, situação que se vai agravar na medida em que a mudança climática, a escassez da água e de alimentos seja cada vez maior num mundo globalizado onde a população cresce, as florestas desaparecem, a terra agrícola diminui, o ar torna-se irrespirável e a espécie humana que o habita – que surgiu há menos de 200 mil anos, isto é, 3 500 milhões de anos depois que surgiram as primeiras formas de vida no planeta – corre o risco real de desaparecer como espécie.

Admitindo que a reforma sanitária signifique um sucesso para o governo de Obama, o actual Presidente dos Estados Unidos não pode ignorar que a mudança climática significa uma ameaça para a saúde e, ainda pior, para a própria existência de todas as nações do mundo, quando o aumento da temperatura – além dos limites críticos que estão à vista – dilua as águas congeladas dos glaciares, e as dezenas de milhões de quilómetros cúbicos armazenados nas enormes camadas de gelo acumuladas na Antártida, Gronelândia e Sibéria se derretam em poucas dezenas de anos, deixando sob as águas todas as instalações portuárias do mundo e as terras onde hoje mora, se alimenta e trabalha uma grande parte da população mundial.

Obama, os líderes dos países ricos e os seus aliados, os seus cientistas e os seus centros sofisticados de pesquisa sabem isso; é impossível que o ignorem.

Compreendo a satisfação com a qual se exprime e reconhece, no discurso presidencial, a contribuição dos membros do Congresso e da administração que fizeram possível o milagre da reforma sanitária, o qual fortalece a posição do governo perante os lobistas e mercenários da política que limitam as faculdades da administração. Seria pior se os que protagonizaram as torturas, os assassinatos por contrato e o genocídio ocupassem novamente o governo dos Estados Unidos. Como pessoa inquestionavelmente inteligente e bem informada, Obama sabe que não há exagero nas minhas palavras. Espero que as tolices que por vezes exprime sobre Cuba não obstruam a sua inteligência.

Após o sucesso nesta batalha pelo direito à saúde de todos os norte-americanos, 12 milhões de imigrantes, na sua imensa maioria latino-americanos, haitianos e de outros países do Caribe reclamam a legalização da sua presença nos Estados Unidos, onde realizam os trabalhos mais duros e dos quais não pode prescindir a sociedade norte-americana, na qual são arrestados, separados dos seus familiares e devolvidos para os seus países.

A imensa maioria deles emigrou para os Estados Unidos em consequência das tiranias impostas pelos Estados Unidos aos países da área e da brutal pobreza a que foram submetidos como resultado do saque dos seus recursos e da troca desigual. As suas remessas familiares constituem uma elevada porcentagem do PIB das suas economias. Agora aguardam um acto de elementar justiça. Se ao povo cubano lhe foi imposta uma Lei de Ajuste, que estimula o roubo de cérebros e o despojo dos seus jovens instruídos, por que empregam métodos tão brutais com os imigrantes ilegais dos países latino-americanos e caribenhos?

O devastador terramoto que atingiu o Haiti – o país mais pobre da América Latina, que acaba de sofrer uma catástrofe natural sem precedentes que implicou a morte de mais de 200 mil pessoas – e o terrível dano económico que outro fenómeno similar provocou no Chile, são provas convincentes dos perigos que ameaçam a chamada civilização e a necessidade de se tomar drásticas medidas que outorguem à espécie humana a esperança de sobreviver.

A Guerra Fria não trouxe nenhum benefício para a população mundial. O imenso poder económico, tecnológico e científico dos Estados Unidos não poderia sobreviver à tragédia que ameaça o planeta. O presidente Obama deve procurar no seu computador os dados pertinentes e conversar com os seus cientistas mais renomeados; verá que longe está o seu país de ser o modelo que preconiza para a humanidade.

Pela sua condição de afro-americano, lá sofreu as injúrias da discriminação, segundo narra no seu livro "Os sonhos do meu pai"; lá conheceu a pobreza na qual vivem dezenas de milhões de norte-americanos; lá foi educado, mas lá também gozou como profissional bem sucedido dos privilégios da classe média rica, e terminou idealizando o sistema social onde a crise económica, as vidas inutilmente sacrificadas dos norte-americanos e o seu indiscutível talento político lhe deram a vitória eleitoral.

Apesar disso, para a direita mais recalcitrante Obama é um extremista ao qual ameaçam com continuar travando batalha no Senado para neutralizar os efeitos da reforma sanitária e sabotá-la abertamente em vários Estados da União, declarando inconstitucional a Lei aprovada.

Os problemas da nossa época ainda são muito mais graves.

O Fundo Monetário Internacional, o Banco Mundial e outros organismos internacionais que outorgam créditos, sob o controle rigoroso dos Estados Unidos, permitem que os grandes bancos norte-americanos – criadores dos paraísos fiscais e responsáveis pelo caos financeiro no planeta – sejam ajudados pelos governos desse país em cada uma das freqüentes e crescentes crises do sistema.

A Reserva Federal dos Estados Unidos emite a seu bel-prazer as divisas convertíveis que custeiam as guerras de conquista, os lucros do Complexo Militar Industrial, as bases militares espalhadas pelo mundo e os grandes investimentos com os quais as multinacionais controlam a economia em muitos países do mundo. Nixon suspendeu unilateralmente a conversão do dólar em ouro, enquanto nos cofres dos bancos de Nova Iorque são guardados sete mil toneladas de ouro, algo mais de 25% das reservas mundiais desse metal, cifra que no fim da Segunda Guerra Mundial ultrapassava os 80%. Argumenta-se que a dívida pública ultrapassa os 10 bilhões de dólares, o qual excede os 70% do seu PIB, como uma carga que é transferida às novas gerações. Afirma-se isso quando, na verdade, é a economia mundial a que custeia essa dívida com as enormes despesas em bens e serviços que oferece para adquirir dólares norte-americanos, com os quais as grandes multinacionais desse país se apoderaram de uma considerável parte das riquezas do mundo e sustentam a sociedade de consumo dessa nação.

Qualquer pessoa compreende que tal sistema é insustentável, e porque os sectores mais ricos nos Estados Unidos e os seus aliados no mundo defendem um sistema apenas sustentável mediante a ignorância, as mentiras e os reflexos condicionados semeados na opinião mundial através do monopólio dos mídia, incluindo as principais redes da Internet.

Hoje a estrutura é derrubada perante o avanço acelerado da mudança climática e das suas nefastas conseqüências, que colocam a humanidade diante de um dilema excepcional.

As guerras entre as potências não parecem ser já a solução possível às grandes contradições, como o foram até à segunda metade do século XX; mas, por sua vez, incidiram de tal forma sobre os factores que fazem possíveis a sobrevivência humana, que podem pôr fim prematuramente à existência da actual espécie inteligente que habita no nosso planeta.

Há alguns dias exprimi a minha convicção de que, à luz dos conhecimentos científicos que hoje são dominados, o ser humano deverá solucionar os seus problemas no planeta Terra, porque nunca poderá percorrer a distância que separa o Sol da estrela mais próxima, localizada a quatro anos luz, velocidade que equivale a 300 mil quilômetros por segundo – como conhecem os nossos alunos do ensino secundário – se ao redor desse sol existisse um planeta semelhante à nossa bela Terra.

Os Estados Unidos investem fabulosas somas de dinheiro para comprovar a existência de água no planeta Marte e conhecer se existiu ou existe alguma forma elementar de vida. Ninguém sabe para quê, como não seja por pura curiosidade científica. Milhões de espécies vão desaparecendo a um ritmo acelerado no nosso planeta e as suas fabulosas quantidades de água estão sendo constantemente envenenadas.

As novas leis da ciência – a partir das fórmulas de Einstein sobre a energia e a matéria, e a teoria da grande explosão como origem dos milhões de constelações e infinitas estrelas ou outras hipóteses – produziram profundas mudanças nos conceitos fundamentais como o espaço e o tempo, que ocupam a atenção e as análises dos teólogos. Um deles, o nosso amigo brasileiro Frei Betto, aborda o tema no seu livro "A obra do artista: Uma visão holística do Universo", apresentado na última Feira Internacional do Livro de Havana.

Os avanços da ciência nos últimos cem anos influíram nos enfoques tradicionais que prevaleceram ao longo de milhares de anos nas ciências sociais e, inclusive, na Filosofia e na Teologia.

Não é pouco o interesse que os mais honestos pensadores prestam aos novos conhecimentos, mas, não sabemos absolutamente nada do que pensa o presidente Obama sobre a compatibilidade entre as sociedades de consumo e a ciência.

Entretanto, vale a pena dedicar-se de vez em quando a meditar sobre esses temas. Por isso, com certeza, o ser humano não deixará de sonhar e de tomar as decisões com a devida serenidade e nervos de aço. É o dever, pelo menos, daqueles que escolheram o ofício de políticos e o nobre e irrenunciável objetivo de uma sociedade humana solidária e justa.

(Fidel Castro Ruz)
Março de 2010