quarta-feira, 7 de abril de 2010

O 25 DE ABRIL DOS RICOS

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Submarinos, Freeport, Face Oculta, Operação Furacão, sobreiros da Portucale, paquetes da Expo, BCP, BPN, BPP, eu sei lá que mais! Os escândalos são tantos, que é fácil algum ser esquecido. É verdade que as generalizações são perigosas, mas será demais concluir que o país está nas mãos de gente sem escrúpulos, tanto ao nível da alta finança como – e principalmente – ao nível da chamada classe política? E que a Justiça, claramente dependente do poder político – e infiltrada por agentes partidários sem a mínima noção de honra – é incapaz de cumprir as suas funções? Que já não é só uma Justiça de class
e (a classe dos poderosos) mas, também, uma Justiça onde a rédea partidária arrepanha a verdade e a conduz para onde quer?

Dizer-se que, em Portugal, a culpa morre sempre solteira, já é um lugar comum. Perdeu a graça. Afirmar-se que há uma Justiça para os pobres e outra para os ricos, só provoca um desalentado encolher de ombros. Portugal é um país dividido
em dois extractos sociais: de um lado, os senhores do grande capital, da alta finança e dos grandes negócios e, com eles mancomunado, um poder político atento e serviçal, dividindo entre si a riqueza produzida. Partem e repartem o PIB a seu bel-prazer, forjando leis que lhes garantam a opulência e a tornem intocável. Sem decoro ou hesitação, reservam para si benesses e proveitos vitalícios, traduzidos em lucros inimagináveis e em ordenados e pensões ilimitados. Não contentes com isso, não raramente se deixam apanhar pela febre do ouro, cometendo excessos a que nem a mais afável das leis dá cobertura. É aí que a Justiça é manietada, pois a fazem permeável e obediente aos seus desígnios e interesses; do outro lado, milhões de seres humanos a quem estão reservadas as dificuldades da vida, o lado mau da existência, a muitos se negando as condições básicas da simples sobrevivência. Sobre estes, a Justiça tem mão de ferro – e rápida.

De um país assim não se pode dizer que seja uma república. Nem se pode dizer que seja um país democrático. E correndo o risco de me tornar fastidioso, lá volto eu a dizer que, tal como no feudalismo, a uns compete trabalhar e suportar
o rigor das leis, enquanto outros se refastelam com o produto desse trabalho e se colocam acima de qualquer regra.

Para aqueles que sejam levados a pensar que estou a ser exagerado e imbuído de má-fé, deixem-me dar-vos um exemplo, pelo qual verificaremos que as regras e as leis não se aplicam de igual a todos os portugueses e – o que é pior – há leis feitas de propósito para beneficiar certas castas da população.

Soubemos, há tempos atrás, que uma professora, doente oncológica, foi considerada apta pela Junta Médica que avaliou a sua pretensão de passar á reforma. Morreu passado algum tempo. Entretanto, um senhor que era administrador do BCP, e que perdeu o lugar na sequência das trapalhadas que assolaram aquele banco, foi considerado inapto para o trabalho, apesar de já ter um emprego bem remunerado numa conhecida consultora financeira – e apesar de ser perfeitamente saudável. Pelo meio, o senhor em causa ainda recebeu do BCP perto de 10 milhões de euros. Resumindo: um trabalhador com cancro não pode reformar-se e é obrigado a trabalhar até à morte. Um senhor ex-administrador de um banco, em perfeito estado de saúde, que saiu com perto de 10 milhões de euros de indemnização por rescisão do contrato (o despedimento com justa causa é só para os trabalhadores…) e que já tinha arranjado outro emprego, vê uma solícita Junta Médica considerá-lo inapto para o trabalho. O valor da pensão atribuída ronda os 35.000 euros mensais. Para os menos atentos a estas coisas, recordo o nome do senhor em questão: Paulo Teixeira Pinto.

Claro que tudo isto aconteceu dentro da mais estrita legalidade, dentro do mais rigoroso cumprimento das leis. O que, se me dão licença, torna as coisas ainda mais perversas, já que para os senhores legisladores é tão normal obrigar-
se um professor com cancro a trabalhar até à morte, como conceder a um saudável (e mau) administrador – e já bem recompensado pela incompetência – uma pensão milionária… por suposta invalidez.

Tudo isto é, visto na sua espantosa nudez, uma infâmia inconcebível. Mas é o pão-nosso de cada dia. Tudo para os senhores, nada para os servos. A moral e os valores republicanos que levaram à queda da monarquia e à implantação da repúb
lica, que este ano festeja o seu centenário, são há muito letra morta. Os valores que balizam e definem um estado democrático, onde a liberdade se conjuga com a fraternidade, a solidariedade, a justiça e a decência, foram, trinta e seis anos depois da queda da ditadura, ostensivamente desprezados e espezinhados por uma elite económica e política que rapina o país e apresenta a conta às classes trabalhadoras.

Abúlico, o povo português parece disposto a suportar tudo. Parece, de resto, nada ser capaz de entender, nada ser capaz de analisar. Qualquer j
umento escoiceia e abana as orelhas, se espicaçado ou atacado pelas moscas. O povo português, pelo contrário, suporta a canga sem um lampejo de dignidade, de resistência, sem um berro, sem saber dizer basta.

Trinta e seis anos depois de Abril, só os herdeiros do fascismo e a plutocracia reinante podem – e com toda a razão – festejar a Revolução dos Cravos. Nunca as coisas estiveram tanto ao seu jeito.

(João Carlos Pereira)
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Crónica lida nas “Provocações” da Rádio Baía em 07/04/2010.
Não deixe de ouvir em 98.7 Mhz e participar pelos telefones 212277046 ou 212277047 todas as quartas-feiras entre as 09H00 e as 10H00.

1 comentário:

jrd disse...

A culpa festeja o Abril (deles) porque sabe que vai morrer mancomunada com o poder.
Até um dia...