quarta-feira, 28 de abril de 2010

O OUTRO DISCURSO


Senhor Presidente da República

Senhor Presidente da Assembleia da República

Senhoras e Senhores Deputados


Acabo de ouvir os vossos discursos alusivos ao 36.º aniversário do 25 de Abril. Se me permitem a ousadia, quero dizer-vos que não divergiram muito – se é que divergiram alguma coisa – dos discursos proferidos em anos anteriores, pela mesma altura. Aliás, já no ano passado, em iguais circunstâncias, constatei exactamente o mesmo. E, se bem me recordo, idêntica sensação me ficou em todos os anos para trás, pelo menos até onde a minha memória alcança. Sem querer ser indelicado, devo confessar-vos que não percebi, no contexto em que estamos – comemorar o 25 de Abril – a utilidade das vossas preciosas alocuções. Não que estivessem elaboradas em português menos escorreito, nada disso, que os vossos assessores sabem da poda e, em termos de ortografia e sintaxe, tudo é passado por apertados crivos. Não que, apesar das várias e reconhecidas limitações de dicção de alguns dos senhores oradores, ficasse alguma palavra por entender. Não que a pompa e a solenidade do momento não favorecessem a audição das falas. Nada disso. Não percebi, simplesmente, o nexo entre toda a arenga produzida e a realidade. Ou seja: porque é que as vossas análises e teorias, tão exuberantemente debitadas, não têm e não terão, como não tiveram antes, quaisquer reflexos práticos; porque há tanta sabedoria nas vossas brilhantes mentes e, depois, tanta incapacidade nas vossas vontades ou competências.


Ouvi relatos relativamente acertados sobre a nossa triste realidade. Já os tinha ouvido no ano anterior, e no outro, e no outro, e por aí fora até onde a penumbra da memória me deixa ir. Ouvi lindas teorias sobre métodos e princípios de actuação, sementes de projectos inovadores, varinhas mágicas capazes de, finalmente, nos libertarem desta apagada e vil tristeza que Camões voltaria a cantar. Já perdi o conto a quantas outras exposições do mesmo género este Parlamento ouviu, sem que delas resultasse o mínimo efeito. Ouvi sérias reprimendas a actuações despojadas de honra, que são o pão-nosso de cada dia para certos indignos dignitários, que dão agora à política ainda pior fama do que ela, merecidamente, já tinha. Mas nunca das palavras se passou aos actos, como se os vossos discursos fossem um fim em si mesmo. Em suma: V. Exas. sabem, aparentemente, o que é preciso fazer para salvar o país do atoleiro onde – e desculpem-me a franqueza – por acção ou omissão, o meteram, mas não são capazes de levar à prática uma única das muitas medidas que preconizam para de lá o tirarem. Uma tristeza.


Contudo, está aqui, no Parlamento – ou, pelo menos, devia estar – todo o poder. É aqui que são – ou, pelo menos, deviam ser – estabelecidas as linhas que definem o rumo do país. A mais ninguém podem os portugueses pedir responsabilidades pelas suas dificuldades actuais. Foram os senhores deputados desta Assembleia – e os governos dela emanados – que fizeram de Portugal o que ele hoje é. Um país com uma economia anémica, um desemprego galopante, falências em série, baixos salários e pensões, prestações sociais miseráveis, exportações ridículas, endividamento externo suicida, são estes os indicadores de um país sem rei nem roque. E são estas as provas de que V. Exas. falharam rotundamente. E, no entanto, aí estão de novo a divagar sobre receitas milagrosas que, à semelhança do que sempre fizeram, não sabem – ou, mais precisamente, não querem – aplicar.


Notaram, certamente, que pus em dúvida que seja o Parlamento a sede do poder político. Conscientemente o faço. Na verdade, desde há cerca de 34 anos que todas as medidas que aqui se tomam – ou as que se deviam ser tomadas e o não são – favoreceram, exclusivamente, um outro poder: o poder económico, a alta finança. Ano após ano, legislatura após legislatura, década após década, definham as condições de vida das classes laboriosas, dos reformados e das pequenas e médias empresas, definha, resumindo, o país, mas florescem as grandes fortunas e consolida o seu poderio o grande capital financeiro, que nem nos velhos tempos do fascismo se sentiu tão à rédea solta. Pior: o país foi vendido ao estrangeiro.


Nesta Assembleia da República, onde o PS e o PSD (com ou sem a ajuda do CDS/PP) sempre dispuseram de amplas maiorias, foi-se destruindo, mais do que o 25 de Abril, hipotecou-se a própria independência nacional. É a História e são os factos que o dizem, não sou eu, que só me limito a recordá-los. O que fizeram da nossa agricultura? O que fizeram das nossas pescas? O que fizeram da nossa indústria siderúrgica? Porque somos obrigados a importar cereais, fruta, carne, peixe, azeite, leite, vestuário, aço e uma quantidade infindáveis de bens de consumo, quando existem campos ao abandono, o mar não é aproveitado e impediu-se a ampliação da Siderurgia Nacional – que foi desmantelada e vendida a preço de saldo aos estrangeiros – ampliação essa que tornaria o país praticamente auto-suficiente em produtos siderúrgicos?


Senhor Presidente da República

Senhor Presidente da Assembleia da República

Senhoras e Senhores Deputados


O país está como está – à beira da bancarrota – porque V. Exas. foram, indesmentivelmente, incompetentes. Mas esse ainda seria o mais leve dos vossos pecados. V. Exas. optaram, com plena consciência – logo, com inegável dolo – por políticas que atentavam contra os interesses da Pátria e do povo português. V. Exas. venderam, com perfeito conhecimento das consequências dos vossos actos, o país aos interesses dos grandes mercadores nacionais e estrangeiros. E o resultado aí está.


E já que falamos em 25 de Abril, devo recordar-vos – ou esclarecer alguns dos senhores deputados mais novos – que a Revolução dos Cravos, ao derrubar a ditadura, pretendeu, também, transformar Portugal num país, justo, próspero e desenvolvido, onde não tivessem lugar as misérias sociais que hoje nos assolam.


Em vez disso, as políticas desenvolvidas – e ferreamente defendidas – por V. Exas., negando todos os ideais do 25 de Abril, acabaram por transformar o país numa coutada de interesses espúrios, um país à deriva desses mesmos interesses, onde a corrupção é um modo de vida, a imoralidade faz escola, a miséria alastra, a injustiça é a regra e os recursos são esbanjados na mesa de muitos poucos.


Convosco, senhor Presidente da República, senhor Presidente da Assembleia da República, senhoras e senhores Deputados, convosco e com as vossas políticas, o país afunda-se e dilui-se num mar de podridão moral e estrutural. E os vossos discursos não passaram, hoje como ontem, de palavras de circunstância, cortinas atrás das quais se esconde o avolumar da nossa decadência.


Por isso – e tal como o cravo caiu mal em muitas das vossas lapelas – também falar em 25 de Abril foi, na boca de alguns dos oradores, uma verdadeira obscenidade.


Lá fora, porém – e para vosso desassossego – o mundo pula e avança.


(João Carlos Pereira)


Crónica lida nas “Provocações” da Rádio Baía em 28/04/2010.

Não deixe de ouvir em 98.7 Mhz e participar pelos telefones 212277046 ou 212277047 todas as quartas-feiras entre as 09H00 e as 10H00.



2 comentários:

Anónimo disse...

Senhor Deputado João Pereira

Gostei do seu discurso e seria interessante que os outros Deputados do seu Partido tivessem a coragem que o Senhor tem.

Mas não. Eles limitam-se a proferir as generalidades que já apregoam há vinte ou trinta anos sem qualquer originalidade, seguindo a cartilha de que já estamos fartos.

monte cristo disse...

Os democratas, os revolucionários, os patriotas (quase todos) estão muito bem aconchegados nos seus cargos, nas suas reformas, (nos seus tachos, ou jobs, como se queira), ou entretidos a falar sozinhos, ou em círculos fechados, nos centros de trabalho. Desligaram-se da vida, foram engolidos pela «democracia» em curso. São meninos bem comportados, politicamente correctos, inodoros, incolores, insípidos.

Venha o cheque ao fim do mês, e o resto é conversa.