quarta-feira, 26 de maio de 2010

A FORMIGA E O FORMIGUEIRO

...
Enviei um e-mail com uma anedota política a um amigo meu. E ele respondeu-me com isto: «O estado providência acabou, não existe, e andar com blá-blás de igualdade é um logro. Não nascemos iguais, excepto no respeito e dignidade. A partir daí, somos totalmente diferentes e temos de viver com isso». Respondi-lhe, primeiro, com uma espécie de fábula.

Esta:

«Todos os dias, uma formiga chegava cedinho ao escritório e atirava-se ao trabalho. A formiga era produtiva e feliz. O gerente besouro estranhou que a formiga trabalhasse sem supervisão. Se ela era produtiva sem supervisão, mais o seria se fosse supervisionada. E colocou uma barata, que preparava belíssimos relatórios e tinha muita experiência, como supervisora. A primeira preocupação da barata foi a de estabelecer o horário de entrada e saída da formiga. Em breve, a barata precisou de uma secretária para ajudar a preparar os relatórios. E contratou também uma aranha para organizar os arquivos e controlar as ligações telefónicas. O besouro ficou encantado com os relatórios da barata e pediu também gráficos com indicadores e análise das tendências, que eram mostradas em reuniões.

A barata, então, contratou uma mosca, e comprou um computador com impressora a cores. Em breve, a formiga, outrora produtiva e feliz, começou a lamentar-se de toda aquela movimentação de papéis e reuniões.

O besouro concluiu que era o momento de criar a função de gestor para a área onde a formiga trabalhava. O cargo foi dado a uma cigarra, que mandou colocar carpete no seu escritório e comprar uma cadeira especial. A nova gestora precisou logo de um computador e de uma assistente, a pulga (sua assistente na empresa anterior), para ajudá-la a preparar um plano estratégico de melhorias e um controle do orçamento para a área onde trabalhava a formiga, que a cada dia se sentia mais aborrecida. A cigarra, então, convenceu o gerente que era necessário fazer um estudo de clima. Mas o besouro, ao rever as cifras, deu-se conta de que a unidade na qual a formiga trabalhava já não rendia como antes, e contratou a coruja, uma prestigiada consultora, para que fizesse um diagnóstico da situação. A coruja ficou três meses no escritório e emitiu um volumoso relatório, com vários volumes, onde se concluía: Há muita gente nesta empresa! E adivinha quem o besouro mandou demitir? A formiga, claro, porque ela andava muito desmotivada e aborrecida».

Contada a fábula, continuei: Esta história da formiga responde um pouco aos teus argumentos. Mas sobre o teu ponto de vista, tenho ainda a explicar (e passe a presunção):

Não somos todos iguais, é um facto. Mas – vê lá tu! – geneticamente, somos quase iguais aos chimpanzés. Noventa e tal por cento coincidem. Isto é: nós, os ditos humanos, somos todos muito mais parecidos do que diferentes. As condições sociais, produzidas por uma sociedade que certos humanos desumanizaram, é que fizeram acentuar – ou «fabricaram» – as diferenças. Esclareço-te, contudo, que não concebo uma sociedade sem deveres e sem direitos. Todos – a partir de certa idade e até certa idade – têm o dever de trabalhar, providenciando, assim, o seu sustento e o desenvolvimento da sociedade onde se inserem.

Sei que nem todos podem ser cirurgiões, como nem todos podem ser mineiros, ou pescadores, sapateiros, futebolistas, pedreiros, calceteiros, estivadores, bancários, escritores, engenheiros (há um que diz que é...), cantoneiros, ou metalúrgicos, mas todos – e cada um no seu mister – fazem o que é preciso fazer. Todos devem ser, por igual, respeitados.

A sociedade, por sua vez, deve organizar-se de maneira a que todos os que trabalham (podendo trabalhar) beneficiem de condições elementares de existência. Chama-se a isso Direitos Humanos, e que são, entre outros: acesso a cuidados de saúde, à educação, à habitação, à cultura e ao laser e, claro, o direito ao Trabalho. E mais tarde, quando as forças faltarem, protecção na velhice. Penso que ninguém respeitável – e no seu perfeito juízo – diz que uma sociedade decente não deve providenciar a aplicação destes direitos.

Não sei se é correcto chamar a isso estado providência, nem se esse dito estado pode ser abolido apenas porque alguém entende que sim. Eu acho que é obrigação do Estado (seja em que plano for, mas, especialmente, no plano da pura sobrevivência) providenciar que todos os cidadãos possam ser seres humanos saudáveis e felizes, o que passa por evitar que as condições económicas e sociais asfixiam as potencialidades de largas faixas do tecido social. Não é só uma questão de justiça, de humanismo, de decência: é uma questão de inteligência. É evitar que se desperdicem talentos – ou, até, génios – que a qualidade do berço não deixa florir.

Não é certo – nem passa lá perto – conforme tu muito bem deves saber, que todos os homens de sucesso, em termos económicos e sociais, sejam os melhores seres humanos deste mundo: mais íntegros, mais inteligentes, mais úteis. Nem vale a pena dar-te exemplos, pois a nossa vida recente tem mostrado o que são, nos dias que correm, homens de sucesso.

Todos, enquanto seres humanos, somos iguais, até que o nosso comportamento (desumano, ou anti-social) diga que não. Por isso, todos devemos ser considerados iguais perante a lei e ter acesso a uma vida digna. Estar garantido que, respeitando as regras, a sociedade não nos exclua. Por outras palavras: o Estado tem a obrigação de dar a todos os cidadãos as mesmas oportunidades, para que cada um, de acordo com as suas capacidades e valor, possa beneficiar, de forma equitativa, da riqueza produzida. Ou não?

Penso que não discordas deste ponto de vista. A menos que já penses (o que não creio) como a nossa distinta classe empresarial – e a não menos distinta classe política – que chamam privilégios aos direitos humanos das classes laboriosas. O que significa que as populações da Somália e da Serra Leoa é que são tratadas como manda a lei.

Lá chegaremos, se não sacudirmos a canga.




(João Carlos Pereira)


Crónica lida nas “Provocações” da Rádio Baía em 26/05/2010.
Não deixe de ouvir em 98.7 Mhz e participar pelos telefones 212277046 ou 212277047 todas as quartas-feiras entre as 09H00 e as 10H00.

quarta-feira, 19 de maio de 2010

OS GLUTÕES AO ATAQUE

...
Com o país entretido e anestesiado com a vitória do Benfica e a visita do Papa, os glutões deram a machadada que há muito se preparavam para dar. Até agora, só lhes faltava a oportunidade. O momento psicológico certo. Ele apareceu com esses dois acontecimentos que passaram a ocupar a atenção dos portugueses, com horas e horas a fio de noticiários, como se mais nada de importante acontecesse no país e no mundo. Embora em esferas diferentes, as emoções dos portugueses vieram ao de cima, tirando-lhes, literalmente, os pés do chão. Deixaram de pensar na sua triste vidinha, na dura realidade do dia-a-dia, eufóricos com o êxito desportivo do clube português que mais paixões desperta, apoiado por mais de cinquenta por cento da população portuguesa, ou adormecidos com as ladainhas bem encenadas da visita papal. Mas enquanto os benfiquistas fizeram a festa do seu bolso, a festa que tem Sua Santidade como principal artista, caríssima de milhões de euros, foi paga pelo bolso de todos nós, mesmo dos que se estão perfeitamente nas tintas para os aparatos e artifícios da religião.

Vendo a manada adormecida – e como vampiros que são – os glutões ferraram-lhe as mandíbulas sem dó nem piedade. O pretexto, como é sabido, é o défice. Há sempre um pretexto para justificar a sangria. Por isto ou por aquilo, o Zé tem sempre que pagar a crise. Esta, ou outra qualquer tirada no inesgotável armazém de crises que os glutões possuem. Desde que me lembro – e já lá vão muitas décadas – a conversa é sempre a mesma. E eficaz. O povo sai de uma crise, e entra logo noutra. Para Salazar, era a Bem da Nação; para estes, seus dignos sucessores, é a Bem da Economia. Porque é que a nação e a economia nunca estão bem, é que eles não explicam. Nem, muito menos, porque é que as crises acontecem.

Estou farto de dizer que as crises não são fenómenos naturais, impossíveis de controlar pelos homens. As crises económicas resultam da acção directa de quem comanda a economia, em suma, da vontade e da competência de alguns homens. Não acontecem por acaso, como um furacão ou um tsunami, ou terramoto ou uma época de chuvas diluvianas. As crises económicas têm responsáveis, que são os governos e os detentores do poder económico. Mais ninguém. Não é quem trabalha arduamente, a troco de pagamentos inferiores à riqueza que produz e que, ainda por cima, paga os seus impostos, que provoca a crise. Mas, inevitavelmente, é ele quem a paga.

O que aí vem não é uma solução para a crise, porque o próprio sistema capitalista é a crise em si mesma. Se este sangrar das classes trabalhadoras resolvesse alguma coisa, há muito que as crises estariam vencidas, porque há muito que este sangrar é a receita para vencer a crise. Sem sucesso, como a realidade atesta. O papão da crise é apenas um pretexto para saquear as classes laboriosas, seja através do congelamento de salários e aumento do custo de vida, seja através do sufoco tributário.

O que aí vem é apenas mais do mesmo, em dose reforçada, e porque é mais do mesmo vai conduzir ao mesmo: estagnação económica, desemprego, mais fome, mais miséria, retrocesso social, decadência, endividamento externo, instabilidade, desmoralização, violência, insegurança.

Para além disto, que é garantido, apenas temos outra coisa como certa: não somos donos do país, não somos donos do nosso destino. E se quisermos deixar de ser – como realmente somos – bestas de carga, só nos resta sacudir a canga e as arreatas, unir as vozes, as mãos e as vontades e, sem a mínima hesitação ou misericórdia, tomarmos conta do país.

Ou seja: eliminar de vez os glutões. Os vampiros…





(João Carlos Pereira)

Crónica lida nas “Provocações” da Rádio Baía em 19/05/2010.
Não deixe de ouvir em 98.7 Mhz e participar pelos telefones 212277046 ou 212277047 todas as quartas-feiras entre as 09H00 e as 10H00.

quarta-feira, 12 de maio de 2010

A NOVA ESTRELA

...
Nasceu uma estrela no panorama da política nacional. Chama-se Ricardo Rodrigues e, entre várias especialidades, é perito em furtar gravadores a jornalistas. Como não podia deixar de ser, é socialista – dizendo melhor: é do Partido Socialista, o que, como amargamente aprendemos, não significa ser-se socialista, em termos práticos – e é homem de confiança do senhor engenheiro José Sócrates. Dizendo isto, estaria tudo dito. Dá-se o caso, no entanto, de a rapaziada ser bastante desatenta e, para além do mais, não ter condições de acesso a muita informação que por aí circula, mas que a generalidade da comunicação social esconde. Por isso, é preciso explicar quem é este eminente político, apanhado agora a surripiar uns gravadores aos incautos jornalistas que o entrevistavam.

Ricardo Rodrigues é aquele senhor irascível, muito dado a ataques de mau humor e a tentações censórias, que o PS designou para a Comissão de Ética da Assembleia da República, onde se esforça para que a verdade sobre as tentativas do seu partido controlar a comunicação social não seja apurada. É advogado e foi membro do governo regional dos Açores, do qual se demitiu na sequência do caso Farfalha, um escândalo de pedofilia que abalou a região. O seu nome, aliás, aparece envolvido em outras situações que deixam sérias dúvidas sobre a sua idoneidade e a sua competência. De facto, se como advogado nunca primou pelo sucesso, sendo até acusado de deixar «condenar estupidamente» clientes seus, como cidadão apareceu associado a processos nebulosos que muito deram que falar na sociedade açoriana. Foi a atribulada falência de um jornal do PS, em Ponta Delgada, e o processo dos milhões de euros desviados da Caixa Geral de Depósitos de Vila Franca do Campo, onde foi constituído arguido e, segundo José Maria Martins, que, como advogado, esteve no mesmo processo, «alguém se encarregou de o safar», contrariando a posição da Polícia Judiciária. Ao afirmar isto, José Maria Martins desafiou mesmo Ricardo Rodrigues a processá-lo, coisa que até agora – e que se saiba – não foi feito.

Ora, era precisamente sobre estas matérias que os jornalistas da revista Sábado estavam a questioná-lo quando o senhor deputado resolveu agarrar nos gravadores, metê-los no bolso e dar a conversa como acabada. O senhor deputado, para justificar o seu acto, disse que as perguntas constituíam uma «violência psicológica insuportável». Ficámos a saber que, na lógica dos socialistas – tal como, anteriormente, na lógica dos fascistas – os jornalistas não podem fazer perguntas que desagradem aos senhores entrevistados, sempre que os entrevistados sejam eles. E como, por enquanto, não se pode prendê-los, opta-se por lhes palmar os gravadores. Não basta não responder – ou, até, aproveitar o momento para esclarecer dúvidas, repor a verdade, desmontar boatos e limpar o nome. Nada disso. A solução é confiscar o material de gravação, metê-lo ao bolso… e por aqui me sirvo. Ficámos a saber, também, o que pensam os socialistas da liberdade de imprensa e do direito a informar e ser informado, já que a acção mereceu palmas e apoio incondicional dos seus correligionários e apaniguados.

Se o senhor deputado socialista tem caldinhos na sua vida – e não serão poucos, pelos vistos – e não quer ser questionado sobre eles, não se meta na vida pública, pois todos temos o direito de escrutinar a vida daqueles que ocupam lugares que exigem um passado limpo de qualquer mancha. A um deputado da nação exige-se uma vida transparente, e a comunicação social tem o direito – e o dever – de a passar a pente fino, não só para informar e esclarecer a opinião pública, como, também, para dar ao visado a oportunidade de demonstrar que é uma pessoa imaculada e digna de deter um cargo que foi obtido através do voto, e é pago por todos nós. O senhor deputado não quis – ou não pôde – mostrar-nos que é uma pessoa de bem. Ao invés – e como o seu acto atesta – deu-nos a entender que não é pessoa de princípios, nem de confiança. E, por acréscimo, que não prima pela estabilidade emocional nem pela inteligência.

Resumindo: está muito bem no PS.

Estava eu nestas cogitações, quando me chega a notícia que o distinto deputado foi nomeado para consultor do primeiro-ministro em matéria de segurança interna. Curioso, fui à procura de mais dados sobre o cavalheiro, tendo esbarrado com a informação de que também faz parte do Conselho Superior do Ministério Público. Cada vez mais interessado, vasculhei até me surpreender, a pontos de quase cair para o lado: sua excelência foi um dos obreiros, durante a legislatura passada, das alterações do Código Penal e de Processo Penal, dotando-os de artigos de protecção em matéria de investigação criminal a políticos. Ou, por palavras mais simples: domesticar a investigação criminal, subordinando-a ao poder político. A Lei deixou, pura e simplesmente, de ser igual para todos.

Portugal, conduzido pelo Partido Socialista, está à beira da falência. Mas no que respeita à decência é à ética, já faliu há muito tempo.

Como o senhor deputado Ricardo Rodrigues abundantemente testemunha.



(João Carlos Pereira)


Crónica lida nas “Provocações” da Rádio Baía em 12/05/2010.
Não deixe de ouvir em 98.7 Mhz e participar pelos telefones 212277046 ou 212277047 todas as quartas-feiras entre as 09H00 e as 10H00.

terça-feira, 11 de maio de 2010

O DIABO DA CRISE

...
...
A crise é o demónio dos tempos modernos. O demónio, pelo menos aquele demónio que a mitologia católica tanto promoveu, teve os seus tempos áureos na Idade Média. Nessa altura, servia para explicar tudo o que de mau acontecia às pessoas. Serviu, principalmente, para manter a plebe na linha. Se a vida corria mal a alguém, era porque tinha o diabo no corpo. E o pior que o diabo podia fazer a uma pessoa era pô-la a pensar alto. Servo que reclamasse das diatribes dos senhores feudais, estava possuído pelo demónio. Estava feito ao bife, como se viria a dizer séculos mais tarde, particularmente em Portugal, quando alguém era ouvido, pelos ouvidos errados, a mandar vir contra o governo.

Para eliminar o diabo, na época medieval, era costume atirar para a fogueira os desgraçados que, descuidadamente, se tinham deixado invadir por esse maléfico ser. Foi criada uma caridosa instituição, chamada Santa Inquisição, que lançou para a fogueira milhares de pessoas. Não consta que o demónio, diabo, belzebu ou satanás – só para usar os nomes mais vulgares – tenha sido assim exterminado, o que põe em causa a bondade do método, mas quando se deu por isso já centenas de milhares de pessoas tinha passado, piedosa e muito catolicamente, a cinzas

Já em tempos mais recentes, para eliminar o diabo que entrava no corpo das pessoas, sob a forma de espírito subversivo ou contestatário, ou, simplesmente, sob a forma de querer ser-se uma pessoa de corpo inteiro, foi descoberto outro método igualmente caridoso: a prisão, frequentemente completada com a tortura e, não poucas vezes, com a morte. Houve algumas instituições que ficaram famosas no tratamento desses espíritos demoníacos, como a afamada Gestapo, de Hitler, a PIDE, de Salazar, ou a DINA, de Pinochet. Entre muitas outras benévolas instituições do género.

Com o passar dos anos – e com a abertura das mentes e os avanços tecnológicos – o diabo, coitado, caiu em desuso. Já é mais uma figura do anedotário da civilização ocidental, um ente que ninguém leva a sério. Não infunde respeito nem medo. Enfim, reformou-se; passou à história.

Mas como é preciso sempre alguma coisa que apavore as massas e as mantenha eternamente disponíveis para pagar as favas, os novos – actuais – senhores feudais inventaram algo mais subtil e eficaz. Um sucedâneo do demónio, mas definitivamente democrático e moderno. Mais soft, como agora se diz. Mas exactamente como o velho diabo, ninguém vê a Coisa, ninguém sabe como e quando aparece – até dou por mim a pensar que está sempre por aí, atrás da porta – ninguém sabe como nasceu, ninguém sabe, realmente, como esconjurá-la, pois, tal como as fogueiras da Inquisição só queimavam as criaturas, as medidas contra este novo demónio só esturricam as pessoas. São absolutamente ineficazes na erradicação do mal. O nome da Coisa? Já o disse logo no início. Chama-se crise.

Em Portugal, o diabo da crise aumentou o défice; fez a economia estagnar; não deixa o PIB crescer; não deixa a vaca dar leite; nem o pescador pescar; nem o agricultor semear; nem a fábrica produzir; nem o porco engordar, nem o mineiro extrair; nem o inventor inventar; nem o pedreiro construir; nem o exportador exportar. A crise, porque é má como o diabo, só deixa o país definhar. Em suma – e concluindo: os trabalhadores estão possuídos, há que exorcizar a Coisa má.

E é aí que entra em acção o pelourinho do senhor feudal, a fogueira da Santa Inquisição, ou a PIDE do doutor Salazar, mas tudo versão moderna e democrática. Muito civilizada. Chama-se PEC.

Vai daí, reduzem-se, efectivamente, os salários e as reformas. Reduz-se nas prestações sociais. Aumenta-se o desemprego. Sobe-se os juros dos empréstimos. Precariza-se mais o trabalho. Fustiga-se com o chicote da austeridade a classe laboriosa, que é a que está possuída pelo diabo da crise. O exorcista Sócrates e o seu ajudante Teixeira não largam a garganta do Zé, até ele deitar cá para fora o diabo inteiro, na forma dos últimos cêntimos, pois o dinheiro é coisa demoníaca, que só leva as almas ao abismo.

No meio da confusão, ninguem se lembra de perguntar porque diabo – sim, porque só pode ser obra do diabo – as obras públicas derrapam até custarem três e quatro vezes mais do que o orçamentado? Porque diabo a corrupção não é atacada nem punida, e já se transformou num método aceite de enriquecimento ilícito? Porque existem ordenados dos diabos, isto é, de verdadeiros nababos, pagos com língua de palmo por todo a plebe?

Está bem, pronto. Amarrem-nos lá ao PEC e acendam a fogueira. Os malandros da fita somos sempre nós.


(João Carlos Pereira)


Crónica lida nas “Provocações” da Rádio Baía em 05/05/2010.
Não deixe de ouvir em 98.7 Mhz e participar pelos telefones 212277046 ou 212277047 todas as quartas-feiras entre as 09H00 e as 10H00.