...
Enviei um e-mail com uma anedota política a um amigo meu. E ele respondeu-me com isto: «O estado providência acabou, não existe, e andar com blá-blás de igualdade é um logro. Não nascemos iguais, excepto no respeito e dignidade. A partir daí, somos totalmente diferentes e temos de viver com isso». Respondi-lhe, primeiro, com uma espécie de fábula.
Esta:
«Todos os dias, uma formiga chegava cedinho ao escritório e atirava-se ao trabalho. A formiga era produtiva e feliz. O gerente besouro estranhou que a formiga trabalhasse sem supervisão. Se ela era produtiva sem supervisão, mais o seria se fosse supervisionada. E colocou uma barata, que preparava belíssimos relatórios e tinha muita experiência, como supervisora. A primeira preocupação da barata foi a de estabelecer o horário de entrada e saída da formiga. Em breve, a barata precisou de uma secretária para ajudar a preparar os relatórios. E contratou também uma aranha para organizar os arquivos e controlar as ligações telefónicas. O besouro ficou encantado com os relatórios da barata e pediu também gráficos com indicadores e análise das tendências, que eram mostradas em reuniões.
A barata, então, contratou uma mosca, e comprou um computador com impressora a cores. Em breve, a formiga, outrora produtiva e feliz, começou a lamentar-se de toda aquela movimentação de papéis e reuniões.
O besouro concluiu que era o momento de criar a função de gestor para a área onde a formiga trabalhava. O cargo foi dado a uma cigarra, que mandou colocar carpete no seu escritório e comprar uma cadeira especial. A nova gestora precisou logo de um computador e de uma assistente, a pulga (sua assistente na empresa anterior), para ajudá-la a preparar um plano estratégico de melhorias e um controle do orçamento para a área onde trabalhava a formiga, que a cada dia se sentia mais aborrecida. A cigarra, então, convenceu o gerente que era necessário fazer um estudo de clima. Mas o besouro, ao rever as cifras, deu-se conta de que a unidade na qual a formiga trabalhava já não rendia como antes, e contratou a coruja, uma prestigiada consultora, para que fizesse um diagnóstico da situação. A coruja ficou três meses no escritório e emitiu um volumoso relatório, com vários volumes, onde se concluía: Há muita gente nesta empresa! E adivinha quem o besouro mandou demitir? A formiga, claro, porque ela andava muito desmotivada e aborrecida».
Contada a fábula, continuei: Esta história da formiga responde um pouco aos teus argumentos. Mas sobre o teu ponto de vista, tenho ainda a explicar (e passe a presunção):
Não somos todos iguais, é um facto. Mas – vê lá tu! – geneticamente, somos quase iguais aos chimpanzés. Noventa e tal por cento coincidem. Isto é: nós, os ditos humanos, somos todos muito mais parecidos do que diferentes. As condições sociais, produzidas por uma sociedade que certos humanos desumanizaram, é que fizeram acentuar – ou «fabricaram» – as diferenças. Esclareço-te, contudo, que não concebo uma sociedade sem deveres e sem direitos. Todos – a partir de certa idade e até certa idade – têm o dever de trabalhar, providenciando, assim, o seu sustento e o desenvolvimento da sociedade onde se inserem.
Sei que nem todos podem ser cirurgiões, como nem todos podem ser mineiros, ou pescadores, sapateiros, futebolistas, pedreiros, calceteiros, estivadores, bancários, escritores, engenheiros (há um que diz que é...), cantoneiros, ou metalúrgicos, mas todos – e cada um no seu mister – fazem o que é preciso fazer. Todos devem ser, por igual, respeitados.
A sociedade, por sua vez, deve organizar-se de maneira a que todos os que trabalham (podendo trabalhar) beneficiem de condições elementares de existência. Chama-se a isso Direitos Humanos, e que são, entre outros: acesso a cuidados de saúde, à educação, à habitação, à cultura e ao laser e, claro, o direito ao Trabalho. E mais tarde, quando as forças faltarem, protecção na velhice. Penso que ninguém respeitável – e no seu perfeito juízo – diz que uma sociedade decente não deve providenciar a aplicação destes direitos.
Não sei se é correcto chamar a isso estado providência, nem se esse dito estado pode ser abolido apenas porque alguém entende que sim. Eu acho que é obrigação do Estado (seja em que plano for, mas, especialmente, no plano da pura sobrevivência) providenciar que todos os cidadãos possam ser seres humanos saudáveis e felizes, o que passa por evitar que as condições económicas e sociais asfixiam as potencialidades de largas faixas do tecido social. Não é só uma questão de justiça, de humanismo, de decência: é uma questão de inteligência. É evitar que se desperdicem talentos – ou, até, génios – que a qualidade do berço não deixa florir.
Não é certo – nem passa lá perto – conforme tu muito bem deves saber, que todos os homens de sucesso, em termos económicos e sociais, sejam os melhores seres humanos deste mundo: mais íntegros, mais inteligentes, mais úteis. Nem vale a pena dar-te exemplos, pois a nossa vida recente tem mostrado o que são, nos dias que correm, homens de sucesso.
Todos, enquanto seres humanos, somos iguais, até que o nosso comportamento (desumano, ou anti-social) diga que não. Por isso, todos devemos ser considerados iguais perante a lei e ter acesso a uma vida digna. Estar garantido que, respeitando as regras, a sociedade não nos exclua. Por outras palavras: o Estado tem a obrigação de dar a todos os cidadãos as mesmas oportunidades, para que cada um, de acordo com as suas capacidades e valor, possa beneficiar, de forma equitativa, da riqueza produzida. Ou não?
Penso que não discordas deste ponto de vista. A menos que já penses (o que não creio) como a nossa distinta classe empresarial – e a não menos distinta classe política – que chamam privilégios aos direitos humanos das classes laboriosas. O que significa que as populações da Somália e da Serra Leoa é que são tratadas como manda a lei.
Lá chegaremos, se não sacudirmos a canga.
(João Carlos Pereira)
Crónica lida nas “Provocações” da Rádio Baía em 26/05/2010.
Não deixe de ouvir em 98.7 Mhz e participar pelos telefones 212277046 ou 212277047 todas as quartas-feiras entre as 09H00 e as 10H00.
Enviei um e-mail com uma anedota política a um amigo meu. E ele respondeu-me com isto: «O estado providência acabou, não existe, e andar com blá-blás de igualdade é um logro. Não nascemos iguais, excepto no respeito e dignidade. A partir daí, somos totalmente diferentes e temos de viver com isso». Respondi-lhe, primeiro, com uma espécie de fábula.
Esta:
«Todos os dias, uma formiga chegava cedinho ao escritório e atirava-se ao trabalho. A formiga era produtiva e feliz. O gerente besouro estranhou que a formiga trabalhasse sem supervisão. Se ela era produtiva sem supervisão, mais o seria se fosse supervisionada. E colocou uma barata, que preparava belíssimos relatórios e tinha muita experiência, como supervisora. A primeira preocupação da barata foi a de estabelecer o horário de entrada e saída da formiga. Em breve, a barata precisou de uma secretária para ajudar a preparar os relatórios. E contratou também uma aranha para organizar os arquivos e controlar as ligações telefónicas. O besouro ficou encantado com os relatórios da barata e pediu também gráficos com indicadores e análise das tendências, que eram mostradas em reuniões.
A barata, então, contratou uma mosca, e comprou um computador com impressora a cores. Em breve, a formiga, outrora produtiva e feliz, começou a lamentar-se de toda aquela movimentação de papéis e reuniões.
O besouro concluiu que era o momento de criar a função de gestor para a área onde a formiga trabalhava. O cargo foi dado a uma cigarra, que mandou colocar carpete no seu escritório e comprar uma cadeira especial. A nova gestora precisou logo de um computador e de uma assistente, a pulga (sua assistente na empresa anterior), para ajudá-la a preparar um plano estratégico de melhorias e um controle do orçamento para a área onde trabalhava a formiga, que a cada dia se sentia mais aborrecida. A cigarra, então, convenceu o gerente que era necessário fazer um estudo de clima. Mas o besouro, ao rever as cifras, deu-se conta de que a unidade na qual a formiga trabalhava já não rendia como antes, e contratou a coruja, uma prestigiada consultora, para que fizesse um diagnóstico da situação. A coruja ficou três meses no escritório e emitiu um volumoso relatório, com vários volumes, onde se concluía: Há muita gente nesta empresa! E adivinha quem o besouro mandou demitir? A formiga, claro, porque ela andava muito desmotivada e aborrecida».
Contada a fábula, continuei: Esta história da formiga responde um pouco aos teus argumentos. Mas sobre o teu ponto de vista, tenho ainda a explicar (e passe a presunção):
Não somos todos iguais, é um facto. Mas – vê lá tu! – geneticamente, somos quase iguais aos chimpanzés. Noventa e tal por cento coincidem. Isto é: nós, os ditos humanos, somos todos muito mais parecidos do que diferentes. As condições sociais, produzidas por uma sociedade que certos humanos desumanizaram, é que fizeram acentuar – ou «fabricaram» – as diferenças. Esclareço-te, contudo, que não concebo uma sociedade sem deveres e sem direitos. Todos – a partir de certa idade e até certa idade – têm o dever de trabalhar, providenciando, assim, o seu sustento e o desenvolvimento da sociedade onde se inserem.
Sei que nem todos podem ser cirurgiões, como nem todos podem ser mineiros, ou pescadores, sapateiros, futebolistas, pedreiros, calceteiros, estivadores, bancários, escritores, engenheiros (há um que diz que é...), cantoneiros, ou metalúrgicos, mas todos – e cada um no seu mister – fazem o que é preciso fazer. Todos devem ser, por igual, respeitados.
A sociedade, por sua vez, deve organizar-se de maneira a que todos os que trabalham (podendo trabalhar) beneficiem de condições elementares de existência. Chama-se a isso Direitos Humanos, e que são, entre outros: acesso a cuidados de saúde, à educação, à habitação, à cultura e ao laser e, claro, o direito ao Trabalho. E mais tarde, quando as forças faltarem, protecção na velhice. Penso que ninguém respeitável – e no seu perfeito juízo – diz que uma sociedade decente não deve providenciar a aplicação destes direitos.
Não sei se é correcto chamar a isso estado providência, nem se esse dito estado pode ser abolido apenas porque alguém entende que sim. Eu acho que é obrigação do Estado (seja em que plano for, mas, especialmente, no plano da pura sobrevivência) providenciar que todos os cidadãos possam ser seres humanos saudáveis e felizes, o que passa por evitar que as condições económicas e sociais asfixiam as potencialidades de largas faixas do tecido social. Não é só uma questão de justiça, de humanismo, de decência: é uma questão de inteligência. É evitar que se desperdicem talentos – ou, até, génios – que a qualidade do berço não deixa florir.
Não é certo – nem passa lá perto – conforme tu muito bem deves saber, que todos os homens de sucesso, em termos económicos e sociais, sejam os melhores seres humanos deste mundo: mais íntegros, mais inteligentes, mais úteis. Nem vale a pena dar-te exemplos, pois a nossa vida recente tem mostrado o que são, nos dias que correm, homens de sucesso.
Todos, enquanto seres humanos, somos iguais, até que o nosso comportamento (desumano, ou anti-social) diga que não. Por isso, todos devemos ser considerados iguais perante a lei e ter acesso a uma vida digna. Estar garantido que, respeitando as regras, a sociedade não nos exclua. Por outras palavras: o Estado tem a obrigação de dar a todos os cidadãos as mesmas oportunidades, para que cada um, de acordo com as suas capacidades e valor, possa beneficiar, de forma equitativa, da riqueza produzida. Ou não?
Penso que não discordas deste ponto de vista. A menos que já penses (o que não creio) como a nossa distinta classe empresarial – e a não menos distinta classe política – que chamam privilégios aos direitos humanos das classes laboriosas. O que significa que as populações da Somália e da Serra Leoa é que são tratadas como manda a lei.
Lá chegaremos, se não sacudirmos a canga.
(João Carlos Pereira)
Crónica lida nas “Provocações” da Rádio Baía em 26/05/2010.
Não deixe de ouvir em 98.7 Mhz e participar pelos telefones 212277046 ou 212277047 todas as quartas-feiras entre as 09H00 e as 10H00.