terça-feira, 11 de maio de 2010

O DIABO DA CRISE

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A crise é o demónio dos tempos modernos. O demónio, pelo menos aquele demónio que a mitologia católica tanto promoveu, teve os seus tempos áureos na Idade Média. Nessa altura, servia para explicar tudo o que de mau acontecia às pessoas. Serviu, principalmente, para manter a plebe na linha. Se a vida corria mal a alguém, era porque tinha o diabo no corpo. E o pior que o diabo podia fazer a uma pessoa era pô-la a pensar alto. Servo que reclamasse das diatribes dos senhores feudais, estava possuído pelo demónio. Estava feito ao bife, como se viria a dizer séculos mais tarde, particularmente em Portugal, quando alguém era ouvido, pelos ouvidos errados, a mandar vir contra o governo.

Para eliminar o diabo, na época medieval, era costume atirar para a fogueira os desgraçados que, descuidadamente, se tinham deixado invadir por esse maléfico ser. Foi criada uma caridosa instituição, chamada Santa Inquisição, que lançou para a fogueira milhares de pessoas. Não consta que o demónio, diabo, belzebu ou satanás – só para usar os nomes mais vulgares – tenha sido assim exterminado, o que põe em causa a bondade do método, mas quando se deu por isso já centenas de milhares de pessoas tinha passado, piedosa e muito catolicamente, a cinzas

Já em tempos mais recentes, para eliminar o diabo que entrava no corpo das pessoas, sob a forma de espírito subversivo ou contestatário, ou, simplesmente, sob a forma de querer ser-se uma pessoa de corpo inteiro, foi descoberto outro método igualmente caridoso: a prisão, frequentemente completada com a tortura e, não poucas vezes, com a morte. Houve algumas instituições que ficaram famosas no tratamento desses espíritos demoníacos, como a afamada Gestapo, de Hitler, a PIDE, de Salazar, ou a DINA, de Pinochet. Entre muitas outras benévolas instituições do género.

Com o passar dos anos – e com a abertura das mentes e os avanços tecnológicos – o diabo, coitado, caiu em desuso. Já é mais uma figura do anedotário da civilização ocidental, um ente que ninguém leva a sério. Não infunde respeito nem medo. Enfim, reformou-se; passou à história.

Mas como é preciso sempre alguma coisa que apavore as massas e as mantenha eternamente disponíveis para pagar as favas, os novos – actuais – senhores feudais inventaram algo mais subtil e eficaz. Um sucedâneo do demónio, mas definitivamente democrático e moderno. Mais soft, como agora se diz. Mas exactamente como o velho diabo, ninguém vê a Coisa, ninguém sabe como e quando aparece – até dou por mim a pensar que está sempre por aí, atrás da porta – ninguém sabe como nasceu, ninguém sabe, realmente, como esconjurá-la, pois, tal como as fogueiras da Inquisição só queimavam as criaturas, as medidas contra este novo demónio só esturricam as pessoas. São absolutamente ineficazes na erradicação do mal. O nome da Coisa? Já o disse logo no início. Chama-se crise.

Em Portugal, o diabo da crise aumentou o défice; fez a economia estagnar; não deixa o PIB crescer; não deixa a vaca dar leite; nem o pescador pescar; nem o agricultor semear; nem a fábrica produzir; nem o porco engordar, nem o mineiro extrair; nem o inventor inventar; nem o pedreiro construir; nem o exportador exportar. A crise, porque é má como o diabo, só deixa o país definhar. Em suma – e concluindo: os trabalhadores estão possuídos, há que exorcizar a Coisa má.

E é aí que entra em acção o pelourinho do senhor feudal, a fogueira da Santa Inquisição, ou a PIDE do doutor Salazar, mas tudo versão moderna e democrática. Muito civilizada. Chama-se PEC.

Vai daí, reduzem-se, efectivamente, os salários e as reformas. Reduz-se nas prestações sociais. Aumenta-se o desemprego. Sobe-se os juros dos empréstimos. Precariza-se mais o trabalho. Fustiga-se com o chicote da austeridade a classe laboriosa, que é a que está possuída pelo diabo da crise. O exorcista Sócrates e o seu ajudante Teixeira não largam a garganta do Zé, até ele deitar cá para fora o diabo inteiro, na forma dos últimos cêntimos, pois o dinheiro é coisa demoníaca, que só leva as almas ao abismo.

No meio da confusão, ninguem se lembra de perguntar porque diabo – sim, porque só pode ser obra do diabo – as obras públicas derrapam até custarem três e quatro vezes mais do que o orçamentado? Porque diabo a corrupção não é atacada nem punida, e já se transformou num método aceite de enriquecimento ilícito? Porque existem ordenados dos diabos, isto é, de verdadeiros nababos, pagos com língua de palmo por todo a plebe?

Está bem, pronto. Amarrem-nos lá ao PEC e acendam a fogueira. Os malandros da fita somos sempre nós.


(João Carlos Pereira)


Crónica lida nas “Provocações” da Rádio Baía em 05/05/2010.
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