quarta-feira, 26 de outubro de 2011

OS LOBOS

Anda por aí muita gente irritada. Nervosa. Muita gente que se recusa a aceitar a realidade. Muita gente que quer continuar a acreditar que vivemos no melhor dos mundos, entregues às melhores das pessoas (que são as pessoas em quem votamos), mas que sente que, todos os dias, a vida lhes mostra que estão enganadas.

É triste vermos ruir aquilo em que acreditamos? Rejeite-se a realidade.

É doloroso sermos vítimas das políticas que pensávamos que magoariam só os outros? Disfarcemo-nos de patriotas e digamos que estamos dispostos a isto e a muito mais.

Assusta a ideia que o pior ainda está para vir? Aponte-se o dedo a tudo e a todos mas – muita atenção! – Jamais àqueles em quem sempre acreditámos.

Não temos respostas sérias para explicar o que está a acontecer? Ou temos, mas se as dermos estaremos a aceitar o que sempre rejeitámos? Recusemo-nos a responder a isso. Chutemos para fora e assobiemos para o lado.

A verdade é que os lobos entraram no povoado e não assaltam só os galinheiros e os casebres dos pobres. Entraram nos quintais das traseiras, e nos primeiros andares dos prédios. E alguns rondam já os muros de algumas moradias. O regedor, que nada mais é que um lobo com pele de carneiro, aconselha o povo a fechar-se em casa e a deixar comida à porta. Pode ser que assim a alcateia se apazigúe. Mas a alcateia tomou-lhe o gosto, já percebeu que basta uivar e mostrar os dentes. A alcateia está nas suas sete quintas. O povo, tolhido, vai pondo à porta tudo o que tem.

– E quando não tivermos mais?
– Faremos como os nossos ancestrais: sacrificaremos uns dos nossos, para lhes saciarmos a voracidade.
– E se te calhar a ti?
– Não hei-de ter um azar desses.
– Também dizias que os lobos nunca viriam cercar-nos a moradia. Que se contentavam com as galinhas dos outros…
– Olha. Seja o que deus quiser. Mas o regedor vai dar a volta a isto.
– E se matássemos os lobos?
– Credo! Sou contra a violência.
– Mas eles são violentos. Era legítima defesa.
– Se isto continuar assim, votamos noutro regedor.
– No irmão, aquele que esteve lá antes deste?
– Isso.

Nota – Peço desculpa aos lobos verdadeiros se acaso se sentirem ofendidos com as comparações aqui feitas. Teriam todas as razões para isso, já que são animais absolutamente respeitáveis.



(João Carlos Pereira)


Crónica lida nas “Provocações” da Rádio Baía em 26/10/2011.

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

A DEMOCRACIA TEM DESTAS COISAS

A vitória de Alberto João deixou espantada muito boa gente que, candidamente, pergunta como é possível um tipo daqueles continuar a merecer a confiança dos eleitores. Espantado fico eu com o espanto dessas pessoas, dado que grande parte delas votou três vezes em Sócrates, várias em Soares e Cavaco e, para culminar, entregou a cruz ao senhor dos Passos, coisas bem mais incompreensíveis, mas está bem, o que é que se há-de fazer, o povo tem destas coisas. E a democracia também.

Por esta altura, o presidente da república aprovou a diminuição das indemnizações por despedimento sem justa causa, primeiro passo para acabar com isso logo que possível. A este propósito, Carvalho da Silva, secretário-geral da CGTP, recordou que os senhores que defendem o fim das indemnizações devidas por despedimento, são os mesmos que, ao serem admitidos para os quadros superiores das grandes empresas públicas ou privadas, exigem grossas indemnizações ou compensações por rescisão do contrato, reformas integrais e rechonchudas ao fim de uns mesitos, embora também defendam, para os trabalhadores comuns, o aumento da idade da reforma e fórmulas de cálculo que as minguam e reduzem à sua expressão mais simples. Mas está bem, o que é que se há-de fazer, a democracia tem destas coisas.

No tempo do fascismo, abriam-se centros de saúde (chamavam-lhes Postos da Caixa) e escolas, quem descontava tinha a reforma garantida e havia a Sopa dos Pobres (ou do Sidónio). Agora, fecham-se centros de saúde e escolas, todos os dias nos dizem que as reformas podem não estar asseguradas, mas a Sopa dos Pobres mantém-se, embora com rótulos muito mais bonitos, pois a fome democrática não é nada que se compare à fome fascista. Enfim, vai sendo altura de percebermos que esta coisa dos rótulos tem muita importância. No fascismo, o desemprego, a fome e a guerra eram resultado de uma política desumana e opressiva. Em democracia, o desemprego, a fome e a guerra são coisas perfeitamente normais – e seguramente positivas – pois só assim se compreende que todos os dias o desemprego aumente, a fome também, e até as guerras, porque não temos nenhuma nossa, gastamos balúrdios a combater as guerras dos outros. Mas está bem, o que é que se há-de fazer, a democracia tem destas coisas.

No tempo do fascismo – do obscurantismo – a televisão transmitia, no horário nobre, programas culturais com João Villaret (poesia e teatro), João de Freitas Branco (música a sério), Vitorino Nemésio (literatura), Raul Machado (língua portuguesa), António Pedro (teatro), David Mourão-Ferreira (literatura) e, para não me alongar, teatro em directo, todas as quartas-feiras. Hoje a TV mostra-nos o José Castelo Branco, o Cláudio Ramos, uns gordos em supostas curas de emagrecimentos, uns imbecis a regurgitar bacoradas numa casa fechada e, para que nada falhe num quadro da mais absoluta estupidez, resmas de telenovelas estupidificantes. Mas está bem, o que é que se há-de fazer, a democracia tem destas coisas…



(João Carlos Pereira)


Crónica lida nas “Provocações” da Rádio Baía em 19/10/2011.


quarta-feira, 12 de outubro de 2011

ORA AGORA ROUBAS TU…

Leio a notícia num jornal diário, o Correio da Manhã: «Pina Moura, Armando Vara e Dias Loureiro. Todos eles foram ministros, todos eles tinham salários modestos antes de chegarem ao Governo e todos eles acabaram por fazer carreira no mundo empresarial, aumentando o rendimento anual para valores acima dos cinco dígitos». Estes são apenas três exemplos do que é a democracia em curso. Podíamos falar de Ferreira do Amaral, que foi o ministro dos negócios da Ponte Vasco da Gama, e que agora é administrador – adivinhem lá – isso, precisamente da Lusoponte. Podíamos falar de Mira Amaral, que foi ministro da Economia, e que hoje está bem encostado à fortuna da família dos Santos, e que recebeu, de bandeja, o BPN. Podíamos falar do Jorge Coelho, que foi ministro das Obras Públicas, e que hoje tem cadeirão numa das maiores empresas de – adivinhem lá – isso, precisamente de obras públicas, a Mota-Engil.

Já estou a ouvir os gritos indignados de algumas pessoas que eu conheço, todas encrespadas a debitar desculpas e justificações para estas cascatas de ouro, na parte que toca aos nomes ligados aos seu partido (quanto aos nomes do outro partido, batem palmas), e argumentando velhacamente, e em desespero de causa, que isto é resultado do 25 de Abril.

Encho-me de pachorra e lá vou tentando explicar-lhes que não, não é nada disso, este tipo de amanhanços não tem nada a ver com o 25 de Abril, mas com o assalto que os filhos e netos do fascismo – quer a nível político, quer a nível financeiro e económico – fizeram ao aparelho do Estado, nele se entrincheirando bem armados e equipados. Herdeiros que, diga-se a verdade, são mais glutões e descarados do que os seus pais e avós, que tinham algumas maneiras à mesa e um pouco de vergonha na cara.

Vejam bem que uma dessas criaturas dizia-me, há dias, que os escândalos verificados nas empresas públicas de transportes, com a distribuição de benesses aos senhores administradores, era culpa do 25 de Abril, que as nacionalizou, e não de terem sido administradas por gente nomeada, à vez, por governos do PS e PSD (ora agora roubas tu, ora agora roubo eu), numa clara afronta aos valores do 25 de Abril, já para não dizer, aos valores republicanos e democráticos. Para aquela cabecinha, os “boys” e “girls” que administram, por escolha do PS e do PSD, a CP, a TAP, o Metro, a Transtejo ou a Soflusa nem queriam carros de luxo, ordenados opíparos, cartões de crédito bem recheados, telemóveis de “plafond” ilimitado, reforma cedo e choruda, etc, etc, mas foi o 25 de Abril que lhes disse: Façam favor de aceitar, caso contrário vai tudo preso.

Com gatunos destes – e com eleitores destes – alguém acredita que este país – esta enxovia – algum dia terá cura?


(João Carlos Pereira)



Crónica lida nas “Provocações” da Rádio Baía em 12/10/2011.

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

CRISE – O PAPÃO DO SÉCULO XXI



Os senhores da alta finança e os políticos às suas ordens criaram a Crise. Há quem diga que foi por mera incompetência e excessiva ganância. Eu creio que a Crise é apenas um cenário muito bem elaborado que serve de pretexto para sorverem aos trabalhadores o máximo que puderem – e enquanto puderem. Nenhum grande banqueiro ficou mais pobre, nenhum político perdeu mordomias nem foi devidamente responsabilizado – política e criminalmente – pelas consequências das suas políticas – ou seja, pelas malfeitorias praticadas. Quem não tem a mínima responsabilidade na Crise – caso a Crise fosse uma coisa real e não o utilíssimo papão que é – são os trabalhadores. Todos eles estão inocentes. Limpos. Puros. Mas é a eles que a alta finança, através dos seus governos, apresenta a factura.

Apavorado, inconsciente, abúlico, ignorante, desorientado, estúpido e cobarde, e incapaz de perceber o esquema sinistro de que está a ser vítima, o povo vai obedecendo, bovinamente, à vontade dos seus algozes, suportando o aguilhão como se de uma merecida fatalidade se tratasse.

Perfeitamente consciente da mansidão da manada, o governo do PSD quer que ela trabalhe cada vez mais, por cada vez menos dinheiro, a qualquer hora do dia, a qualquer dia da semana e sempre com a sombra do despedimento a pesar-lhes no cachaço. Cada trabalhador nada mais é, face à prepotência reinante, que um mero parafuso ao dispor do dono da empresa. A entidade patronal passou a ser dona e senhora das vidas dos seus empregados. Diligentes, os «democratas» de serviço aos donos do mundo – e à sua concepção de estrutura política, social e económica da sociedade – estão a conduzir este infame retrocesso civilizacional com enorme competência, de tal modo que até eu continuo a utilizar o termo «trabalhadores», em vez de, mais apropriadamente, usar «servos» ou «escravos de novo tipo».

Qual é a solução? Só vejo uma: agarrarmos pelos colarinhos todos os políticos que, de Mário Soares para cá, tiveram responsabilidades governativas, e todos os que, na Assembleia da República e na Presidência da República os apoiaram – ou, por omissão, permitiram os seus desmandos. Ao mesmo tempo, tomarmos conta dos sectores chaves da economia.

Por outras palavras: Se não lhes dermos cabo da vida, serão eles – como estão a ser – a dar cabo da nossa.

De pé, ó vítimas da fome!

Ou se preferirem: Aux armes, citoyens!



(João Carlos Pereira)

Crónica lida nas “Provocações” da Rádio Baía em 05/10/2011.