quarta-feira, 19 de outubro de 2011

A DEMOCRACIA TEM DESTAS COISAS

A vitória de Alberto João deixou espantada muito boa gente que, candidamente, pergunta como é possível um tipo daqueles continuar a merecer a confiança dos eleitores. Espantado fico eu com o espanto dessas pessoas, dado que grande parte delas votou três vezes em Sócrates, várias em Soares e Cavaco e, para culminar, entregou a cruz ao senhor dos Passos, coisas bem mais incompreensíveis, mas está bem, o que é que se há-de fazer, o povo tem destas coisas. E a democracia também.

Por esta altura, o presidente da república aprovou a diminuição das indemnizações por despedimento sem justa causa, primeiro passo para acabar com isso logo que possível. A este propósito, Carvalho da Silva, secretário-geral da CGTP, recordou que os senhores que defendem o fim das indemnizações devidas por despedimento, são os mesmos que, ao serem admitidos para os quadros superiores das grandes empresas públicas ou privadas, exigem grossas indemnizações ou compensações por rescisão do contrato, reformas integrais e rechonchudas ao fim de uns mesitos, embora também defendam, para os trabalhadores comuns, o aumento da idade da reforma e fórmulas de cálculo que as minguam e reduzem à sua expressão mais simples. Mas está bem, o que é que se há-de fazer, a democracia tem destas coisas.

No tempo do fascismo, abriam-se centros de saúde (chamavam-lhes Postos da Caixa) e escolas, quem descontava tinha a reforma garantida e havia a Sopa dos Pobres (ou do Sidónio). Agora, fecham-se centros de saúde e escolas, todos os dias nos dizem que as reformas podem não estar asseguradas, mas a Sopa dos Pobres mantém-se, embora com rótulos muito mais bonitos, pois a fome democrática não é nada que se compare à fome fascista. Enfim, vai sendo altura de percebermos que esta coisa dos rótulos tem muita importância. No fascismo, o desemprego, a fome e a guerra eram resultado de uma política desumana e opressiva. Em democracia, o desemprego, a fome e a guerra são coisas perfeitamente normais – e seguramente positivas – pois só assim se compreende que todos os dias o desemprego aumente, a fome também, e até as guerras, porque não temos nenhuma nossa, gastamos balúrdios a combater as guerras dos outros. Mas está bem, o que é que se há-de fazer, a democracia tem destas coisas.

No tempo do fascismo – do obscurantismo – a televisão transmitia, no horário nobre, programas culturais com João Villaret (poesia e teatro), João de Freitas Branco (música a sério), Vitorino Nemésio (literatura), Raul Machado (língua portuguesa), António Pedro (teatro), David Mourão-Ferreira (literatura) e, para não me alongar, teatro em directo, todas as quartas-feiras. Hoje a TV mostra-nos o José Castelo Branco, o Cláudio Ramos, uns gordos em supostas curas de emagrecimentos, uns imbecis a regurgitar bacoradas numa casa fechada e, para que nada falhe num quadro da mais absoluta estupidez, resmas de telenovelas estupidificantes. Mas está bem, o que é que se há-de fazer, a democracia tem destas coisas…



(João Carlos Pereira)


Crónica lida nas “Provocações” da Rádio Baía em 19/10/2011.


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