quarta-feira, 22 de agosto de 2012

O PAGADOR DE FAVAS


Milhões de pessoas fazem o que sempre fizeram, cumprem o que lhes dizem para cumprir, sujeitam-se ao que são obrigadas a sujeitar-se e, como resultado, vêem a vida esvair-se numa espiral de mentiras sórdidas e desumanidade pura. Só têm uma função: pagar as favas.

Há dias, para subscrever um contrato de fornecimento de serviços audiovisuais, perguntaram-me a minha profissão. Pagador de favas, respondi eu. A jovem olhou para mim, estupefacta. Desculpe… mas disse pagador de quê? Pagador de favas, repeti. Não conheço essa profissão, confessou ela, perplexa. Sorri-lhe. Olhe, então não conhece a sua profissão. Meu caro senhor, peço-lhe que me perdoe, mas eu não sou isso... Pagadora de favas, não foi o que disse? Disse e repito. Eu sou pagador de favas, você é pagadora de favas e cerca de nove milhões de portugueses são pagadores de favas. Ela começara a perceber. E sorriu um sorriso triste, incomodado.

Estávamos sentados num café, onde éramos os únicos clientes, com duas bicas entre nós. Estiquei o braço para a mesa do lado e agarrei no Correio da Manhã, que folheara antes de ela chegar. Oiça o que escreve aqui um senhor chamado Manuel Catarino:
«Os números não mentem – e aí estão as cifras negras da miséria: o desemprego, que não pára de subir, já vai nos 15 por cento; entre os que não têm trabalho, pelo menos 93 mil já desistiram de lutar; e a riqueza nacional caiu no segundo trimestre 3,3 por cento (pior só a Grécia). Os sacrifícios que o Governo impôs à nação só trouxeram mais pobreza e mais desânimo. O nosso maior problema não é tanto a crise, mas a ausência de soluções – e, principalmente, a falta de líderes. Olhamos em frente, para a direita, para a esquerda – e o que vemos? Uma classe política mal preparada e sem ideias – um numeroso rancho de carreiristas incapaz de nos devolver a esperança».

Olhei para ela, muito sério. Encolheu os ombros, assim como quem diz: o que é que eu posso fazer? Perguntei-lhe: você acha-se culpada pelo estado a que o país chegou? Que não. E os seus pais, a sua família? Coitados, respondeu ela. O meu pai é engenheiro, ultimamente foi director de obra em diversas empreitadas, mas está desempregado há quase um ano. Não há trabalho, está tudo parado, não arranja nada. A minha mãe e eu é que vamos aguentando a casa. Ela trabalha num infantário. Tenho um irmão que está a acabar o 12.º ano. Voltou a encolher os ombros, resignada.

Eu também não sou culpado de nada, disse-lhe. Trabalhei desde os dezanove anos, sempre me descontaram o que era para descontar, sempre paguei os meus impostos – que remédio – estive, quatro anos ao serviço da pátria, dois dos quais numa parcela do império, ao todo trabalhei mais de quarenta e cinco anos, os últimos três e meio num call-center a tentar enganar o meu semelhante. E sabe que mais? Acho que eu, você e a sua família somos iguais, ou muito parecidos, a milhões de portugueses. Trabalhamos no que se consegue arranjar, cumprimos as nossas obrigações, mas depois vêm cobrar-nos o preço de uma crise que não fizemos. Pagamos as favas. Já sabe, agora, qual é a minha e a sua profissão? E a dos seus pais?

Mais uma vez aquela jovem que, de esferográfica na mão, esperava que eu me deixasse de conversas e assinasse o contrato que lhe ia render uns parcos euros, encolheu os ombros.

Ponha aí: reformado, mas não domado. Ela sorriu. Depois, pedi-lhe os papéis e a esferográfica e fiz as assinaturas necessárias. Olhei-a com simpatia e pena. Com tanta coisa para produzir neste país, e aqui estava ela – e milhares como ela, por aí a subir escadas e a tocar às campainhas – a tentar vender tralha a pessoas que, em muitos casos, nem para medicamentos têm dinheiro.

- Gosta do que faz? – perguntei-lhe.
- É o que se arranja – respondeu-me, com novo encolher de ombros.
- Dá para a bucha?
- É melhor do que nada.
- Já sabe o que é um pagador de favas?
- Fiquei com uma ideia – disse-me, com um sorriso sincero.
- Sabe quando é que acabam os pagadores de favas?
- Não faço ideia.
- Quando acabarem os encolhedores de ombros.

Ficou a olhar-me, muito séria. Depois, arrumou os papéis, guardou a esferográfica, agradeceu e saiu.


(João Carlos Pereira)

Crónica lida nas “Provocações” da Rádio Baía em 22/08/2012.

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