Milhões de
pessoas fazem o que sempre fizeram, cumprem o que lhes dizem para cumprir,
sujeitam-se ao que são obrigadas a sujeitar-se e, como resultado, vêem a vida
esvair-se numa espiral de mentiras sórdidas e desumanidade pura. Só têm uma
função: pagar as favas.
Há dias, para subscrever um contrato de fornecimento de
serviços audiovisuais, perguntaram-me a minha profissão. Pagador de favas,
respondi eu. A jovem olhou para mim, estupefacta. Desculpe… mas disse pagador
de quê? Pagador de favas, repeti. Não conheço essa profissão, confessou ela,
perplexa. Sorri-lhe. Olhe, então não conhece a sua profissão. Meu caro senhor,
peço-lhe que me perdoe, mas eu não sou isso... Pagadora de favas, não foi o que
disse? Disse e repito. Eu sou pagador de favas, você é pagadora de favas e
cerca de nove milhões de portugueses são pagadores de favas. Ela começara a
perceber. E sorriu um sorriso triste, incomodado.
Estávamos sentados num café, onde éramos os únicos
clientes, com duas bicas entre nós. Estiquei o braço para a mesa do lado e
agarrei no Correio da Manhã,
que folheara antes de ela chegar. Oiça o que escreve aqui um senhor chamado
Manuel Catarino:
«Os números não mentem – e aí estão as cifras negras da
miséria: o desemprego, que não pára de subir, já vai nos 15 por cento; entre os
que não têm trabalho, pelo menos 93 mil já desistiram de lutar; e a riqueza
nacional caiu no segundo trimestre 3,3 por cento (pior só a Grécia). Os
sacrifícios que o Governo impôs à nação só trouxeram mais pobreza e mais
desânimo. O nosso maior problema não é tanto a crise, mas a ausência de
soluções – e, principalmente, a falta de líderes. Olhamos em frente, para a
direita, para a esquerda – e o que vemos? Uma classe política mal preparada e
sem ideias – um numeroso rancho de carreiristas incapaz de nos devolver a
esperança».
Olhei para ela, muito sério. Encolheu os ombros, assim
como quem diz: o que é que eu posso fazer? Perguntei-lhe: você acha-se culpada
pelo estado a que o país chegou? Que não. E os seus pais, a sua família?
Coitados, respondeu ela. O meu pai é engenheiro, ultimamente foi director de
obra em diversas empreitadas, mas está desempregado há quase um ano. Não há
trabalho, está tudo parado, não arranja nada. A minha mãe e eu é que vamos
aguentando a casa. Ela trabalha num infantário. Tenho um irmão que está a
acabar o 12.º ano. Voltou a encolher os ombros, resignada.
Eu também não sou culpado de nada, disse-lhe. Trabalhei
desde os dezanove anos, sempre me descontaram o que era para descontar, sempre
paguei os meus impostos – que remédio – estive, quatro anos ao serviço da
pátria, dois dos quais numa parcela do império, ao todo trabalhei mais de
quarenta e cinco anos, os últimos três e meio num call-center a tentar enganar o meu semelhante. E
sabe que mais? Acho que eu, você e a sua família somos iguais, ou muito
parecidos, a milhões de portugueses. Trabalhamos no que se consegue arranjar,
cumprimos as nossas obrigações, mas depois vêm cobrar-nos o preço de uma crise
que não fizemos. Pagamos as favas. Já sabe, agora, qual é a minha e a sua
profissão? E a dos seus pais?
Mais uma vez aquela jovem que, de esferográfica na mão,
esperava que eu me deixasse de conversas e assinasse o contrato que lhe ia
render uns parcos euros, encolheu os ombros.
Ponha aí: reformado, mas não domado. Ela sorriu. Depois,
pedi-lhe os papéis e a esferográfica e fiz as assinaturas necessárias. Olhei-a
com simpatia e pena. Com tanta coisa para produzir neste país, e aqui estava
ela – e milhares como ela, por aí a subir escadas e a tocar às campainhas – a
tentar vender tralha a pessoas que, em muitos casos, nem para medicamentos têm
dinheiro.
- Gosta do que faz? – perguntei-lhe.
- É o que se arranja – respondeu-me, com novo encolher de
ombros.
- Dá para a bucha?
- É melhor do que nada.
- Já sabe o que é um pagador de favas?
- Fiquei com uma ideia – disse-me, com um sorriso sincero.
- Sabe quando é que acabam os pagadores de favas?
- Não faço ideia.
- Quando acabarem os encolhedores de ombros.
Ficou a olhar-me, muito séria. Depois, arrumou os papéis,
guardou a esferográfica, agradeceu e saiu.
(João Carlos Pereira)
Crónica lida nas “Provocações” da Rádio
Baía em 22/08/2012.
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