quarta-feira, 17 de junho de 2009

ABSTENÇÃO, VOTOS BRANCOS E VOTOS ESTÚPIDOS


A primeira das três eleições que os portugueses vão enfrentar este ano, foi aquilo que se esperava – que eu esperava. O PS foi muito bem castigado, a abstenção foi enorme e os votos brancos, tal como os nulos, duplicaram. Se mais não houvesse – e houve – tanto me bastaria para sorrir.

Antes, almas generosas, de Cavaco Silva a todos os líderes partidários, comentadores, analistas e toda uma paleta de figuras que vivem da política, onde se destacam anafados chupistas da democracia em curso, apelaram ao voto e à participação cívica, não se cansando de referir que o voto é a arma do povo. Que só pelo voto é que isto vai lá. Que, se não votarmos, não nos podemos, depois, queixar. Que frito e que cozido. Realmente, não percebo a teoria, tanto mais que se vota há 34 anos e isto não só não vai lá, como está cada vez mais longe. E cheira cada vez pior.

A maioria da rapaziada, é claro, fez-lhes um real – mas democrático – manguito. Em primeiro lugar, dos 9.679.250 eleitores inscritos, 6.118.131 (isto é: mais de 63%) resolveram não aparecer. Dos que apareceram, 164.915 decidiram votar em branco. E os votos nulos, apesar de se poder considerar que muitos deles resultam de erros e confusões dos eleitores, também passaram para o dobro do que é costume, atingindo os 71.158.

Como referi há oito dias, não considero que a abstenção e o voto em branco sejam tragédias ou resultem de falta de espírito cívico ou consciência democrática. É curioso notar que as forças de direita não gostam de votos à esquerda, tal como a esquerda considera que os votos na direita são votos perigosos, mas que todos estão de acordo quanto aos perigos que o sistema democrático corre perante uma abstenção fortíssima e a mensagem ensurdecedora traduzida por mais de 150 mil votos em branco.

Até parece – e talvez seja verdade – que temem mais a abstenção e os votos em branco do que os votos nas forças adversárias. Será apenas amor à democracia? Ou será porque lêem, na abstenção e nos votos em branco, esta mensagem claríssima: nenhum de vocês me diz nada, portanto nenhum de vocês merece o meu voto. Esta mensagem de repúdio, por ser seguramente mais livre e independente que o voto expresso numa qualquer força política, tem o peso esmagador de uma opção conscientemente assumida, de um voto de censura muitíssimo eloquente.

Pode afirmar-se, por outro lado, que estas eleições – as Europeias – dizem pouco aos europeus, naturalmente condicionados por uma visão nacionalista – ou regional – da política. É verdade. Mas não se diz o resto: que elas são eleições para um órgão distante, pouco mais do que virtual, num quadro político onde tudo está antecipadamente definido pelas grandes potências europeias. E, dizendo isto, quero dizer que a União Europeia, tal como existe, mais não é do que um instrumento jurídico e administrativo dos grandes interesses económicos, cuja principal função é impor a todo o rebanho – leia-se: a todos os europeus – as regras da sacrossanta economia de mercado. Nenhum carneirinho poderá balir fora do redil.

É neste quadro de uniformização legislativa (definindo limites políticos, económicos e sociais), que retira aos povos a sua independência e, cinicamente, desresponsabiliza os governantes nacionais das malfeitorias que advierem, que se tenta criar uma super constituição europeia e – vejam lá se se lembram – que Sócrates recusou submeter à apreciação dos portugueses, porque, dizia ele e os papagaios a seu mando, se tratava de um texto muito complexo e que poderia não ser entendido pelo eleitorado. Pois é. Mas para votar agora para esse tal parlamento Europeu, a carneirada já estava esclarecida e, portanto, capaz de optar. Viu-se. Talvez não tenha sido a melhor resposta, mas foi uma resposta respeitável – e compreensível.

Por outro lado, estou mais do que convencido que dos cerca de 3 milhões e 500 mil eleitores que foram às urnas, nenhum votou a pensar em propostas políticas ao nível europeu. Todos – ou quase todos, vá lá – os que votaram nas forças concorrentes o fizeram por fidelidade ou simpatia partidária, em defesa da sua dama, por mera militância. A Europa, coitada, foi coisa de que ninguém se lembrou. Nem, claro está, esta vinha para o caso. Os portugueses estão-se nas tintas para o projecto Europeu, coisa que é tarefa de uns tipos engravatados, pagos a peso de ouro lá para Bruxelas ou coisa assim, mas que não se come à mesa, não aumenta o ordenado ou a pensão, não enche o depósito do carro, nem paga a educação dos filhos. Há essa coisa dos fundos comunitários, pois há, mas a isso dizem que quem nos dá um chouriço acaba sempre por levar o porco. Neste caso, o porco são os têxteis, as pescas, a indústria siderúrgica e metalomecânica pesada, as quotas de leite e da carne, da vinha e do olival, etc. etc.

Aliás, a Europa, tal como os europeístas a definem, não existe – e nunca existirá. A Europa é uma diversidade de povos e culturas que não pode ser fundida e uniformizada à força, por mera imposição legislativa ou pela política monetária. Uma Europa integrada, debaixo de um projecto político, económico, social e cultural comum não é possível, coisa que, valha a verdade, os defensores da ideia sabem até deitar por fora. Na realidade, não é isso que eles pretendem, como à frente explicarei.

Podem, de facto, os estados europeus coexistir e cooperar de forma mais ou menos aprofundada, mas os povos continuarão a procurar os seus próprios destinos, a ritmos diferentes, com bússolas diferentes, com sonhos diferentes, produzidos por passados diferentes, caracterizados por idiossincrasias diferentes. Numa coisa se poderão unir, para além do idioma, da religião, da latitude, da cor ou da etapa de desenvolvimento em que se encontrem: é na busca solidária de um futuro onde nenhum ser humano seja dependente do poder económico que alguns senhores seguram, como rédeas impiedosas: os senhores da banca, dos mercados financeiros, da especulação bolsista, enfim, do grande capital financeiro.

Mas é precisamente isso – e só isso – que este modelo de construção da Europa quer evitar a todo o custo. O que Barroso, Sócrates, Berlusconi, Cavaco, Sarkozi, Zapatero, Ângela Merkel, Brown ou qualquer outro figurão querem é subordinar todos os europeus ao modelo político e económico neoliberal, afastando do horizonte toda a possibilidade de se poder optar por outro modelo qualquer. O que se pretende – e mais nada – é impedir a emancipação dos povos através de uma sistema económico de cooperação e de solidariedade, pondo a economia ao serviço das pessoas – e não o contrário. Não perceber isto, é não perceber o essencial da luta política.

Mas voltando à abstenção e aos votos brancos – e aqui vai a minha provocação de hoje – sou da opinião de que são opções válidas, úteis e respeitáveis. Tão ou mais válidas, úteis e respeitáveis do que votar numa qualquer força política. Não quero dizer que um cidadão que se reveja neste ou naquele partido, seja porque acredita nas propostas políticas que este lhe oferece, seja – como é a maioria dos casos – por simples simpatia «clubista» deva deixar de o fazer. Que vote cada um como quiser, se pensa que assim está a contribuir para melhorar a sua vida e a de todos os seus concidadãos.

Mas o que deve fazer um eleitor que não reconhece em nenhum dos partidos concorrentes algo que coincida com a sua visão de sociedade? E o que deve fazer um eleitor que se fartou de promessas vãs, de conversa fiada, de teorias que não correspondem, depois, às práticas, e que vê os políticos servirem-se, em vez de servirem, que está fartinho de ver a corrupção alastrar, seja a nível do poder central, seja a nível do poder local? Votar, mesmo assim? Mas em quem, se ninguém lhe merece respeito ou confiança? O que deve fazer um eleitor que esteja desiludido com todo o quadro partidário que se lhe apresente num acto eleitoral, depois de se ter desiludido com meses e anos de conversa fiada, enquanto a vida de todos se vai degradando sem remédio? Que vê a corrupção presidir aos grandes negócios do Estado, aos mais pequenos negócios autárquicos, enfim, à transformação da acção política numa coisa infame e sem remédio à vista? Que vê a Justiça ser manipulada pelo poder político, deixando impunes os grandes criminosos, evitando tocar nas altas figuras do Estado, ou tratá-las acima de qualquer suspeita, mesmo que a realidade, nua e crua, aponte para o lado contrário?

Diz-se que o voto é a arma do povo. Será. Mas é, também, a capa dos políticos, sob a qual se sentem, depois, legitimados para fazer aquilo que andam a fazer há mais de 30 anos. Disse o senhor presidente da República que ninguém, abstendo-se, tem depois legitimidade para se queixar. Mas de que tem servido a queixa aos que votam e, depois, ficam desempregados, recebem salários e pensões miseráveis, ficam sem acesso à saúde, à educação e assistem, impotentes, ao alastrar da corrupção, ao abandalhamento da Justiça?

Por isso, considero que o voto em branco ou a abstenção são sinais evidentes de protesto, de descontentamento e são votos mais informados, conscientes e lúcidos do que, por exemplo, o voto arregimentado – e não estou a dizer que todos o sejam. Que sentido faz, afinal, um eleitor votar num partido cujas políticas lhe destruíram a vida e, mesmo assim, porque é partido no qual se filiou, ou com o qual simpatiza, lhe dá o voto como o carneiro dá o pescoço à degola? Que sentido tem, milhares de eleitores socialistas criticarem as políticas do PSD, quando o PSD governa, e depois aplaudirem – ou calarem-se – quando as mesmas medidas, ou piores, são postas em prática pelo PS? E vice-versa, claro. O que valem estes votos. Qual o seu conteúdo democrático?

Como deve votar, por exemplo, nas eleições autárquicas, um militante ou simpatizante de um partido qualquer, se o candidato local desse partido se transformou num verbo-de-encher e nada o distingue, pela acções e pelas omissões – pelas práticas, enfim – dos seus pares de outras forças políticas? Se era um pardacento cidadão antes de ser autarca, e é hoje um senhor com um belo património imobiliário, como há por aí vários exemplos?

As questões que aqui deixo – e que isso fique bem claro – não são apelos à abstenção ou ao voto em branco, tal como nunca fiz – nem farei – qualquer apelo ao voto em qualquer força política. Apenas quis deixar claro que não podemos considerar a abstenção ou o voto em branco como tumores malignos da democracia, já que me parecem muito mais conscientes e informados que, por exemplo, o voto de um trabalhador nos partidos que pariram e aprovaram o Código do Trabalho.

Ou não será?

(João Carlos Pereira)

Lida nas “Provocações” da Rádio Baía em 17/06/2009.
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1 comentário:

GATO GIL disse...

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