sexta-feira, 5 de junho de 2009

OS CORRUPTOS

- Histórias feias de uma democracia emporcalhada

Mário Crespo escreveu há dias, a propósito da nova lei do financiamento partidário, um artigo intitulado «Não é a crise que nos destrói. É o dinheiro», do qual não resisto a salientar as seguintes passagens:

«Nada no mundo me faria revelar o nome de quem relatou este episódio. É oportuno divulgá-lo agora, porque o parlamento abriu as comportas do dinheiro vivo para o financiamento dos partidos. O que vou descrever foi-me contado na primeira pessoa. Passou-se na década de oitenta. Estando a haver grande dificuldade na aprovação de um projecto, foi sugerido a uma empresária que um donativo partidário resolveria a situação. O que a surpreendeu foi a frontalidade da proposta e o montante pedido. Ela tinha tentado mover influências entre os seus conhecimentos para desbloquear uma tramitação emperrada num labirinto burocrático, e foi-lhe dito, sem rodeios, que se desse um donativo de cem mil contos "ao partido", o projecto seria aprovado. O proponente desta troca de favores tinha enorme influência na vida nacional. Seguiu-se uma fase de regateio, que durou alguns dias. Sem avançar nenhuma contraproposta, a empresária disse que por esse dinheiro o projecto deixaria de ser rentável e ela seria forçada a desistir. Aí, o montante exigido começou a baixar muito rapidamente. Chegou aos quinze mil contos, com uma irritada referência de que era "pegar ou largar". Para apressar as coisas e numa manifestação de poder, nas últimas fases da negociação o político facilitador surpreendeu novamente a empresária, trazendo consigo aos encontros um colega de partido, pessoa muito conhecida e bem colocada no aparelho do Estado. Este segundo elemento mostrou estar a par de tudo. Acertado o preço, foram dadas à empresária instruções muito específicas. O donativo para o partido seria feito em dinheiro vivo, com os quinze mil contos em notas de mil escudos, divididos em três lotes de cinco mil. Tudo numa pasta. A entrega foi feita dentro do carro da empresária. Um dos políticos estava sentado no banco do passageiro, o outro no banco de trás. O da frente recebeu a pasta, abriu-a, tirou um dos maços de cinco mil contos e passou-a para trás, dizendo que cinco mil seriam para cada um deles e cinco mil seriam entregues ao partido. O projecto foi aprovado nessa semana. Cumpria-se a velha tradição de extorsão que se tornou norma em Portugal e que nesses idos de oitenta abrangia todo o aparelho de Estado.

Rui Mateus no seu livro, Memórias de um PS desconhecido (D. Quixote 1996), descreve extensivamente os mecanismos de financiamento partidário, incluindo o uso de contas em off shore (por exemplo na Compagnie Financière Espírito Santo da Suíça - pags. 276, 277) para onde eram remetidas avultadas entregas em dinheiro vivo. Estamos portanto face a uma cultura de impunidade que se entranhou na nossa vida pública e que o aparelho político não está interessado em extirpar».

Se alguém julga impossível esta história, imaginando-a patranha de um jornalista pouco sério, posso assegurar-vos que, para mim, ela não traz nada de novo. Há anos, um querido amigo, já falecido, quadro superior numa grande empresa de obras públicas, foi encarregado de encontrar local onde pudessem ser despejadas as terras provenientes de um grande empreendimento que estava a ser realizado em Lisboa pela sua empresa. Contactados vários municípios dos arredores da capital, logo se prontificou o presidente de um deles a receber as terras, mas exigindo um donativo de 10 mil contos para, alegadamente, ser construída uma sede do seu partido. Face à situação, a empresa aceitou a exigência, e o valor foi pago em dinheiro vivo, em duas tranches de 5 mil contos, sendo a primeira entregue pelo meu amigo a um assessor do presidente da autarquia, e a segunda entregue ao mesmo cavalheiro por um administrador da empresa.

Noutra ocasião, um conhecido empreiteiro da península de Setúbal confidenciou-me que estava com sérias dificuldades para conseguir a aprovação de um projecto de urbanização, apesar de ter entregue a sua execução a um gabinete de arquitectura sugerido por um alto quadro dos serviços de urbanismo da câmara local, que lhe garantiu que isso iria «facilitar a aprovação». Devo acrescentar que esse gabinete de arquitectura pertencera ao referido técnico camarário, do qual aparentemente se desvinculara para evitar especulações.

As coisas começaram a azedar quando o tal gabinete de arquitectura informou que o pagamento da execução do projecto seria feito metade em dinheiro, passando o respectivo recibo, e a outra metade com a cedência de um lote, sem qualquer recibo. Em contrapartida, seria permitido o aumento da área de construção, através da elevação de mais um piso, ao que equivalia mais uma assoalhada, do tipo estúdio, por inquilino.

Mas o pior foi quando lhe disseram que tudo ainda estaria condicionado ao aumento da área de cedência à câmara, pois o terreno era insuficiente para a construção pretendida. Aí, milagrosamente, a própria autarquia encontrou a devida solução. Mesmo ao lado, confinando com a urbanização do empreiteiro, estava um terreno, por acaso da família de um senhor vereador, que dispunha de terreno a mais. Feitos os contactos, ficou a saber-se que o negócio podia ser feito, mas com a condição de o terreno ser transaccionado por 100 mil contos, dos quais só se passaria, no entanto, um recibo de 50 mil.

Com o investimento feito, só restava ao empreiteiro aceitar, e de bico calado, pois a alternativa era o prejuízo total, com o terreno às moscas. Devo acrescentar que, na minha santa inocência, lhe perguntei se me autorizava a denunciar a situação no jornal Outra Banda, que então dirigia, mas pediu-me, por todos os anjinhos, que não o fizesse, pois se isso acontecesse nunca mais teria um projecto aprovado no concelho em causa.

Calei-me, na altura, por não ter o direito de agir contra a vontade de quem confiara em mim e, num desabafo, lamentara o lodaçal onde se tinha deixado atascar. Mas, falando em termos gerais, contei no local próprio e à frente das pessoas certas, uma estranha história que tinha ouvido algures. E querem saber uma coisa? Em duas semanas o projecto estava aprovado!

Há dias, uma ouvinte avisou-me para os perigos do que digo a estes microfones, pedindo-me para ter cuidado. Estranho aviso. Fez-me recordar os tempos de antigamente, quando os amigos ou a família avisavam para a necessidade de não erguer a voz, de calar a revolta, de não tocar no sistema instalado. Essa ouvinte, que estimo muito, avivou-me, na memória, os ecos de então. Percebo-a, agradeço-lhe, mas não lhe vou obedecer. As histórias verídicas que hoje aqui contei, sem pormenores, têm nomes, caras, datas, documentos, testemunhas. São histórias sujas de uma democracia porca – porque foi emporcalhada por senhores de colarinho branco – transformada num regime sem moral, sem valores, sem vergonha.

Um dia, quando for oportuno, as contarei – estas e outras – sem hesitar. Para resgatar Abril e as suas esperanças. Porque no 25 de Abril que vivi há mais de 34 anos, não cabia gente desta. Nem no mais negro dos sonhos.

E se eu não estiver cá para as contar – seja lá porque motivos forem – alguém as contará por mim. E, com toda a certeza, melhor do que eu.


(João Carlos Pereira)


Lida nas “Provocações” da Rádio Baía em 03/06/2009.
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