quarta-feira, 14 de outubro de 2009

UMA QUESTÃO DE MOSCAS

Passou a febre eleitoral. Um colega meu perguntou-me, logo na segunda-feira, o que pensava eu dos resultados das diversas eleições. Respondi-lhe, apenas, que os tempos que aí vêm serão irmãos gémeos dos tempos que passaram. Bateu palmas. Com mais moscas aqui, ou com mais moscas acolá, a nossa pobre vidinha vai continuar na fossa. No actual quadro político, nada se decide em eleições, salvo a repartição ou manutenção dos tachos entre os aparelhos partidários, tanto no poder central, como no poder local. É por isso que eles lutam, e é para isso que eles nos põem a lutar. Nos dividem. Na verdade, nós só contamos como meros eleitores, aqueles que vão decidir quais dos figurões se vão governar melhor até à próxima ida às urnas. Tem sido assim ao logo das últimas três décadas, assim vai continuar a ser. Há excepções pontuais, eu sei, mas eu não falo de excepções, falo da regra.

Por isso, se alguém está à espera que volte ao tema dos resultados eleitorais, tire o cavalinho da chuva. Prefiro agarrar na deixa que me deu um ouvinte da semana passada, que, basicamente, disse o seguinte: os banqueiros e o grande patronato, onde pontifica o senhor Francisco Van Zeller não desejam – logo, não admitem – qualquer solução governativa que belisque os seus interesses. Será, por isso, à direita que o PS terá que encontrar soluções governativas, perfilando-se o CDS/PP como o interlocutor privilegiado, já que o PSD está em convulsão permanente e sem credibilidade. Direi eu que, um ou outro, tanto faria…

Não podia ser mais claro esse ouvinte, que sempre se confessou um homem de direita. Quem decide o presente e o futuro do país, tal como, até agora, decidiu a nossa vida nos últimos 33 anos, é o poder económico. O povo vota mas, seja lá qual for o resultado, é atrás dos reposteiros da política e nos gabinetes da alta finança que se decide como vai ser. Gostemos, ou não, do que ele disse – e eu não gosto – a verdade é que não podemos deixar de reconhecer que ele se limitou a retratar uma realidade, com a qual diz concordar. E, sem querer, confirmou que as classes sociais existem, apesar de, noutra altura, ter dito que isso eram águas passadas. Mas é assim mesmo que as coisas estão, em Portugal, desde o 25 de Novembro de 1975. Dito de outra forma – ou seja, da forma que eu costumo dizer: o poder económico dita as regras, e o poder político cumpre-as. O resto – incluindo o acto eleitoral – é puro carnaval. Pura liturgia.

O que me distingue desse ouvinte, é que ele aceita – e até concorda – que a política seja precisamente assim, feita à medida dos interesses da alta finança, limitando-se o povo, depois de votar, a comer e a calar. E, claro está, a pagar a factura. Eu defendo que um estado republicano e democrático deve estar ao serviço de todos os cidadãos, zelando para que todos tenham os mesmo deveres e direitos, eliminando assimetrias sociais, económicas e culturais, e a todos garantindo uma vida digna e saudável. Num estado verdadeiramente republicano e democrático – e uma vez que a miséria toca, no Portugal de hoje, à porta de mais de 2 milhões de portugueses, onde há crianças e idosos com carências de toda a ordem, inclusive de ordem alimentar, médica e medicamentosa, subsistindo em condições absolutamente sub humanas, e onde milhares de trabalhadores, apesar de receberem os seus salários com regularidade, são, face à exiguidade das suas remunerações, considerados pobres – deveria ser prioridade da governação resolver estas chagas sociais. Deveria ser, mas não é.

E não é, porque o poder económico – a aristocracia feudal dos nossos tempos – tem a mesma visão elitista da sociedade que existia na Idade Média. A diferença é que, nessa altura, exercia directamente o poder, enquanto que, hoje em dia, o faz através da classe política, com a qual vive na mais profunda promiscuidade. E para legitimar tudo isto, leva-se a plebe até às urnas, na ilusão pueril de que será ali que tudo se decide. Está provado que não.

Mas… porque não será nas urnas que tudo se decide se, teoricamente, tal seria possível? Porque existe uma outra forma de exercer o poder, velha de séculos, mas profundamente eficaz, apesar de invisível. A dominação ideológica, a manipulação das consciências, a hipnose colectiva. Um político, cujo nome agora não me ocorre, disse há anos, para explicar isto, o seguinte: «Fiquem os meus adversários com o exército e a polícia, mas deixem-me ficar com a televisão». Não podia ser mais esclarecedor.

Em consequência, o que vemos? Imaginemos cinco famílias em condições económicas e sociais absolutamente idênticas, sobrevivendo com grandes dificuldades, equilibrando-se dificilmente num cenário de desemprego recorrente, subsídios precários, trabalhos ocasionais, endividamento extremo e asfixiante, enfim, com a corda, literalmente, na garganta. Este é um cenário perfeitamente vulgar e reconhecidamente plausível. E se falo em cinco, poderia falar em muitas centenas de milhares.

Sabemos, também, que é igualmente plausível que essas cinco famílias, aqui dadas como exemplo, tenham opções eleitorais absolutamente distintas. Um vota CDS/PP, outra PSD, outra PS, outra PCP, e outra BE. Sendo essas famílias, em termos económicos, culturais e sociais absolutamente semelhantes, o que as leva a confiar a partidos diferentes, com ideologias, programas e práticas políticas diferentes – e, nalguns casos, até antagónicas – a resolução dos seus problemas? Haverá alguma objectividade nessas diferentes opções? Será, em suma, o interesse próprio, como seria expectável, que baliza as opções partidárias de cada uma dessas famílias, ou serão factores de ordem puramente subjectiva – e predominantemente emocional e afectiva – que determina a tendência do cada voto? O que condiciona – e como se condiciona – o voto de milhões de pessoas?

É evidente que as opções partidárias não são, na esmagadora maioria dos casos, opções racionais. São opções condicionadas por grandes máquinas de propaganda ideológica, visíveis e detectáveis algumas delas – a presença efectiva e contínua de comentadores, analistas e ditos ideólogos ligados aos partidos do sistema – mas invisíveis e dificilmente detectáveis muitas outras, desde a arrumação das notícias nos meios de comunicação social, ao conteúdo dos programas de entretenimento, sempre orientados para a acefalia e a boçalidade, passando pelos argumentos dos filmes e séries constantemente exibidos, onde as chamadas «virtudes» da sociedade de consumo (aquela que enche as arcas do grande capital) está sempre latente. «Esta é a sociedade que temos, tem alguns defeitos, é certo, mas só nela – e por ela – conseguirás ser feliz», é a mensagem sempre transmitida, seja de forma explícita, seja de forma subliminar.

Dizendo de outro modo: os grandes meios de comunicação social estão nas mãos dos grandes grupos económicos, os tais senhores feudais dos nossos tempos, a quem não interessa, naturalmente, que o feudalismo acabe. Percebido?

E se querem um exemplo vivo e actual do que pode ser a manipulação ideológica, agarrem já nas notícias que abriram, com fanfarra e foguetório, todos os noticiários televisivos, e fizeram manchete em todos os jornais, dizendo que o estudo encomendado pelo governo, que servirá de base a uma chamada reforma fiscal, aconselha que os casais possam fazer entrega de declarações de IRS separadas.

É evidente que essa medida poderá trazer pequenos benefícios pontuais num ou noutro caso, mas é perfeitamente inócua na maioria dos casos, para além de milhares de casais não serem capazes de fazer as respectivas contas para saberem quanto euros – ou cêntimos – poderiam poupar. O que esconde esta medida tão trombeteada, é algo muito grave. O governo, ao encomendar este estudo, sabe a quem o encomendou. E os autores do estudo sabem aquilo que o governo – que é quem lhes paga o trabalho – quer. E o que o governo quer não é, naturalmente, perder receita fiscal, mas aumentá-la. E como a vai aumentar? Simplesmente – e a medida lá está nalgumas das 700 páginas do estudo – reduzindo ou acabando com muitas das deduções específicas que os contribuintes desde sempre puderam fazer.

Esta é a grande medida que o estudo encerra, mas esta é a medida que os órgãos de comunicação social escondem, como se a não soubessem, fazendo o frete de predispor favoravelmente a opinião pública para mais um ataque ao bolso dos cidadãos. Dão-nos o chouriço das declarações separadas, e levam-nos o porco com a manobra das deduções específicas.

Mas há mais. Para dar um ar de esquerda e de justiça social à golpada, lá está sugerido que as mais-valias conseguidas com as negociatas na bolsa, passem a ser tributadas. Mas acontecem duas coisas muito simples. Em primeiro lugar, só passam a ser tributadas as mais-valias resultantes das vendas feitas no prazo de um ano após a compra dos títulos. Em segundo lugar, as transacções feitas em offshores vão continuar isentas.

Ora, quem vende pouco tempo depois de ter comprado? E quem não usa offshores para negociar acções?

Adivinharam: os pequenos investidores, a chamada classe média.

E quem fica livre de qualquer tributação?

Adivinharam outra vez: os senhores feudais da alta finança.

Perceberam agora, ou precisam que eu faça aqui um desenho?

Por isso, enquanto as eleições forem, apenas, uma questão de moscas, não passaremos da cepa torta.

(João Carlos Pereira)


Crónica lida nas “Provocações” da Rádio Baía em 14/10/2009.
(Não deixe de ouvir em 98.7 Mhz e participar pelos telefones 212277046 ou 212277047 todas as quartas-feiras entre as 09H00 e as 10H00).


3 comentários:

SOCRATINA disse...

Não gosto de o ouvir sempre a dizer mal do Sr.Sócrates, um homem que é um santo.
Diga mal do Sarkosy, do Berlusconi ou do Zapatero, mas não belisque o nosso Zezinho porque se ele faz alguma coisa errada não é por mal, é só porque tem tudo contra ele, com honrosas excepções do Sr.Carvalho da Silva, do Sr.Saramago e do Sr.Carlos do Carmo. Estes sim, gente do melhor que há e da máxima coerência, como facilmente se pode comprovar.

Anónimo disse...

Tenho uma dúvida:
A imagem representa um casal de moscas na tentativa de reprodução ou, pelo contrário, aquilo que os governos nos andam a fazer a todos nós sem o nosso consentimento?

Anónimo disse...

Gostei especialmente da seguinte passagem: «No actual quadro político nada se decide em eleições, salvo a repartição ou manutenção dos tachos entre os aparelhos partidários, tanto no poder central, como no poder local. É por isso que eles lutam, e é para isso que eles nos põem a lutar. Nos dividem». E cito Camões: «Tranforma-se o amador na coisa amada». No Seixal transformou-se o Poder Local Democrático na coisa odiada,transformou-se no poder local igual ao que qualquer outra força política pratica pelo país fora. Com boys e girl à mistura. E com ladrões também.

Um trabalhador da autarquia cheio de saudades