quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

AS PALAVRAS E OS ACTOS



Na semana passada abriu-se aqui uma discussão interessante. Pelo menos dois ouvintes criticaram os termos que eu utilizei para definir quem tinha defendido certas ideias num programa anterior. Disse eu que o ouvinte em causa, para defender o que defendeu, só poderia ser uma de duas coisas: ou um cego mental, ou um crápula absoluto. Cego mental é aquele que não é capaz de compreender a realidade, porque lhe falta a lucidez para tanto. Crápula, no sentido em que apliquei o termo, é aquele que, não sendo cego mental, se porta como se o fosse, pois nega a realidade, tentando, com isso iludir os outros. É uma pessoa falsa, libertina, devassa, podre, que são outros sinónimos de crápula.

Os dois ouvintes que saltaram contra a rispidez das minhas palavras, apesar de estarem contra as posições do alvo delas, afirmaram que elas, as expressões, eram impróprias do debate democrático e de quem defende a liberdade de expressão e de opinião. Parece-me que os dois ouvintes, não sendo ingénuos, são, pelo menos, excessivamente passivos no que respeita à luta ideológica, que, certamente, situam num campo de um debate de ideias entre pessoas com visões diferentes da vida e da sociedade, algo que se passa lá por cima, ao pé das nuvens, sem nada ter a ver com as misérias da nossa vidinha real. Uma coisa assim: uns defendem que este sistema político e económico é mau porque produz desemprego, se sustenta de baixos salários, fomenta as desigualdades sociais, condiciona o acesso à saúde e à educação, promove a corrupção, subverte a justiça – que é uma para os poderosos e outra para o cidadão comum – enfim, transforma a nossa vida colectiva num inferno terreno, um campo de miséria, violência, injustiça e morte; outros defendem que assim é que está bem… e siga o baile.

Bom. Se tudo se limitasse a um jogo de palavras, uma amena cavaqueira, uma espécie de passatempo desligado da vida e dos seus dramas, eu até compreendia a crítica dos dois ouvintes. Mas o que se passa é que estamos a falar de coisas que vão muito para além das palavras. Estamos a falar da vida e da morte, da saúde e da doença, do saber e do obscurantismo, da opulência e da miséria, da justiça e da devassidão, da honra e da iniquidade, dos valores éticos e da mais absoluta imoralidade. E se eu admito que um ignorante, um analfabeto, um néscio como milhares de néscios que a nossa sociedade produz em cadeia, possa aceitar – ou, até, aplaudir – a bagunça asquerosa em que está transformada a nossa vida (os tais cegos mentais), já não levo à conta da estupidez e da ignorância que um senhor doutor, maior e vacinado, aceite e justifique este estado de coisas, a não ser que seja um dos beneficiados e, no fundo, cúmplice, das malfeitorias que o povo português sofre.

Há – ou não há – cerca de dois milhões de pobres em Portugal? Há – ou não há – milhares de idosos sem amparo, que não têm acesso aos cuidados médicos e medicamentosos necessários? Há – ou não há – cerca de 600 mil desempregados, o que equivale a centenas de milhares de famílias a viver o drama da pura subsistência? Há – ou não há – doentes há meses à espera da operação que lhes salve a vida? Há – ou não há – crianças com fome, que não sabem o que é um copo de leite ou um bife? Há – ou não há – uma criminalidade galopante, desde a mais rasteira e violenta, até à mais alta e sofisticada, de colarinho imaculado, instalada nos altos patamares do estado e das grandes empresas? Há – ou não há – milhares de jovens, muitos deles licenciados, que não conseguem saber que dia vai ser o de amanhã, ou porque não conseguem emprego, ou porque o que têm, precário, vai chegar ao fim? Há – ou não há – mortes escusadas às portas das urgências fechadas e grávidas a parir à beira da estrada ou dentro de ambulâncias, porque nem todas vivem perto de Badajoz? Há – ou não há – uma monstruosa disparidade entre os salários e as pensões de reforma da população em geral e os ordenados e mordomias da elite empresarial – tanto pública, como privada – que representa o maior fosso de rendimentos registado na Europa comunitária? Há – ou não há – uma situação de corrupção galopante, onde altas figuras do estado e do mundo empresarial estão comprovadamente associadas? Há – ou não há – um esforço enorme para abafar tudo isto e denegrir aqueles agentes da justiça que ainda têm consciência dos seus deveres e do que é a palavra honra? Há – ou não há – quem já tenha posto termo à vida porque não encontrou saída para os seus problemas económicos e sociais? Há – ou não há – quem tenha morrido de abandono e miséria?

Se eu vos responder que há, sim senhor, estarei a mentir?

E digam-me, agora: o que é mais grave? Defender as políticas e os políticos que estão na origem disto tudo – ou seja: ser cúmplice assumido desta chacina social – ou chamar cego mental, ou crápula, a quem defende, consciente e criminosamente, este estado de coisas?

Todos têm a liberdade de emitir as suas opiniões, é certo. Concordo e subscrevo. Mas eu tenho a liberdade de as qualificar. E de justificar, como acabei de fazer, os termos que usei. Porque, meus amigos, eu não venho aqui brincar aos jogos florais ou falar de coisas abstractas e inócuas. Não venho aqui trocar ideias, como quem troca prendas ou abraços, e no fim todos ficamos felizes. Eu estou aqui para denunciar os crimes e os criminosos que, em nome da democracia e sob o manto da política, espalham a miséria e a devassidão por esse país fora. Que se aproveitam dos cargos para enriquecer, enquanto determinam, com força de lei, o aperta o cinto para os governados.

Eu estou aqui, em suma, para combater as políticas neoliberais que espalham a fome, a morte e a guerra por todo o mundo, enquanto os seus autores se banqueteiam na mais degenerada e revoltante opulência. E se há que ache que as minhas palavras são mais graves que os males de que todos padecemos, então é porque alguém não percebeu do que estou a falar. Ou eu não me soube fazer entender.

Talvez um poema que escrevi há uns anos diga melhor as coisas:


O menino sentou-se numa poça de água e fez um poema de lama
A mãe sentou-se à mesa vazia e fez um poema de lágrimas
O pai sentou-se à beira do desespero e fez um poema de sangue

E o poeta
ao vê-los
sentou-se e limitou-se
a transcrevê-los.


(João Carlos Pereira)

Crónica lida nas “Provocações” da Rádio Baía em 02/12/2009.

Não deixe de ouvir em 98.7 Mhz e participar pelos telefones 212277046 ou 212277047 todas as quartas-feiras entre as 09H00 e as 10H00.

2 comentários:

CV disse...

De repente, ao ler a Crónica e este teu poema, apeteceu-me transcrever Ary dos Santos.

Diz ele:

Serei tudo o que disserem
por inveja ou negação:
cabeçudo dromedário
fogueira de exibição
teorema corolário
poema de mão em mão
lãzudo publicitário
malabarista cabrão.

Serei tudo o que disserem:

Poeta castrado não!

Monte Cristo disse...

Não posso deixar de agradecer e garantir que tentarei sempre manter a coluna bem direita e os ditos no sítio.

Abraço.

jclp