O senhor ouvinte, de nome aristocrático e apelido não menos distinto, advoga que as coisas estão muito bem assim. Que só pessoas fora da realidade, ultrapassadas, pouco conhecedoras das realidades políticas e sociais deste mundo global (forma elegante de lhes chamar ignorantes a tender para o estúpido) é que dizem que a sociedade, tal como está organizada, não presta, e que pode ser melhor.
A senhora ouvinte, com nome e discurso de mulher do povo, por se sentir vítima do modelo de sociedade que o senhor ouvinte defende – e, consequentemente, por não concordar com esse modelo, que produz a miséria que por aí vai – manda-o para o raio que o parta e, para acabar, chama-lhe nojento.
Uma conclusão possível: o ouvinte estava a debater em termos ideológicos; a ouvinte limitou-se a insultar. Ele usou argumentos; ela utilizou o insulto.
Outra conclusão possível: ambos defenderam pontos de vista opostos, cada um com as suas palavras. Mais elaboradas as do ouvinte, senhor de muitos saberes e cabedais; mais curtas e grossas as da ouvinte, pessoa das classes baixas. Da chamada ralé.
Ainda outra conclusão plausível: o ouvinte é um rematado sabichão de conversa apurada, e defende, porque lhe é conveniente, uma estrutura social e económica da qual beneficia. E, por saber que isso se manterá enquanto as minorias não reagirem e conseguirem os seus direitos, tenta, ardilosamente, convencer as vítimas do sistema de que não têm saída. Que este é o melhor dos mundos possível. Que aquilo em que acreditam, por mera credulidade ou sectarismo (forma elegante de voltar a insultá-los), não é possível. A ouvinte, porque topa à légua as galgas do finório, não está com papas na língua e vai de descasca pessegueiro.
Ponhamos de fora o supérfluo – ou seja: a forma de cada um deles se exprimir, o respectivo vocabulário e a capacidade argumentativa – e dissequemos o conteúdo do que disseram, isto é, o que cada um defende.
Para ele, a sociedade capitalista é boa. Não há, mesmo, outra melhor. E governos, só o mais à direita possível. Por isso, até bate palmas a Sócrates. Então, teremos os opulentos na sua opulência, os ricos na sua riqueza, os pobres na sua pobreza, os desempregados no seu desemprego, os velhos na sua solidão. O poder económico é sagrado, a política existe para servi-lo. Para uns poucos, é o venha a nós o vosso reino; para outros, é o aguenta, Pacheco! É assim mesmo que o mundo é, ponto final.
Para ela, que desde sempre tem sofrido na pele a aplicação prática destas concepções ideológicas – e porque, para além dela, se preocupa com os outros – esta política é criminosa e imoral. Provoca miséria e fome, provoca guerras, esmaga milhões de pessoas em proveito de uns quantos. Ela acredita que outra política é possível. E necessária.
A ouvinte não compreende que uma pessoa honesta e inteligente possa defender aquilo que, comprovadamente, é mau para a sociedade, pois, como já dizia Almeida Garrett, são precisos muitos milhares de pobres para produzir apenas um rico. Ela não sabe dizer desta maneira, porque as políticas de direita, que sempre sofreu, não lhe deram acesso a estudos e à possibilidade de saber aprimorar as palavras – e burilar os insultos – como o ouvinte, requintadamente, faz. Ela sabe apenas que se enoja ao ouvir alguém defender, sem ser por mera estupidez, o que é indefensável. Conclui que o seu opositor é cínico, é malandro, é egoísta, é uma pessoa que defende, apenas, o que lhe interessa, e que lhe é absolutamente indiferente o sofrimento de milhões de compatriotas, e de outros milhões de seres humanos.
Já uma vez aqui o disse, e sinto-me obrigado a repeti-lo: quem defende uma sociedade como esta, com todas as malfeitorias, chagas e crimes que lhe estão nos genes, só pode ser uma de duas coisas: estúpido, ou crápula. Também estarei a insultar alguém? Paciência. Mas muito mais do que me insultar – porque também me insulta – este sistema político e económico agride-me. Agride milhões de seres humanos. Retira-lhes o direito sagrado ao trabalho, ao ordenado justo, à saúde, à educação, à habitação. Condena crianças e idosos a não terem acesso àquilo que a Declaração Universal dos Direitos Humanos consagra como direitos seus. Condena à morte milhões de pessoas em todo o mundo, seja por fome, seja por doenças curáveis, seja por via das guerras de rapina, seja porque as leva ao desespero.
Perante esta realidade, alguém se pode escandalizar com palavras como nojento, ou crápula? Então, e as balas e as bombas? Então, e o Código do Trabalho? Então, e os chefes de família sem pão para os filhos? Então, e os jovens licenciados sem emprego? Então, e a fome e a miséria? Então, e os doentes que morrem sem conseguirem chegar à mesa de operações? Então, e os idosos a morrerem de abandono e solidão? Então, e os salários a saírem dos nossos bolsos para os bolsos dos accionistas das grandes empresas?
Tudo isto não é pior que um insulto? Não é pior a violência real, física, do que a violência verbal? A política que sofremos não é um crime contra a humanidade? E defender este sistema político e económico não é ser, conscientemente, cúmplice de todos estes crimes? Não será isso, realmente, nojento? Não me repugnam as palavras – nenhuma delas – já que elas nasceram para ser ditas. Será, por isso, incorrecto chamar nojento a quem nos enoja? Ou já estarei condenado a censurar-me em nome do politicamente correcto? E a quem interessa o politicamente correcto?
Depois, meus amigos, o debate ideológico não é uma coisa isolada da vida, uma discussão inócua sobre quem é o melhor jogador de futebol do mundo. Se assim fosse, o que antes nos distinguia de Salazar – e, agora, de Sócrates – seriam, apenas, meras diferenças ideológicas. Defende-se, então, que «cada um pensa como pensa, e siga o baile», mesmo que seja por cima dos corpos espezinhados dos oprimidos e explorados? Porque os há, aos milhões. Não! Mais uma vez esclareço que não vou por aí.
O ouvinte de nome aristocrata – e apelido não menos distinto – diz exactamente o que diria Salazar, se cá estivesse. E diz o que diz Sócrates, cujas políticas, de resto, aplaude. Ele faria o que fez o economista de Santa Comba (que era economista e tudo), tal como faria o que faz o mais célebre «engenheiro» que a UNI licenciou num certo e famoso domingo. O que lhe devo chamar, nesse caso? Um impoluto democrata? Não me parece. Porque se ele o é, Salazar e Sócrates, então, também merecem o rótulo.
Sou um homem livre. Falo e escrevo pela minha cabeça. Defendo os meus ideais, os meus valores, luto por aquilo em que acredito. Ninguém me obriga a dizer o que não quero, ninguém me impede de dizer o que desejo. E estou de bem – muito bem – comigo.
Posso pagar por isso? Pois posso. Então, como cantava o Zeca, que venham mais cinco, de uma assentada, que eu pago já. Mas que não trato um fascistóide de falas mansas como um mero opositor ideológico, só porque se diz por aí que vivemos em democracia, ai, meus amigos, isso não trato. Nem que venha o mais pintado.
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(João Carlos Pereira)
Crónica lida nas "Provocações" da Rádio Baía em 20/01/2010.
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