quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

AS PESSOAS E OS FUNGOS

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Há pessoas e há fungos. Pessoas, são aqueles mamíferos que andam sobre duas patas, tratam, dentro dos condicionalismos existentes, de se manter vivos e saudáveis, e têm a massa encefálica em constante actividade, pelo que estão aptos a pensar pela própria cabeça. Vêem para além do óbvio, analisam o que os rodeia, duvidam sempre antes de acreditar, decidem de acordo com o que pensam e, regra geral, são impossíveis de domesticar. Os fungos são extremamente parecidos com as pessoas, das quais se distinguem, apenas, porque não usam a massa encefálica. Por isso, não decidem por si próprios, adaptam-se facilmente às condições que lhes são impostas, mesmo as que atentam contra a sua integridade, contentando-se em sobreviver em ambientes insalubres. Muitos são designados por bolores, dada a sua estrutura filamentosa, óptima para parasitar outros organismos. Parecendo que não, há mais fungos que pessoas, coisa facilmente comprovada nos resultados eleitorais.

Posto isto, que mais adiante se perceberá ao que aqui vem, falemos da famosa – e famigerada – crise. Quando a crise acontece, os trabalhadores apertam o cinto, porque, enfim, crise é crise… e nada há a fazer. Quando a crise se afasta e há sinais de retoma, é preciso continuar a apertar o cinto (o cinto dos trabalhadores, claro), pois há que pôr em ordem as contas públicas e a economia, reduzir o défice, blá blá blá blá, e isso só é possível com mais alguns sacrifícios. Mal se equilibram as contas públicas e a economia já está melhorzinha, muito obrigada, não se pode desapertar o cinto (sempre o cinto dos trabalhadores), quando não, ficamos na mesma.

É então que aparece uma nova crise, e lá volta tudo ao início. Sempre foi assim, assim está a ser, assim será no futuro, pelo menos enquanto tivermos por aí mais fungos que pessoas. O embuste está montado, e nada mudará se a nossa vida estiver entregue à classe política, tal como a conhecemos, e a classe política, por sua vez, não passar de um pau-mandado do poder económico, o mesmo é dizer: da economia de mercado, alcunha generosa de sistema capitalista.

Dêem-lhe as voltas que quiserem, chamem-lhe os nomes que chamarem – podem, até, chamar-lhe democracia – a verdade é que a vida de milhões de pessoas (e também dos fungos) depende sempre da maior ou menor ganância – mas sempre ganância – que, em determinados momentos, os detentores do capital conseguirem pôr em prática. Aliás, a ganância é a mola chave do capitalismo, a sua base genética, pois sem esse espírito de pilhagem (espírito empreendedor, para os cínicos ou para os parvos) qualquer capitalista – ou, se quisermos: o próprio sistema capitalista – pura e simplesmente sucumbiria.

Ora acontece que as leis que nos regem estão elaboradas dentro desta visão do que deve ser a organização política, social e económica da sociedade, como se ela correspondesse a algo de sagrado e imutável. Parte-se do princípio que é legítima e necessária a posse, por privados, de todos os cordéis que movem a economia – melhor dizendo: parte-se do princípio que é legítimo a qualquer um ser dono dos meios de produção do país, incluindo sectores estratégicos, tais como o sistema financeiro e a produção siderúrgica e metalo-mecânica, deter todas as riquezas naturais, como as do subsolo, através da exploração mineira, deter os sectores energéticos e dos transportes. E até a própria água, que bem mais público não pode haver, se quer pôr nas mãos dos interesses privados. Chamam a isto liberdade. Eu chamo-lhe a mais infame exploração. O equivalente, nos tempos modernos, da ordem feudal ou do próprio sistema esclavagista.

Ao entregar aos privados todos os recursos do país – e levar-nos a pensar que esse é o melhor caminho para a sociedade humana – o poder político mais não faz que colocar milhões de pessoas e de fungos à mercê dos interesses de uns quantos. O resultado é o que se sabe: crise atrás de crise. Ou uma convenientíssima crise perpétua.

Prova disto, é-nos dada por notícias recentes, que dizem ter os principais grupos privados na área da saúde facturado 694 milhões de euros em 2009, (apesar de ter sido um ano de crise), mais 42,5% do negócio relativamente ao ano anterior, cujos lucros já tinham atingido os 487 milhões. Crise é coisa, então, que não existe para estes privados, principalmente porque o governo «socialista» do «engenheiro» Sócrates teve o cuidado de lhes embalar o negócio, fechando centros de saúde, urgências e maternidades do serviço público, ou seja, obrigando a população a dar couro e cabelo a Mellos, Espíritos Santos e demais galfarros.

Enquadradas nisto, estão a recente discussão sobre o Orçamento Geral do Estado e a farsa adjacente sobre a obtenção de consensos que levem à sua aprovação na AR. O OGE que aí vem vai impor, em nome da recuperação económica e da redução do défice, mais sacrifícios para quem trabalha ou vive das suas reformas. Em contrapartida, vai permitir a acumulação de mais lucros aos senhores do capital. As pessoas percebem isto, os fungos, nem por isso. Ou, se percebem, não se ralam, se é que não estão de acordo.

Nota dominante, é o previsto congelamento de salários, do que resultará menos poder de compra, pois os bens e os serviços essenciais à nossa sobrevivência, cujas produção e distribuição estão nas mãos dos privados, vão continuar a aumentar, sejam eles produtos alimentares, sejam outros bens e serviço de consumo inevitável, como a electricidade, o gás (os combustíveis, de uma maneira geral), as despesas com a saúde e a educação, os seguros, o vestuário, enfim, tudo o que é necessário e obrigatório no nosso quotidiano. Em 2010, com o OGE do PS, combinado com o PSD e o CDS, todas as pessoas e todos os fungos ficarão mais pobres.

Como se compreende – e até o mais fungo dos fungos é capaz de chegar lá – se os produtos aumentam e os salários não, alguém arrecada a diferença. Esse alguém, escusava de repeti-lo, são os que detêm os recursos financeiros, os meios de produção e distribuição, as riquezas naturais e as demais riquezas que complementam os seus assinaláveis pecúlios. É isto a economia de mercado, é isto a tal democracia na versão neoliberal, é isto, enfim, a nossa triste vidinha.

E assim será enquanto os fungos forem mais do que as pessoas. E o pior é que os fungos, além de seres vegetativos e sem vontade própria, podem votar. Como um cogumelo é um fungo, e como a própria expressão nascem como cogumelos sugere, eles multiplicam-se, pelo que temos muito que bulir para que os fungos se transformem em pessoas. Até lá, Sócrates e Mellos, Teixeiras dos Santos e Belmiros cantarão de galo.

Apesar disto, o governo vê-se forçado a aldrabar todos os dias. Em Setembro do ano passado, o défice estava controlado e nunca passaria dos 5%. Estava-se em campanha eleitoral, é verdade. De repente, o défice trepou para quase o dobro: 9,3%. Se Sócrates já era o campeão do desemprego, fez agora a dobradinha, passando a deter o recorde do défice. Até o camarada Vítor Constâncio se disse admirado com tal défice. Admirado fico eu, com a admiração do senhor Constâncio. Será que ele, que devia saber tudo sobre as finanças do país, continua tão distraído como andou quando não via nada do que se passava no BCP, no BPN e no BPP?

Ou será que o défice não é de 9,3%, mas convém a Sócrates e a Teixeira dos Santos dizerem que sim, para assustar os fungos e fazer passar melhor as medidas restritivas? O que teria outra vantagem lá mais para diante: é que daqui a uns tempos poderia dizer-se que, graças às políticas corajosas do governo, o défice descera espectacularmente, voltando a estar controlado…

Outra aldrabice inscrita no OGE: o Governo estima, para 2010, uma taxa de desemprego de 9,8%. Mas o desmancha-prazeres do Eurostat veio dizer que em Dezembro de 2009 a taxa já era de 10,4%. O cozinhado orçamental ainda não está discutido nem aprovado, e já sabemos que um dos pressupostos é falso. E a realidade já é pior do que os números do Eurostat, porque as estatísticas não contam todas as pessoas sem trabalho. E, como toda a gente sabe – fungos incluídos – o desemprego continuará a aumentar neste ano. Não é com a economia a crescer 0,7% e com as empresas e cidadãos com falta de confiança e o investimento em níveis baixos que se consegue criar postos de trabalho. E – drama sobre drama – lá para o Verão vão extinguir-se milhares de subsídios de desemprego.

Mas Sócrates continua a cantar vitória. Diz que em 100 dias de governo conseguiu parir um aborto chamado casamento gay. E – vejam lá! – chegou a acordo com os professores.

Se o ridículo matasse, Sócrates já era múmia. A sorte dele é que estamos no país dos fungos.


(João Carlos Pereira)

Crónica lida nas “Provocações” da Rádio Baía em 03/02/2010.
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1 comentário:

O Puma disse...

Muito bom como sempre

Fundamentado e poético.

Vegetativos os fungos jamais serão poder - a menos que despertem
venenosos em latas de conserva
à mesa dos poderes.

Abraço amigo