quarta-feira, 14 de abril de 2010

O PEDITÓRIO DO COSTUME


Sempre que o senhor presidente da república pede, solenemente, a união de todos os portugueses, com o objectivo de vencer a crise, começo logo a ranger os dentes. E quando ele, logo a seguir, apela ao esforço e ao espírito de sacrifício de todos os portugueses para resolver os graves problemas com que o país de debate, contenho a custo o desabafo agreste que tal apelo me suscita.

Não sei, porque ele não explica, o que entende o senhor presidente da república por todos os portugueses. Nem sei, porque ele também não esclarece, como é que todos os portugueses se podem unir em volta desse ingente objectivo de salvar a pátria, se a pátria – ou alguém por ela – já decidiu que os portugueses divididos é que estão bem. Ou dizendo por outras palavras: se a pátria é mãe extremosa para uns poucos, mas terrível madrasta para todos os demais. Ou ainda: há uns portugueses mais portugueses do que outros.

Por outro lado, ao pedir sacrifícios a todos os portugueses, o senhor presidente não esclarece se está perfeitamente ciente de que a maioria dos portugueses anda a fazer sacrifícios desde que nasceu, e que isso não serviu absolutamente para nada. Não aproveitou a eles, nem aproveitou ao país. Aproveitou – isso eu sei – a alguns outros portugueses, muito poucos, que têm visto os seus pecúlios astronomicamente acrescidos. Aos tais que são filhos queridos da pátria. Mais portugueses do que os restantes.

O senhor presidente da república não nos explica se é do seu conhecimento o sacrifício que fazem, desde sempre, os mineiros portugueses, imolando a saúde e, muitas vezes, a vida, a troco de ordenados ridículos. Nem se tem consciência dos sacrifícios que fazem os homens do mar, ceifados frequentemente pelos riscos e dureza da faina, na luta diária pelo sustento. O senhor presidente ignorará, certamente, que a maioria dos trabalhadores portugueses já há muito que se sacrifica num quadro de ordenados baixos e preços e impostos altos, incompatível com uma vida digna e própria de um país que se diz republicano e democrático – e, principalmente, civilizado. O senhor presidente desconhece, pela certa, que milhões de reformados e pensionistas portugueses já nada mais têm para sacrificar. Nem os jovens que se arrastam para receber uns trocos nos call-centers, vendendo a banha da cobra que as empresas financeiras ou de serviços querem impingir aos portugueses. O que pode, na imaginação do senhor presidente, sacrificar ainda mais um trabalhador que recebe o salário mínimo? E que outros sacrifícios se podem pedir aos mais de 700 mil desempregados?

Todos nós gostaríamos que o presidente da república nos esclarecesse, concretizando, sobre o tipo de sacrifícios de que fala. Ainda mais impostos? Ordenados ainda menores? Prestações sociais ainda mais reduzidas? Menos Saúde? Menos Educação? Menos Justiça? Trabalhar mais por menos dinheiro? Será deste tipo de sacrifícios que fala o senhor presidente da república?

E quando fala em união de todos os portugueses, o que quererá dizer, exactamente, o senhor presidente da república? Pôr no mesmo saco – o saco da união, ou da unidade nacional – o senhor Mexia, presidente da EDP, com os seus 8.500 euros por dia, e a dona Maria, com a sua reforma de 280 euros por mês? Unir, no mesmo esforço de salvação nacional, o senhor Armando Vara, que recebe do BCP mais de meio milhão de euros por ano (isto sem contar com o que escorreu de outros lados), com o senhor Sousa, auxiliar de serviços gerais, com um ordenado de 480 euros mensais? Juntar, num abraço patriótico, o senhor Mira Amaral, com os seus vários ordenados e reformas (a última das quais de 18.000 euros mensais, por apenas ano e meio de «trabalho» na Caixa Geral de Depósitos) com a jovem Vanessa, desempregada da indústria de cablagem, e cujo subsídio de desemprego já terminou? Juntar, no mesmo emocionado abraço, os sete administradores da Galp, que levaram para casa, em 2009, 4.148 milhões de euros, com sete operadores de call-center, que, todos juntos, entre ordenados, prémios e subsídios, somaram, nos mesmos 365 dias, 73.500 euros? (Ou seja: os sete administradores da Galp ganharam o equivalente a cerca de 40 mil operadores de call center).

É nesta base – e nestas circunstâncias – que o senhor presidente da república imagina possível a unidade nacional e pede um esforço a todos os portugueses? Repito: a quais deles? Aos filhos, ou aos enteados? E admitamos que o povo ia na conversa e, ajudado por um milagre qualquer – e com muito sangue, suor e lágrimas – recuperava a economia. Como se distribuiria, a partir daí, a riqueza criada e a abundância produzida? Inverter-se-ia a lógica actual, de tudo para meia dúzia de nababos, e nada para a plebe? Ou ficaria tudo na mesma, como suspeito? E enquanto estas questões não forem respondidas, só me resta dizer:

União de todos os portugueses? Mais esforços e mais sacrifícios? Não, obrigado! Faça o favor de ir bater a outra porta. Aqui, está tudo teso.

E, para além do mais, já estamos fartos de encher a pança a malandros.


(João Carlos Pereira)

Crónica lida nas “Provocações” da Rádio Baía em 14/04/2010.
Não deixe de ouvir em 98.7 Mhz e participar pelos telefones 212277046 ou 212277047 todas as quartas-feiras entre as 09H00 e as 10H00.

1 comentário:

Anónimo disse...

Disse o senhor dos “vampiros”:

- É normal que os gestores públicos que ultrapassem os objectivos inicialmente propostos, sejam recompensados por isso.

Digo eu:

- E qual é a dificuldade de ultrapassar os objectivos? Basta aumentar mais uns cêntimos a energia eléctrica que todos somos obrigados a pagar.