Afirmei, aqui há tempos, que Sócrates estava a ser cozinhado em fogo lento, e que apenas se aguentava no poder devido à conjuntura partidária. Num país civilizado, onde a Lei e a decência primassem sobre tudo o mais, Sócrates já teria sido demitido, caso não tivesse – como não teve – a dignidade de pedir a demissão, o que é vulgar fazer-se lá por fora quando alguma dúvida surge sob o comportamento ou o carácter de um político. Por muito menos do que as várias e sebentas trapalhadas do senhor engenheiro, demitiram-se, há meses, altos responsáveis políticos na Holanda e na Inglaterra, onde os valores básicos da decência e da dignidade não são, como aqui, totalmente letra morta.
Por cá, país de brandos e – vê-se agora – degenerados costumes, coloca-se o interesse da seita ou da capela acima dos interesses nacionais e, bem pior do que isso, chega-se ao cúmulo de ter a Justiça refém de quem, na altura, detiver o poder político. A recente farsa da comissão que pretendeu avaliar se Sócrates tinha – ou não – mentido à Assembleia da República sobre o caso TVI, é um bom exemplo disso. De posse das escutas que provam, de forma inabalável, que Sócrates mentiu e – bem pior – que esteve desde o início envolvido no processo de afastamento do Moura Guedes e na extinção do seu célebre Jornal de Sexta, a comissão viu-se impedida, pelo seu presidente, Mota Amaral, de as considerar para efeitos de conclusão final. Concluo eu, como concluirá quem ler as transcrições dessas escutas, que Sócrates não só mentiu, como – o que é mais grave – inspirou a golpada e dela sempre esteve a par. Não se provou, mas apenas porque se quis ignorar as provas que ali estavam. Sócrates atentou, como denunciaram os magistrados de Aveiro, contra o estado de direito. A esta abjecção chegámos. Uma vergonha que faz de nós o escárnio do mundo civilizado.
Perguntei certa vez, em carta dirigida ao senhor Presidente da República, porque insondável razão não tomava ele as medidas que a salvaguarda do bom-nome do país exigiam face aos escândalos que, de forma continuada, envolviam o primeiro-ministro. Talvez porque o bom-nome do país já não valesse um cêntimo furado, talvez porque, como sugeri, o PSD ainda estivesse envolvido na sua luta de barões e baronesas, talvez pelas duas coisas ao mesmo tempo, a verdade é que Belém, para além de alfinetar frequentemente Sócrates e o PS, deixou que o vírus do licenciosidade continuasse a infectar o país.
Hoje, à política e à Justiça ninguém dá crédito, somos uma sociedade desmoralizada e descrente, intimamente convencida que o crime compensa e que os criminosos, se forem de colarinho branco, têm as costas quentes. Por isso, os apelos à mobilização e empenhamento das energias dos cidadãos não passam de tiradas idiotas de quem não percebe – ou finge não perceber – que, a nível do poder, ninguém tem moral nem autoridade para pedir seja o que for aos portugueses.
Desacreditado, sem força política e moral, Sócrates, que já tinha há muito desistido de governar, agachou-se, depois, perante os ditames da senhora Merkel, não sendo agora mais do que uma patética marioneta nas mãos de Passos Coelho, a quem – como disse, e bem, Jerónimo de Sousa – faz o trabalho sujo, antes de, como bom estafeta, lhe passar o testemunho.
Entretanto, a política de saque às classes trabalhadoras continua a sua sinistra tarefa. Se os portugueses comuns (os que têm trabalho) já ganhavam, apenas, cerca de metade (55%) do que se ganha na zona Euro, muito pior vão ficar com o PEC e o seu cego e desvairado ataque aos salários e às pensões – ao nosso já fraco poder de compra. Mas curioso é verificar-se que a classe dirigente, onde se concubinam políticos e gestores num bacanal que, nos tempos bíblicos, poderia levar a um banho de enxofre lançado pela implacável divindade, não se faz rogada no que respeita a mordomias salariais. Desta orgia – designação melhor não me ocorre – resulta que os nossos brilhantes gestores recebem, em média, mais 32% do que os americanos, mais 22,5% do que os franceses, mais 55% do que os finlandeses e mais 56,5% do que os suecos. Um fartote.
E se é verdade que a nossa decadência – económica, social, política e moral – resulta das políticas de direita levadas a cabo durante décadas, não é menos verdade que, com Sócrates e o PS, o país se transformou num esgoto a céu aberto.
E agora, com a febre patrioteira arrefecida pela tristonha eliminação frente aos espanhóis, sem Fátima para adormecer os indígenas e com o fado sem voz que o cante, resta-nos assistir, resignados como sempre, à morte lenta do nosso próprio país. Por agora, às mãos de Sócrates. Depois, às mãos de outro qualquer carrasco.
(João Carlos Pereira)
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