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O presidente da República alheou-se das homenagens fúnebres a José Saramago. Fez bem. Foi coerente. Agiu de acordo com a sua pequenez cívica e cultural. Não apreciava Saramago, nem como homem, nem como escritor. Por razões ideológicas, necessariamente; por insuficiências culturais, com toda a certeza. No homem, não admitia que um José qualquer, vindo de família pobre, um maltrapilho que abriu os olhos para a vida como simples operário (o seu primeiro emprego foi serralheiro mecânico) acabasse por ser mundialmente reconhecido como um dos mais brilhantes faróis da literatura e, contudo, cometesse o desaforo de manter intacta a sua consciência de classe. Que não se aquietasse, que não se rendesse à maravilhosa sociedade de consumo e aos seus mecanismo de exploração e saque. Não suportava que esse Zé-Ninguém insistisse, com lucidez e coragem, em apontar o dedo à ordem económica e social desta sacrossanta sociedade que ele, Cavaco, defende e considera inquestionável.
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No escritor – e supondo que alguma vez tenha lido uma linha de Saramago – foi incapaz de vislumbrar-lhe o brilho, entender-lhe a ironia, compreender-lhe a estética, reconhecer-lhe a coragem de inovar e a ousadia de ter escolhido, entre a gente comum e anónima, os grandes heróis da sua obra. Cavaco riscou com o lápis azul da sua estreiteza cultural aquilo que não foi capaz de compreender ou que, preconceituosamente, tem como contrário à sua visão da sociedade. Cavaco não esteve lá, nem para ali era chamado, mesmo sendo a principal figura do Estado. Fez bem.
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Outros estiveram, e melhor fora que não tivessem estado, pois só o fizeram levados na onda de uma hipocrisia sem pudor, guiados pelo oportunismo mais abjecto: aquele que até dos mortos não hesita em se alimentar. Não foram homenagear: foram mostrar-se. Deixemo-los na sua sombria efemeridade, pois o que legarão à posteridade – se alguma coisa legarem – mais não será que um rol de malfeitorias contra o povo de que se nutrem.
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Saramago esteve sempre nos antípodas desta gente toda. O homem e o escritor não destoam, não conflituam, não se contradizem. Ele é o homem levantado do chão, que se afirma pela coragem de contestar a ordem estabelecida e as verdades – os dogmas – oficiais. Não pelo prazer fácil de contestar, mas pela necessidade vital de pôr tudo em causa, para que aqueles sobre quem elas pesam possam perceber – ou descobrir – se essa ordem e essas verdades não passarão, afinal, de pérfidos sofismas destinados a manter a maioria da humanidade deitada no chão, enquanto as elites financeiras, políticas e religiosas se regalam num banquete que já vem da penumbra dos tempos.
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Cada livro de Saramago é uma lição de humanidade. E, ao mesmo tempo, um desmontar de mitos, de falácias, de grandes e pequenas intrujices. Mas todos os livros de Saramago destilam, como mel saído dos favos de abelhas selvagens, um amor incondicional pelos espoliados desta vida, sejam eles os incógnitos construtores dos palácios e conventos da realeza e do clero, sejam os operários agrícolas sujeitos à mais infame exploração, sejam os obscuros mangas-de-alpaca das conservatórias poeirentas, sejam as vítimas de uma cegueira colectiva que as encarcera na mais inconcebível das trevas. Foi a nós todos, afinal, que Saramago escolheu para sermos os actores da sua admirável obra. E assim nos disse quanto nos amava e, principalmente, quanto ele era apenas mais um no meio de nós todos. Na mesma trincheira. Na mesma luta. E foi assim até morrer – tanto quanto podem morrer aqueles que, como disse Camões, por obras valorosas, se vão da lei da morte libertando.
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E que melhor do que as palavras de José Saramago para nos explicar, ao seu estilo, aquilo que tentei dizer?
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«No fundo, não invento nada, sou apenas alguém que se limita a levantar uma pedra e a pôr à vista o que está por baixo. Não é minha culpa se, de vez em quando, me saem monstros»
(João Carlos Pereira)
Crónica lida nas “Provocações” da Rádio Baía em 23/06/2010.
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5 comentários:
O problema é que o homem, era muito selectivo nas pedras que levantava. Mais, que fez ele de bom excepto ganhar um prémio concedido por uma academia, que deixa algo a desejar em termos literários, tendo em conta a lista daqueles que são premiados e aqueles que "felizmente" são esquecidos. Mas pronto isto é só uma provocação.
Quantas voltas no caixão deve ter dado por ir com a bandeira de Portugal por cima.
Então e esqueceu-se do da segunda figura da hierarquia nacional?
Caro João Carlos, pelo menos não foi hipócrita, não gostava não veio. Houve outros que fizeram de conta que sempre gostaram dele e pareceram par aa entrevista, dada entre sorrisos dentro do cemitério numa amena cavaqueira.
Morreu um grande escritor, que nem de perto nem longe era um grande homem. Pode idolatrar à vontade o escritor. Quanto ao homem deixe estar que podia e devia ser muito melhor.
Mas porque carga de água deveria a 1ª ou 2ª figura do Estado ir ao funeral de Saramago? Não se entende a polémica criada à volta deste assunto, até porque existiram outros cidadãos que não tiveram essa honraria depois de mortos e fizeram muito mais pelo país que o senhor que agora faleceu.
Se a figura não interessasse ao PCP para dela se aproveitar, provavelmente ninguém se lembraria da ausência do Cavaco ou do Gama.
Deixem-se de hipocrisias.
Respondendo aos anónimos
O que realmente irrita algumas pessoas é que Saramago era mesmo selectivo. Aliás, todos o somos. O pior é qunando o nosso espírito selectivo é do tipo egoísta, não solidário. Saramago tinha optado política e socialmente (o que se reflectiu nos conteúdos da sua escrita) por uma determinada classe social (a dos explorados), o que provoca azia em muito «boa» gente.
De Gama não falei, porque não quis sujar a escrita. Por pudor.
Quanto ao resto, denunciador de raivinhas rasteiras e estreiteza mental, apenos me provoca um sorriso de quase indiferença. E de alguma pena, porque a pobreza de um ser humano (especialmente a mental) é a pobreza de toda a humanidade.
João Carlos Pereira
Tem toda a razão João, tal como Saramago morto só Mário Soares o português mais importante vivo.
Pequenez mental teve sempre Saramago ao longa da sua vida, pequenez e selectividade. Morreu paz à sua alma.
Sabe João eu já cá estou há muitos anos.
Estava no Seixal quando foi transmitida pela televisão a notícia da morte de Sá Carneiro. O senhor onde estava?
Se estivesse no Seixal poderia ver e ouvir os foguetes (sim fogo de artíficio) que foram lançados para o ar pelos militantes do PC do Seixal.
Aí tenho a certeza que o senhor deve ter aplaudido tal como aplaudiu em conjunto com os seus colegas o desmantelamento da Mundet.
O senhor não tem qualquer "moral" para poder falar da pequenez mental dos outros.
Não pode nem deve ter esses tiques autoritários de se achar o supra sumo da grandiosidade mental, pois se o senhor pensasse mais um pouco nunca era simpatizante comunista.
Pedindo desculpa pela ousadia de trazer aqui um tema que nada tem a ver com o “post” agradeço a publicação, já que o senhor Teixeira (ou lá como ele se chama verdadeiramente) o censurou, depois de me chamar estúpido.
O estúpido passa a responder.
Se bem reparou, eu não parti para a ofensa nem lhe fiz ameaças, limitando-me a colocar-lhe uma comparação, que embora não seja exactamente a mesma, passa também pelos favores políticos de quem tem o poder.
Para mim o senhor Paulo Cunha ser nomeado pelo Governo ou o senhor assessor ser nomeado pela Câmara é exactamente a mesma coisa.
Agora quanto às outras questões, não queira tapar o sol com a peneira, já que o tal estudo já tinha sido encomendado muito antes da adjudicação, tendo servido para fins eleitorais. E não venha com a treta de ter que provar porque senão é calúnia punível por Lei; todos sabemos como se fazem as trafulhices de forma que pareça e seja legal, tal como faz o senhor Sócrates.
Mas o que você não pode esconder é aquilo que está no site http://transparencia-pt.org/ onde qualquer um tem a possibilidade de verificar os ajustes directos e que de entre outros, destaco alguns da Câmara Municipal do Seixal em 2010 e só até Abril:
Entre a Sulbus e a Travelbus (que na prática são a mesma coisa) já se gastaram 482.150,00 € para transportes, como se não existissem viaturas Camarárias;
Para papel de fotocópias, toner e tambores(?) coube à firma J.A.V.Correia a quantia de 95.847,99 €;
As Ferragens Sul Tejo também vendem papel de mãos e papel higiénico, tendo fornecido esse material pela quantia de 110.775,00 €.
É de louvar estas aquisições a empresas do Concelho (uma até é de Almada) mas não seria mais lógico e económico comprar directamente a quem produz estes materiais em vez de utilizar intermediários?
É certo e sabido que você vai tentar rebater tudo isto, chamando-me estúpido e outras coisas mais que lhe ocorram, mas por muito que se esforce não conseguirá justificar as asneiras (para não lhe chamar troca de favores) que se têm cometido ao longo dos anos na Câmara Municipal que tanto defende.
Tenha a humildade de dar uma volta pelo site: http://transparencia-pt.org e reconhecer que algo está mal; olhe que pode chegar o dia em que o seu próprio ordenado esteja em causa.
E quem avisa…
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