quarta-feira, 29 de setembro de 2010

OS DOIS GAROTOS


Olho para Sócrates e Passos Coelho, e sinto uma náusea profunda. É a isto – a estes dois fedelhos – que estamos entregues? São estes dois palradores encartados, meros chupistas de uma democracia viciada, que vão decidir o nosso futuro? São estes dois funâmbulos da política que vão determinar a minha vida – a vida de todos nós? São estes dois produtos do sistema capitalista, sistema devasso e em permanente estertor – e que só sobrevive à custa do nosso sangue, do nosso suor e das nossas lágrimas – que têm as receitas para devolver aos portugueses o que lhes andam a roubar há anos? São os dois partidos a que pertencem – e que há décadas estão, em alternância, no poder – que podem agora, sozinhos ou de braço dado, salvar a Pátria que, pelo que se vê, têm vindo a destruir? Não me façam rir!

Olho para Sócrates e pergunto em que país este fulano podia ser primeiro-ministro ou, sequer, presidente da mais insignificante junta de freguesia? Concluo que em nenhum país digno desse nome, salvo nesta espécie de roça, ou favela, onde os brandos costumes dos indígenas, a par da sua proverbial falta de exigência e de coluna vertebral, tudo admitem. Só aqui pode governar um pinoca aperaltado, que trepou na vida política à conta do parlapié e de habilidades várias, engenheiro feito à pressa, sempre aos pontapés na verdade e na decência, um político que representa o que a política pode ter de mais sórdido e de perverso. Depois de quatro anos de maioria absoluta, e um ano depois de voltar a ganhar as eleições, o que Sócrates tem para oferecer aos portugueses é um país com a maior dívida pública de sempre, o maior endividamento externo de sempre, taxas de juro sufocantes, a maior carga fiscal de sempre, o maior desemprego de sempre.

Olho para Passos Coelho e começo a vê-lo como um Sócrates a quem falta a tarimba, seguidor dos mesmos credos neoliberais, talvez menos disposto à aldrabice rasteira do seu émulo, mas também todo ele discurso e prosápia. Mas – diga-se a verdade – com um diploma de habilitações académicas sobre o qual não recaem quaisquer suspeitas. Um diploma a sério. Verdadeiro.

Olho para estes dois garotos e vejo um deles – Sócrates – à espera que o outro lhe dê a mão que precisa para poder sangrar melhor a vítima do costume. Para ter alguém com quem repartir as culpas. E vejo o outro – Passos Coelho – danadinho por que seja Sócrates a dar o golpe, mas não querendo ser tido nem achado na matança que aí vem.

Como pano de fundo, a crise; o desequilíbrio das contas públicas; a insolvência; a bancarrota; o FMI. Enfim, os papões do costume. Segundo eles, tudo se vai resolver com o próximo orçamento. O PS quer aumentar ainda mais os impostos. O PSD diz que não é preciso: que se corte apenas na despesa. Nenhum deles, no entanto, põe o dedo na ferida. Se o país está tão mal, quem o pôs assim? Não foram as políticas que, há muitos anos, o PS, o PSD e o prestimoso CDS/PP levaram a efeito – ora agora governo eu, ora agora governas tu – e não se cansam de apregoar como as melhores do mundo e as únicas possíveis? É, então, com as mesmas políticas – e com as mesmas receitas para resolver as eternas crises – que a coisa agora vai lá?

Nenhum deles diz, porque as respectivas seitas vivem disso mesmo, que o aparelho do estado está cheio de parasitas – de chulos, como lhes chamam os mais soltos de língua – de clientelas partidárias, a sorver milhões através dos institutos para isto e para aquilo, das fundações para os mais inacreditáveis objectivos, ou para objectivos que, no âmbito dos ministérios, se resolveriam ao nível de direcção-geral ou secretaria de estado, o que até seria uma excelente ideia, já que apregoam que há funcionários públicos a mais. É através deste nauseabundo esquema de compadrio e concessão de mordomias que o Bloco Central (PS, PSD e, em menos quantidade, o CDS/PP) dão tacho aos seus rapazes e raparigas, já para não falarmos na chusma de assessores, adjuntos, secretários, motoristas e quejandos, que pululam em tudo o que é entidade pública, consumindo o que falta para investir na Saúde, no Ensino ou na Segurança Social. Congelam-se os salários de quem trabalha, ameaça-se saquear o subsídio de Natal, corta-se nos subsídios sociais de quem mais precisa, aumenta-se o preço dos medicamentos, não respeitando, sequer, aos idosos e carenciados, mas abrem-se os cofres públicos para sustentar milhares de calaceiros, cujo único mérito é terem o cartão partidário apropriado.

Fala-se, então, em aumentar os impostos e cortar nas prestações sociais. E em congelar – ou baixar – os salários. Mas não se fala em acabar com a imoralidade que é, à sombra dos partidos, enxamear o Estado com organismos que apenas servem para dar tacho a um enorme bando de inúteis. E menos se fala em produzir mais cereais, mais carne, mais leite, em incrementar as pescas, em desenvolver a actividade industrial, nomeadamente as indústrias extractiva, siderúrgica e metalomecânica. Mas aí já sabemos porquê: Bruxelas – a nossa querida Europa – não deixa.

É por isso que olho para Sócrates e Passos Coelho e sinto nojo. Nojo e vergonha por pertencer a um povo que se deixa filar por gente deste calibre. São dois garotos, é certo. Mas são dois garotos perigosos.

Muito perigosos.




(João Carlos Pereira)


Crónica lida nas “Provocações” da Rádio Baía em 29/09/2010.
Não deixe de ouvir em 98.7 Mhz e participar pelos telefones 212277046 ou 212277047 todas as quartas-feiras entre as 09H00 e as 10H00.

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

CHEIRA-ME A ESTURRO


Cheira-me a esturro. O troço do TGV, entre o Poceirão e Lisboa, que era viável no início do ano, deixou agora de o ser. A fazer fé na caterva socialista, isso deve-se à «significativa e progressiva degradação da conjuntura económica e financeira» de Portugal. Mas a significativa e progressiva degradação da conjuntura económica e financeira do país já era coisa sabida no início do ano. Não havia ninguém que o não dissesse – com excepção do governo socialista, liderado por um alegado engenheiro, que teimava em garantir que o quadro não era como o pintavam. E se já era espantoso o facto de o primeiro-ministro não saber aquilo que todo o país sabia, espanto maior é o mesmo governo garantir que, daqui a seis meses, o concurso agora anulado, devido à tal significativa e progressiva degradação da conjuntura económica e financeira de Portugal, vai ser reaberto. Isto é: daqui a uns mesitos, devido a qualquer poção mágica digna das histórias de Asterix, a conjuntura económica e financeira já não estará degradada. O que, naturalmente, significa que as medidas de austeridade que estão previstas para o Orçamento Geral do Estado, já não serão necessárias. Aliás, como desnecessária é a sangria feita pelo PEC, pois a crise, pelos vistos, como a chuva de Verão, vai ser coisa de pouca dura. Passageira. Face a isto, Passos Coelho já não tem dama pela qual se possa bater. Mesmo que seja para português ver.

Outra coisa que me faz pensar que aqui há gato, é que para o outro troço do TGV, entre o Poceirão e Caia, não há degradação da conjuntura económica e financeira. Esse avança. Não! Aqui há qualquer coisa que não bate certo. Diz-se por aí que o problema é outro. Que o problema tem o nome de Mota-Engil, empresa que ficou em segundo lugar no concurso agora anulado, atrás dum consórcio liderado pelos espanhóis da FCC, cuja proposta era 500 milhões de euros mais baixa que a da empresa onde pontifica, como presidente-executivo, o sublime socialista Jorge Coelho.

Aqui chegados, é bom recordar que Jorge Coelho foi ministro do Equipamento Social, tendo sido seu secretário de Estado das Obras Públicas um senhor chamado Luís Parreirão, que é, por desgraçado acaso, um dos actuais administradores da Mota-Engil, onde já estava quando Coelho entrou. Claro que nada disto reflecte qualquer promiscuidade entre o poder económico e o poder político, são mundos totalmente à parte, são coisas que acontecem por insondáveis desígnios do destino, nada mais que meras – e infelizes – coincidências. Mas que os cérebros maldosos e as línguas afiadas logo aproveitam para remoer as suspeitas do costume…

Para mim, que não ando cá há dois dias, esta manobra visa dois objectivos: O primeiro, é mesmo dar à Mota-Engil uma segunda oportunidade. Os camaradas, como os amigos, são para as ocasiões. O segundo, é assustar os indígenas. Estão ver como a coisa está realmente preta? Até o TGV, que é uma das meninas dos olhos do senhor engenheiro, está a sofrer com a crise! É porque isto está mesmo mau. Daí, que lá temos que ir aos bolsos da rapaziada. Com muita pena, mas não há outro remédio. Ou isso, ou o caos, a bancarrota, o dilúvio, o próprio inferno.

E a rapaziada, que acredita em tudo o que lhe dizem – e que ainda não percebeu que a crise é obra dos donos do dinheiro, com a conivência activa dos políticos – encolhe os ombros e dá a carteira aos assaltantes.

Sem um pio.



(João Carlos Pereira)

Crónica lida nas “Provocações” da Rádio Baía em 22/09/2010.
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quarta-feira, 15 de setembro de 2010

RETRATO DE UM PAÍS PUTREFACTO


Mais de 600 mil desempregados, segundo os números oficiais, sempre simpáticos e generosos. Mais de 23 mil trabalhadores com salários em atraso. Mais de 2 milhões de pobres, o que equivale a 20% da população portuguesa. Um milhão e meio de trabalhadores precários, sendo que 100 mil deles trabalham para o Estado. Ordenados baixíssimos, atirando o salário médio português para pouco mais dos 750 euros. Ordenado mínimo ridículo e impróprio de um país civilizado. Falências em série. Prestações sociais miseráveis e sob constante ofensiva. E um pequeno número de gente muito rica. Cada vez mais rica.

Campos ao abandono e, consequentemente, uma agricultura raquítica e incapaz de responder minimamente às necessidades do país. Mas muito propícios aos fogos. A pesca reduzida à sua expressão mais simples, por força da sujeição aos interesses estrangeiros. Uma pecuária estrangulada por iguais razões – e por falta de políticas que estimulem a produção. Por isso, se importa a maior parte de tudo o que comemos. A produção siderúrgica entregue às conveniências estratégicas dos grandes produtores internacionais. Uma actividade industrial sem capacidade para ser inovadora e competitiva, baseada em baixos salários e orientada apenas para o enriquecimento rápido de uma classe empresarial desprovida da ideia do que seja o interesse nacional. Ou de uma coisa chamada decência.

Um sector financeiro que se dá ao luxo de arrecadar, só de lucros, muitos milhões de euros por dia. Não, não é engano: lucros de milhões de euros diários. Só os quatro maiores bancos portugueses (BES, BCP, BPI e Santander Totta), no primeiro semestre de 2010, lucraram, por cada período de 24 horas, 4,7 milhões de euros. E que beneficia, ainda por cima, de uma política fiscal que lhe permite pagar menos de IRC que todas as outras empresas.

A Justiça refém, ao mais alto nível, do poder político, o que transforma a sua aplicação numa impostura, com a consequente desmoralização da sociedade e a vulgarização da certeza que o crime compensa. E – bem pior do que isso – sendo num perigosíssimo estímulo para todo o tipo de criminalidade.

A Educação entregue à vertigem das estatísticas, fomentando a ilusão do sucesso, em vez de se orientar pelo princípio da criação de competências.

O Serviço Nacional de Saúde à mercê dos balancetes do ministro das Finanças e, principalmente, do apetite dos privados, prontos para abrir a sua banca onde o governo lhes fez o favor de fechar ou reduzir os serviços públicos.

Uma classe política preocupada, sobretudo, com os seus interesses de casta, quase toda ela vendida ao poder económico. E descarada e impunemente corrupta. O exercício de cargos públicos mais não é que um meio para alcançar vantagens pessoais e da respectiva seita, seja através de legislação conveniente e oportunamente ajustada a esse objectivo, seja pelo desavergonhado jogo de influências que a detenção do poder permite. Poder que, deste modo – e sem rebuço – é usado, a todos os níveis do aparelho do Estado, para a obtenção de regalias pessoais e de capelinha, de modo a que a classe dirigente usufrua de benefícios pecuniários e sociais que são negados à generalidade do povo. Mas que todo o povo é obrigado a pagar. A democracia – esta democracia – estrangula o povo eleitor, mas sustenta, magnanimamente, os democratas eleitos e respectivos séquitos. Para o resto da vida, note-se.

Com a política transformada num meio de promoção económica e social dos políticos e de uma chusma de parasitas e oportunistas de toda a espécie que à volta deles gravita, incólumes aos gravíssimos problemas que afectam a generalidade da população, não é de estranhar que os portugueses tenham desistido de a considerar uma actividade nobre, destinada a resolver esses problemas – que são, afinal, os problemas nacionais. Como não é de estranhar que muitos portugueses já pensem que as coisas são mesmo assim, que parvos são os que não sabem aproveitar as circunstâncias, e que o mesmo fariam, se fossem eles a ocupar o poleiro. A este descalabro – de valores e de princípios éticos – chegámos.

E, como pano de fundo, um poder económico voraz e por natureza desumano, a cujos ditames o poder político obedece, como o cão fiel obedece à voz do dono. Concentrar a riqueza nas mãos de uns poucos; pôr os outros a pagar essa enorme factura, é esse o papel de cada governo. E melhor desempenhado quando é interpretado por um partido que se diz de esquerda, como gosta de se auto-proclamar o Partido Socialista.

Este é o retrato, a corpo inteiro, do Portugal dos nossos dias: um país putrefacto.

Física e moralmente putrefacto.




(João Carlos Pereira)

Crónica lida nas “Provocações” da Rádio Baía em 15/09/2010.
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quarta-feira, 8 de setembro de 2010

ENTÃO, E OS OUTROS?


Acabou o longo prólogo do processo Casa Pia. Vamos entrar, agora, certamente que por muitos e largos anos, no romance propriamente dito. E, a julgar pelo que já vimos e ouvimos, a coisa promete. Para já, e de tudo o que se passou durante estes últimos oito anos, ficaram algumas certezas.


- A primeira, é que existiam na nossa sociedade – e, seguramente, continuam a existir – muitos cavalheiros cuja área libidinosa lhes dá para se satisfazerem através de relações sexuais com crianças e jovens, preferencialmente do mesmo sexo. Para além de homossexuais – coisa que não pensam ser – são pedófilos.


- A segunda, é que a Casa Pia era, através de um seu empregado – e antigo aluno – a fornecedora de corpos jovens e baratos.


- A terceira, é que um diversificado grupo de indivíduos, bem instalados na sociedade, se dedicou, ao longo de muitos anos, a práticas sexuais com dezenas – eventualmente, centenas – desses jovens, a quem pagavam para o efeito.


- A quarta, é que tal perversidade era assumida como uma coisa banal, um prazer que o dinheiro comprava, como comprava qualquer outro luxo. Extravagâncias de Césares dos nossos tempos.


- A quinta, é que alguns desses sujeitos foram chamados a prestar contas à justiça.


- A sexta, é que outros desses indivíduos – uns por razões sabidas, outros, por razões ainda por saber – se livraram do banco dos réus. (É um dos agora condenados – Carlos Cruz – que confirma isso mesmo, algo, aliás, que o país há muito já percebera).


- E, finalmente, a sétima: vão seguir-se, a par dos expedientes legais tendentes a revogar as condenações agora aplicadas, os expedientes da mais variada ordem, levando a que a necessidade de proteger os pedófilos que agora conseguiram escapar às malhas da lei, venha a provocar que tudo dê em águas de bacalhau. Carlos Cruz já teve o cuidado de enviar, publicamente, os recados necessários às orelhas convenientes, ao perguntar com todas as letras: Então, e os outros? O que soou assim: ou me livram desta, ou abro o bico.


Para além destas certezas, uma esperança: que a Justiça consiga, através deste tremendo processo, provar aos portugueses que existe para garantir o primado da lei sobre a arbitrariedade, a violência e a devassidão, que não há uma Justiça para os pobres e outra para os ricos – ou para os que têm as costas quentes por qualquer partido – enfim, que não está refém do poder político e que não se deixa intimidar nem corromper.


Que nos dê, em suma, um motivo para acreditar que nem tudo está perdido. Que puna exemplarmente os pedófilos apanhados, e que apanhe os que andam por aí ainda à solta.


Os tais outros, para citar Carlos Cruz.



(João Carlos Pereira)


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Crónica lida nas “Provocações” da Rádio Baía em 08/09/2010.

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quarta-feira, 1 de setembro de 2010

O SENHOR PEREIRA, O SENHOR SILVA E O SENHOR SOUSA



Mal um dos nossos ouvintes soube que eu tinha regressado de férias, enviou-me o seguinte e-mail:

«Ainda bem que voltaste. O país precisa de ti agora, mais do que nunca, porque nos vimos livres do Sócrates e do seu miserável governo. Lá, onde estiveste, não deves ter ouvido notícias e, por isso, desconheces que aqueles processos judiciais, que já duravam há largos anos chegaram ao fim e que os réus foram todos condenados a pesadas penas de prisão. Acabaram as taxas moderadoras na saúde e os hospitais estão a funcionar em pleno, já não existindo listas de espera. Os bancos passaram a pagar os mesmos impostos que são exigidos às outras empresas e estão proibidos de cobrar aquelas taxas de serviços que não pedimos, nem necessitamos. Foram abolidos definitivamente os recibos verdes na função pública e os trabalhadores passaram todos para os quadros, com aumentos médios muito acima da inflação que se dizia existir. O desemprego caiu drasticamente e todos os dias são criadas novas empresas de tipo familiar, que estão a colocar a nossa economia muito à frente dos restantes países europeus. Este verão, praticamente não houve incêndios, porque as matas são limpas e os poucos pirómanos que ainda existem são imediatamente presos e tão cedo não se metem noutra. Os combustíveis e o IVA desceram e já pagamos o mesmo que os espanhóis. Há muitas outras novidades que tu desconheces e por isso almoçamos um dia destes, para ficares ao corrente do que se passou por cá. Até lá um abraço e anima-te, que isto agora é que vai "avante"».


Sorri-me do humor negro do meu amigo. Continuando a ler os e-mails, destacou-se logo outro, este de uma ouvinte nossa, também regressada agora de férias. Entre outras coisas, dizia-me:

«Esta viagem que fiz, deu, mais uma vez, para perceber que somos, efectivamente, uma vergonha para a Europa. Como te escrevi há uns tempos, não me importa nada em saber se todos os países que visitei são governados por políticas de esquerda ou de direita, estou-me nas tintas para a nomenclatura, a única coisa que sei, porque vi e testemunhei, é que aquela gente vive com extrema qualidade de vida e em liberdade. Percorri, com algum detalhe, a França, a Suiça, principalmente a Áustria, a Alemanha e a Itália e parecia que estava noutro planeta, a anos luz deste terreno plantado à beira-mar, bonitinho, que amamos porque aqui temos enterrada a nossa vida, mas totalmente inabitável, a todos os níveis».


Ai de mim, que passei as férias cá dentro, deitando contas à vida, e incapaz de me alhear da nossa triste realidade. Estive grande parte do tempo a respirar o fumo dos incêndios, ou a vê-los lavrar, sem precisar de assistir aos noticiários da televisão. Ouvi as queixas dos bombeiros e de elementos da GNR, todas coincidentes em dois pontos: falta de meios e incúria do governo, que não sabe defender a nossa riqueza natural, deixando a fauna e a flora, especialmente a que está à sua guarda, em áreas protegidas, completamente ao abandono.


Ouvi as patacoadas indecentes do senhor Pereira, ministro da Administração Interna, que não se cansava de repetir que estava a arder menos que no ano de 2003. Porquê 2003, senhor ministro? Não há, no seu registo mental, o ano de 2002? Nem de 2001? Ou os anos de 2004 a 2009? Apagou esses anos das estatísticas? Porque não lhe interessou citá-los? E porque não nos explicou, senhor Pereira, porque não se desbloqueia a verba para entregar aos bombeiros as 35 viaturas que reconhecidamente estão em falta? Será porque se gastou a massinha toda com os 962 carros de luxo para a rapaziada dos ministérios? E que explicação tem V. Exa., bem como os dois optimistas (o senhor Silva e o senhor Sousa) que interromperam férias para se inteirarem da situação e, perante ela, se sentiram satisfeitos e tranquilos, quando ficámos a saber que de toda a área ardida no espaço comunitário – na Europa – desde o dia 1 de Janeiro, 70% ardeu neste cantinho chamado Portugal? Como explicam vossas sumidades que nesta meia dúzia de quilómetros quadrados tenha ardido mais do dobro que na Europa toda? Pronto, mas ardeu menos que em 2003, não é senhor Pereira?

O país continua a arder. Em todos os sentidos. Arde a floresta, arderam 1.836 empresas em seis meses e ardem 224 empregos por dia. Ardem os nossos bolsos com os impostos e os aumentos de tudo o que somos obrigados a comprar. Arde o nosso futuro às mãos de políticos trafulhas, incompetentes e desavergonhados, mentirosos e trapaceiros.

Entretanto, o senhor Silva vai recandidatar-se; o senhor Sousa aguarda que o ponham com dono, para ir brincar aos engenheiros ali para as bandas da Covilhã, onde já tem obra feita; e o senhor Pereira, coitado, regressou ao ano de 2003, que era o único ano de que se lembrava…

(João Carlos Pereira)


Crónica lida nas “Provocações” da Rádio Baía em 01/09/2010.
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