quarta-feira, 15 de setembro de 2010

RETRATO DE UM PAÍS PUTREFACTO


Mais de 600 mil desempregados, segundo os números oficiais, sempre simpáticos e generosos. Mais de 23 mil trabalhadores com salários em atraso. Mais de 2 milhões de pobres, o que equivale a 20% da população portuguesa. Um milhão e meio de trabalhadores precários, sendo que 100 mil deles trabalham para o Estado. Ordenados baixíssimos, atirando o salário médio português para pouco mais dos 750 euros. Ordenado mínimo ridículo e impróprio de um país civilizado. Falências em série. Prestações sociais miseráveis e sob constante ofensiva. E um pequeno número de gente muito rica. Cada vez mais rica.

Campos ao abandono e, consequentemente, uma agricultura raquítica e incapaz de responder minimamente às necessidades do país. Mas muito propícios aos fogos. A pesca reduzida à sua expressão mais simples, por força da sujeição aos interesses estrangeiros. Uma pecuária estrangulada por iguais razões – e por falta de políticas que estimulem a produção. Por isso, se importa a maior parte de tudo o que comemos. A produção siderúrgica entregue às conveniências estratégicas dos grandes produtores internacionais. Uma actividade industrial sem capacidade para ser inovadora e competitiva, baseada em baixos salários e orientada apenas para o enriquecimento rápido de uma classe empresarial desprovida da ideia do que seja o interesse nacional. Ou de uma coisa chamada decência.

Um sector financeiro que se dá ao luxo de arrecadar, só de lucros, muitos milhões de euros por dia. Não, não é engano: lucros de milhões de euros diários. Só os quatro maiores bancos portugueses (BES, BCP, BPI e Santander Totta), no primeiro semestre de 2010, lucraram, por cada período de 24 horas, 4,7 milhões de euros. E que beneficia, ainda por cima, de uma política fiscal que lhe permite pagar menos de IRC que todas as outras empresas.

A Justiça refém, ao mais alto nível, do poder político, o que transforma a sua aplicação numa impostura, com a consequente desmoralização da sociedade e a vulgarização da certeza que o crime compensa. E – bem pior do que isso – sendo num perigosíssimo estímulo para todo o tipo de criminalidade.

A Educação entregue à vertigem das estatísticas, fomentando a ilusão do sucesso, em vez de se orientar pelo princípio da criação de competências.

O Serviço Nacional de Saúde à mercê dos balancetes do ministro das Finanças e, principalmente, do apetite dos privados, prontos para abrir a sua banca onde o governo lhes fez o favor de fechar ou reduzir os serviços públicos.

Uma classe política preocupada, sobretudo, com os seus interesses de casta, quase toda ela vendida ao poder económico. E descarada e impunemente corrupta. O exercício de cargos públicos mais não é que um meio para alcançar vantagens pessoais e da respectiva seita, seja através de legislação conveniente e oportunamente ajustada a esse objectivo, seja pelo desavergonhado jogo de influências que a detenção do poder permite. Poder que, deste modo – e sem rebuço – é usado, a todos os níveis do aparelho do Estado, para a obtenção de regalias pessoais e de capelinha, de modo a que a classe dirigente usufrua de benefícios pecuniários e sociais que são negados à generalidade do povo. Mas que todo o povo é obrigado a pagar. A democracia – esta democracia – estrangula o povo eleitor, mas sustenta, magnanimamente, os democratas eleitos e respectivos séquitos. Para o resto da vida, note-se.

Com a política transformada num meio de promoção económica e social dos políticos e de uma chusma de parasitas e oportunistas de toda a espécie que à volta deles gravita, incólumes aos gravíssimos problemas que afectam a generalidade da população, não é de estranhar que os portugueses tenham desistido de a considerar uma actividade nobre, destinada a resolver esses problemas – que são, afinal, os problemas nacionais. Como não é de estranhar que muitos portugueses já pensem que as coisas são mesmo assim, que parvos são os que não sabem aproveitar as circunstâncias, e que o mesmo fariam, se fossem eles a ocupar o poleiro. A este descalabro – de valores e de princípios éticos – chegámos.

E, como pano de fundo, um poder económico voraz e por natureza desumano, a cujos ditames o poder político obedece, como o cão fiel obedece à voz do dono. Concentrar a riqueza nas mãos de uns poucos; pôr os outros a pagar essa enorme factura, é esse o papel de cada governo. E melhor desempenhado quando é interpretado por um partido que se diz de esquerda, como gosta de se auto-proclamar o Partido Socialista.

Este é o retrato, a corpo inteiro, do Portugal dos nossos dias: um país putrefacto.

Física e moralmente putrefacto.




(João Carlos Pereira)

Crónica lida nas “Provocações” da Rádio Baía em 15/09/2010.
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