Não podemos dar nome à coisa. Nenhum nome lhe assenta bem. Ou melhor: qualquer nome, por muito depreciativo que seja, pode acabar por ser elogioso. Esta coisa, portanto, não pode ter nome, porque ainda não foi inventado aquele que a pode definir com rigor. Dela sabemos que está identificada como portugal, que fica no extremo ocidental da europa, entalada na península ibérica entre o oceano atlântico e a espanha. Há quem lhe chame um país, ou um estado europeu, mas isso resulta apenas da tradição, do hábito. Já o terá sido, de facto, por alguns períodos de tempo, mas sempre de forma episódica, conjuntural, fugaz. E nunca o foi tão pouco, como hoje. Nem no tempo da ocupação filipina.
Desta coisa sabemos hoje que não é um estado soberano – um país independente, se quisermos – porque é governado do exterior, forçado a obedecer a desígnios políticos, económicos e financeiros definidos na estranja e não sufragados pelos indígenas. E que os indígenas, na sua maioria, em nada se incomodam com o facto. São abúlicos, tacanhos (por isso, facilmente manobráveis), desleixados, resignados e fatalistas.
Resulta daqui que outros indígenas, menos estreitos de espírito e mais largos de afoiteza e ganância, conseguem insinuar-se entre esta amálgama de gentios conformados e obtusos, deles se tornando pastores, tendo presente que o fazem em nome de recônditos senhores, aqueles que são, de facto, os donos disto tudo: do chão, dos corpos e das almas dos nativos.
Se a coisa não tem nome que lhe sirva, já os pastores têm vários. Deixemos de lado os que implicam, salpicando, familiares mais próximos, tais como as progenitoras ou as consortes, e vamos aos seus nomes próprios: soares, cavacos, guterres, sampaios, barrosos, santanas, sócrates ou coelhos. Todos eles conduziram – ou conduzem – o rebanho. E todos eles o deixaram mais pequeno, mais magro, mais definhado e mais doente do que ao recebê-lo.
Há dias, entre sons de clarins e trombetas triunfais, o mais recente pastor da carneirada – coelho, de seu nome – afirmou que o resgate português está a ser um sucesso. Dias depois, veio a explicação para a fantástica declaração: acabara de ser publicado um estudo onde se constatava que a coisa (portugal, no dizer deles) sofrera a maior quebra de salários da ocde. O salário médio real em portugal caíra 6,7% em 2011, a quebra mais acentuada no conjunto da ocde, dizia a organização. Mais do que na outra coisa, na chamada grécia. Sucesso, chama a isto o pastor coelho.
Em consequência, o rebanho nunca esteve tão magro, tão faminto, tão esfrangalhado, tão doente, tão miserável. E é precisamente nessa altura que salta um ajudante do pastor, até há pouco um indefectível defensor dos carneiros mais idosos e mais pobres, um tal portas, a garantir que o corte da ração feita aos carneiros do sector público não deve ser extensível aos carneiros do sector privado. Porquê? Porque, diz ele, «sendo o problema de portugal o défice do estado, é «injusto» querer que o sector privado tenha a mesma responsabilidade que o público de ajudar o país».
Se um carneiro pode criticar um pastor – mesmo sendo um que de acólito nunca passará – sempre lhe digo que vossemecê, ó portas, é um tonto chapado, caso não seja um velhaco da pior espécie. É que o défice do estado não é da responsabilidade de nenhum carneiro – nem do público, nem do privado.
É da quadrilha de pastores a que você pertence. E dos vossos patrões, os investidores.
(João Carlos Pereira)
Crónica lida nas “Provocações” da Rádio Baía em 25/07/2012.
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