Que me desculpem Agostinho da Silva,
Saramago, Eduardo Lourenço, Maria Lamas, Vieira da Silva, Álvaro Cunhal, Miguel
Torga, Almada Negreiros, José Régio, Sophia de Mello Breyner, Egas Moniz (o
médico), Amália, Eugénio de Andrade, Rómulo
de Carvalho, Vasco Gonçalves, Bento de Jesus Caraça, Luís de Freitas Branco,
Tomás Alcaide, Vianna da Motta, Cutileiro, Pomar, Cargaleiro, Jorge de Sena e
tantos outros que da lei da
morte se foram libertando (isto
para trazer Camões ao caso) por via da sua obra, do seu carácter, do seu
intelecto, da sua arte, do seus méritos e da sua imensa qualidade enquanto
seres humanos capazes de acrescentar deslumbramento, qualidade, valor,
utilidade e grandeza à vida de todos nós. Que me desculpem, também, os portugueses
anónimos que todos os dias aduzem de forma humilde e, principalmente, de forma
honrada, qualquer coisa de útil ao país que os viu nascer. Desculpem, mas se há
alguém que, nos dias que correm, pode ser considerado o português padrão, na
justa medida que representa o carácter e o temperamento do português comum,
esse português chama-se Relvas. Isso mesmo: o Miguel. Melhor ainda: o senhor
doutor Miguel Relvas. Ele explica, também, o Portugal dos nossos dias.
Meão de altura e de intelecto, contudo
espertalhaço, meio fadista, pimpão, lampeiro, oportunista, ganancioso,
arrogante, vaidoso, imoral – ou, no mínimo, de moral duvidosa – e matreiro. Ou
seja: alguém nada recomendável. Miguel Relvas – o senhor doutor Miguel Relvas –
é, acima de tudo, o tipo de criatura que melhor descreve e ilustra o típico
político lusitano. Ao atestar tão decisiva comparação sujeito-me, como é óbvio,
ao repúdio dos que, achando que o senhor doutor Miguel Relvas, sendo isso tudo,
não é paradigma do português comum nem da sua distinta classe política, mas uma
singular excrescência. Como Sócrates, noutro estilo, também o terá sido.
Não posso discordar mais dessa visão. A
nossa classe política, principalmente a que medrou depois do 25 de Abril, está
tão cheia de Relvas que nada mais é que um imenso relvado. Gente que se arrimou
à política para subir na vida, para ser alguém, para enriquecer depressa e
muito, para se pavonear nos patamares e nas varandas do poder. E para no poder
se manter – e à respectiva seita – a qualquer custo. Gente que sabe que pode
fazer tudo menos pôr em causa o capital financeiro e as suas receitas
económicas, já que é da babugem dele que vieram. E para lá voltarão, se
souberem comportar-se. Gente que se deslumbrou na vertigem do mando, do poder,
e que soube criar um ninho de promiscuidades lodosas onde se deita a mão a tudo
o que se ambiciona, seja uma licenciatura fantasma, sejam luvas e comissões por
benesses concedidas, sejam leis à medida dos muitos Eldorados estabelecidos
para abrigar as várias quadrilhas que da democracia se alimentam. Gente que se
esconde em lojas, sacristias, confessionários e noutros reposteiros do género,
partindo e repartindo os bens que a poderosa besta que os elege ainda produz.
Chamam-se Relvas, Sócrates, Varas, Loureiros (tanto os Valentins, como os
Dias), Amarais, Felgueiras, Isaltinos, Limas, Ricardos Rodrigues, Melancias,
Monterrosos, Abílios Curtos, Oliveiras e Costas. E até Soares, Cavacos e outros
césares não se livraram de salpicos que em nada abonam o estatuto que gostam de
apregoar.
Mas porque garanto ainda que o Relvas – o
doutor Relvas – também representa o português comum? Porque não tenho a mínima
dúvida que muito mais de metade do eleitorado – talvez uns setenta por cento –
daria o seu voto a este «doutor» e ao outro «engenheiro», caso um dia eles
voltassem a pedir-lho.
Quero eu dizer que a maioria dos
portugueses ou é como Relvas e Sócrates, ou gostaria muito de o ser.
(João
Carlos Pereira)
Crónica lida nas “Provocações” da Rádio
Baía em 18/07/2012.
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