quarta-feira, 18 de julho de 2012

UM PORTUGUÊS EXEMPLAR


Que me desculpem Agostinho da Silva, Saramago, Eduardo Lourenço, Maria Lamas, Vieira da Silva, Álvaro Cunhal, Miguel Torga, Almada Negreiros, José Régio, Sophia de Mello Breyner, Egas Moniz (o médico), Amália, Eugénio de Andrade, Rómulo de Carvalho, Vasco Gonçalves, Bento de Jesus Caraça, Luís de Freitas Branco, Tomás Alcaide, Vianna da Motta, Cutileiro, Pomar, Cargaleiro, Jorge de Sena e tantos outros que da lei da morte se foram libertando (isto para trazer Camões ao caso) por via da sua obra, do seu carácter, do seu intelecto, da sua arte, do seus méritos e da sua imensa qualidade enquanto seres humanos capazes de acrescentar deslumbramento, qualidade, valor, utilidade e grandeza à vida de todos nós. Que me desculpem, também, os portugueses anónimos que todos os dias aduzem de forma humilde e, principalmente, de forma honrada, qualquer coisa de útil ao país que os viu nascer. Desculpem, mas se há alguém que, nos dias que correm, pode ser considerado o português padrão, na justa medida que representa o carácter e o temperamento do português comum, esse português chama-se Relvas. Isso mesmo: o Miguel. Melhor ainda: o senhor doutor Miguel Relvas. Ele explica, também, o Portugal dos nossos dias.

Meão de altura e de intelecto, contudo espertalhaço, meio fadista, pimpão, lampeiro, oportunista, ganancioso, arrogante, vaidoso, imoral – ou, no mínimo, de moral duvidosa – e matreiro. Ou seja: alguém nada recomendável. Miguel Relvas – o senhor doutor Miguel Relvas – é, acima de tudo, o tipo de criatura que melhor descreve e ilustra o típico político lusitano. Ao atestar tão decisiva comparação sujeito-me, como é óbvio, ao repúdio dos que, achando que o senhor doutor Miguel Relvas, sendo isso tudo, não é paradigma do português comum nem da sua distinta classe política, mas uma singular excrescência. Como Sócrates, noutro estilo, também o terá sido.

Não posso discordar mais dessa visão. A nossa classe política, principalmente a que medrou depois do 25 de Abril, está tão cheia de Relvas que nada mais é que um imenso relvado. Gente que se arrimou à política para subir na vida, para ser alguém, para enriquecer depressa e muito, para se pavonear nos patamares e nas varandas do poder. E para no poder se manter – e à respectiva seita – a qualquer custo. Gente que sabe que pode fazer tudo menos pôr em causa o capital financeiro e as suas receitas económicas, já que é da babugem dele que vieram. E para lá voltarão, se souberem comportar-se. Gente que se deslumbrou na vertigem do mando, do poder, e que soube criar um ninho de promiscuidades lodosas onde se deita a mão a tudo o que se ambiciona, seja uma licenciatura fantasma, sejam luvas e comissões por benesses concedidas, sejam leis à medida dos muitos Eldorados estabelecidos para abrigar as várias quadrilhas que da democracia se alimentam. Gente que se esconde em lojas, sacristias, confessionários e noutros reposteiros do género, partindo e repartindo os bens que a poderosa besta que os elege ainda produz. Chamam-se Relvas, Sócrates, Varas, Loureiros (tanto os Valentins, como os Dias), Amarais, Felgueiras, Isaltinos, Limas, Ricardos Rodrigues, Melancias, Monterrosos, Abílios Curtos, Oliveiras e Costas. E até Soares, Cavacos e outros césares não se livraram de salpicos que em nada abonam o estatuto que gostam de apregoar.

Mas porque garanto ainda que o Relvas – o doutor Relvas – também representa o português comum? Porque não tenho a mínima dúvida que muito mais de metade do eleitorado – talvez uns setenta por cento – daria o seu voto a este «doutor» e ao outro «engenheiro», caso um dia eles voltassem a pedir-lho.
Quero eu dizer que a maioria dos portugueses ou é como Relvas e Sócrates, ou gostaria muito de o ser.


(João Carlos Pereira)

Crónica lida nas “Provocações” da Rádio Baía em 18/07/2012.

Sem comentários: