quarta-feira, 15 de agosto de 2012

CUBA, 14 – PORTUGAL, 1


Há uma pequena ilha do Caribe que foi um paraíso até 31 de Dezembro de 1958. Nessa altura, um grupo de barbudos mal cheirosos tomou de assalto o poder e acabou com o bem-bom. Até então, tudo era fácil nessa ilha de clima ameno e praias paradisíacas. Havana, por exemplo, era um glamoroso casino e um competente bordel, onde turistas endinheirados, na sua maioria ianques, esparramavam abundantemente milhões de dólares, espermatozoides e urina.

Quando, em Maio de 1902, havia sido proclamada a República de Cuba, terminado que fora o domínio colonial espanhol, logo o solícito e humanitário vizinho norte-americano ordenou à Assembleia Constituinte cubana que ajuntasse um apêndice à Constituição da República, a Emenda Platt, que concedia aos Estados Unidos o direito de intervir nos assuntos internos da nova república, negando à ilha a condição jurídica de nação soberana. E assim, por quase seis décadas, Cuba foi o casino, o bordel e o urinol dos comboys, que tiveram no ditador Fulgêncio Batista o seu «democrata» às ordens. Jogo, droga, prostituição e, a par disso, a riqueza concentrada nas mãos de uma pequena elite de janotas locais e dos chamados (a praga não é nova) investidores estrangeiros. Investidores que – ontem (lá), como hoje (cá) – eram os donos de todos os meios de produção, nababos norte-americanos que utilizavam testas-de-ferro cubanos para gerirem os seus negócios, sendo estes os primeiros sabujos a descobrir o caminho marítimo para Miami, quando as coisas deram para o torto na célebre passagem de ano de 1958 para 1959.

Nesse período dourado, tudo era fácil em Cuba. Para uns, jogatina, charutos, droga, álcool, sexo, milhões a escorrer, corrupção, enfim, aquela era a verdadeira Ilha dos Prazeres. Para outros, também era fácil ter fome, morrer sem assistência médica, ser-se analfabeto, não ter emprego, ganhar uma miséria, ver passar os automóveis de luxo made in USA (espectáculo perfeitamente gratuito, diga-se), tal como fácil era apodrecer-se nas prisões da grande democrata Fulgêncio, com o amém humaníssimo, solidário e cooperante do Tio Sam, o homem que é, há séculos, o maior democrata do mundo.

(Um parênteses para dizer que nas olimpíadas de 1900 e 1904, as primeiras em que participaram atletas cubanos, estes arrecadaram 5 medalhas de ouro, 3 de prata e 3 de bronze – onze, no total. Depois, já entregues às mãos democratas, impolutas, beatíficas e competentes de Fulgêncio Batista e dos seus tutores norte-americanos, Cuba conseguiu, entre 1904 e 1958 – isto é, em dez olimpíadas – uma(!) brilhante medalha de prata, em 1948, nos JO de Londres. Fecho os parênteses).

Voltando aos malvados, mal cheirosos, maquiavélicos e celerados barbudos. Mal tomaram o poder, apoiados pela esmagadora maioria da população, trataram de distribuir por todos os cubanos a comida, os charutos, a cana do açúcar – não só os lucros, mas também o trabalho de a apanhar – os medicamentos, os livros, as escolas e as universidades, os médicos e os professores, a água, a electricidade, as casas e o trabalho, as espingardas e o futuro, algo que, como toda a gente bem-pensante sabe, é profunda e violentamente antidemocrático e, principalmente, vai contra a economia de mercado. Ah! E (crime hediondo!) rasgaram a Emenda Platt.

Como resultado desta desumana hecatombe, os cubanos não só não têm o prazer de saber o que custa querer um médico e não o ter, ou precisar de uma operação e ir para uma humanitária e democrática lista de espera, como conseguem exportar médicos um pouco para todo o mundo, ajudando aqueles que menos podem, como é o caso de um país muito desenvolvido, democrático e respeitador dos direitos humanos que eu conheço. Para cúmulo, os cuidados de saúde, neste país destroçado por políticas que atentam contra a liberdade e os mais sagrados direitos das pessoas, a ninguém é permitido pagar uma consulta, uma operação, um internamento ou, sequer, uma consulta ou tratamento em estomatologia. Nem uma singela taxa moderadora os cubanos estão autorizados a pagar!

Apesar de tudo, os cubanos resistem a estas violências e arbitrariedades próprias de um regime totalitário, e recusam-se a morrer. A esperança de vida é das mais altas do mundo, na ordem dos 79,1 anos. A mortalidade infantil é, hoje, a mais baixa de todo o Continente Americano, o que prova que até os recém-nascidos resistem ao regime. Na verdade, só o Canadá é que apresentou, no ano de 2011, um índice abaixo dos 3,9%.

Como prova da resistência dos cubanos, refira-se que Cuba é o país com a maior proporção demográfica de pessoas com mais de 100 anos, à frente até do Japão, contando com cerca de 1.550 centenários, numa população de 11,2 milhões de habitantes.

A juntar a estes crimes contra os direitos humanos, denuncie-se o facto de o analfabetismo em Cuba ter sido erradicado, como se um ser humano já não tivesse o direito de ser analfabeto à vontade. Por outro lado, os médicos, os engenheiros, os arquitectos, os economistas, os advogados, enfim, aquelas pessoas que, noutras latitudes gostam de ser conhecidos como o senhor doutor, ou o senhor engenheiro, por exemplo, mas não têm tempo para perder nos estudos, ali são obrigados a estudar durante anos seguidos, estando-lhes miseravelmente vedado o direito a pedir equivalências e fazer o curso à la minuta, como acontece nas sociedades civilizadas e, principalmente, democráticas até ao tutano. Como se não bastasse de arbitrariedades, os estudos, os livros e os materiais escolares necessários à aprendizagem são completamente gratuitos.

Perante este quadro aterrador, é natural que os EUA tenham reagido no sentido de proteger o povo cubano, restituindo-lhe a liberdade, e recuperando, também a tal Emenda Platt. Desde 1959 que tudo tem sido tentado pela administração do país mais democrático e respeitador dos direitos humanos – e do direito internacional – que existe à face da terra. Invasões, bombardeamentos, assassinatos, atentados, guerra biológica e um bloqueio económico que é o bloqueio mais longo da história da humanidade. Tudo em vão! Nema célebre Emenda Platt os EUA conseguiram repor. Terrível, não é? Um raquítico David resistir ao gordo Golias!

Coitados dos cubanos. Frustrados, voltam-se para o desporto, só para esquecerem as agruras da vida. Sob o lema olímpico – Mais alto. Mais rápido. Mais forte – fazem das tripas coração e apresentam-se nos Jogos, só para ver o que dá. Assim – e apesar da desgraça em que vivem – já somaram, depois da terrível revolução, 196 medalhas (67 de ouro, 63 de prata e 66 de bronze) às que tinham conseguido até ao fim do regime da dupla extremamente democrática, Fulgêncio/EUA.

É uma tristeza, não é? Tome-se como exemplo um país como o nosso, em área e população semelhante a Cuba. É claro que há algumas diferenças, dado que em vez de sofrermos um bloqueio económico, estamos inseridos numa faustosa comunidade de estados (dos mais ricos do mundo), somos amparados pelo Banco Central Europeu e pelo FMI e, segundo consta, somos governados por democratas puros, patriotas dos quatro costados, gente honestíssima, inteligente, dedicada e competentíssima, o que deveria jogar a nosso favor. Mas não joga. O que é que falha no meio disto tudo?

Não! Não me estou a referir ao desempenho dos portugueses nos Jogos Olímpicos, nem às medalhas ganhas por Cuba. Ou à que Portugal ganhou.

Estou a falar de doentes à espera de uma consulta ou de uma operação, de fome, de desemprego, dos jovens que abandonam os seus cursos por carências económicas, de salários em atraso, de burlas gigantescas, de injustiças e desigualdades sociais, de mentiras, de corrupção, de desumanidade, de desprezo pela vida e pela condição humana, modalidades onde o meu país tem sempre um lugar no pódio. Estou a falar – e isto bastaria – de crianças com fome e velhos abandonados em tugúrios infectos. Coisas que existem em Portugal e que não existem em Cuba.

Londres, Ano da Graça de 2012. Cuba, 14 – Portugal, 1.

Só por si, isto não diz nada. Mas que é um reflexo do essencial, com certeza que é.


(João Carlos Pereira)

Crónica lida nas “Provocações” da Rádio Baía em 15/08/2012.

1 comentário:

Cristian disse...

Eu acho que Cuba sempre foi um paraíso por isso devemos sempre ter em mente que não só o paraíso ponto de vista paisagem dese mas também pode ser um paraíso do ponto de vista da medicina, muitas pessoas vão fazer estudos estomatologia lá.