quarta-feira, 24 de março de 2010

A PETA DO PEC



Foram os trabalhadores portugueses – que são dos mais mal pagos da Europa – que provocaram a crise e, consequentemente, o défice?


Foram os reformados portugueses – com as suas pensões miseráveis – que provocaram a crise e, por arrastamento, o défice?


Foram os desempregados portugueses – com os seus subsídios de fome – que provocaram a crise e, naturalmente, o défice?


Foram os estudantes portugueses – que pagam propinas e livros caríssimos – que provocaram a crise e, logicamente, o défice?


Foram os trabalhadores com salários em atraso que provocaram a crise e, obviamente, o défice?


Foram os doentes à espera de uma consulta, de um exame clínico ou de uma operação, que provocaram a crise e, evidentemente, o défice?


Foi a população em geral, que paga os seus impostos e não beneficia de perdões nem de isenções fiscais, como as grandes fortunas e os espertos dos offshores, que provocou a crise e, por isso, o défice?


Se houver alguém que responda que sim a qualquer destas perguntas – e desculpem-me a franqueza – só pode ser um indigente mental absoluto ou um dos muitos vampiros que por aí vão comendo tudo e não deixam nada.


Então, quem fez a crise e provocou o défice? O menino Jesus? A virgem Maria? Deus, Alá, ou outra qualquer divindade? O diabo? Vários diabos juntos? A mãe Natureza, farta de ser agredida pela estupidez humana?


Não. Não me parece que fosse qualquer divindade, muito menos a mãe Natureza que, apesar de tudo, ainda é quem nos vale. Eu sei que a crise foi produzida pelos senhores que têm nas mãos o sistema económico, ou seja, o capital financeiro – há quem lhes chame, simplesmente, capitalistas – e, naturalmente, pelos senhores políticos, seus fiéis servidores. A crise foi obra, por acção ou omissão, dos homens que mandam na economia, e não obra de quem trabalha para ter o seu pão de cada dia. Ponto final, parágrafo.


A crise portuguesa já existia antes da crise internacional – e vai continuar a existir, de forma agravada, depois dela. Tem as mesmas causas, porque é filha do mesmo sistema, mas é ampliada pela falta de competência, honestidade e pela ganância desenfreada da casta financeira e política que tomou conta do país – e o saqueia.


Digo, sem medo de desmentido, que o défice é a desculpa e o PEC a ferramenta para agravar as condições de vida dos portugueses que vivem do seu trabalho. Para lhes retirar o que foram conquistando ao longo dos anos – e que é seu por direito. Virá o tempo em que as férias pagas e os subsídios de Natal e de férias serão considerados direitos abusivos dos trabalhadores, um exagero, exigindo-se o seu fim em nome do défice e da saúde da economia. Tal como o horário de oito horas e o descanso semanal. Pouco a pouco, voltar-se-á ao trabalho de sol a sol. A idade da reforma subirá até aos limites da resistência física de cada um, o mesmo é dizer: trabalharás até ao dia em que morreres. Se tiveres trabalho, receberás o que o teu patrão quiser – se quiser – e não terás horários fixos nem funções definidas. Serás pau para toda a obra. Dir-te-ão que o direito ao trabalho – e o trabalho com direitos – são coisas do passado, impróprias de países modernos e civilizados. Serás obrigado a sujeitar-te a todas as exigências se quiseres levar o pão à tua boca e às dos teus filhos. Filhos, aliás, passarão a ser coisas de luxo, e terás que pensar muito bem antes de te atreveres a trazer alguém a este mundo. Tudo te será negado em nome da saúde da economia e do controlo do défice. Ou do que inventarem em substituição destas patranhas, quando elas já não assustarem ninguém. Lembro-te – se já te esqueceste – que muito antes de se falar em crise já aí estava o Código do Trabalho a abrir caminho à sangria que o PEC quer agora continuar.


Tudo isto acontece enquanto nas empresas públicas e privadas um bando de nababos nada na piscina dos bem-aventurados. Ou são antigos ministros e secretários de Estado, que assim recebem a paga pelos bons serviços prestados, ou são boys e girls que o cartão partidário guindou a altos e bem remunerados cargos, ou são comissários políticos cuja principal missão é cuidar dos sacos azuis e do financiamento partidário, enfim toda uma matula de sanguessugas e vampiros vivendo à conta da riqueza produzida por quem realmente trabalha. E enquanto o PEC te retira poder de compra, eles têm ordenados, prémios, ajudas de custo, carro às ordens e reformas rápidas e suculentas. E várias.


Aqui chegados, uma pergunta se impõe: mas não será importante equilibrar as contas públicas e estruturar a economia, de maneira a que se produza mais e melhor? A resposta é simples: sim, é importante. O problema é que não será com o PEC que isso sucederá. Primeiro, porque o PEC não promoverá a criação de mais riqueza; segundo, porque – em vez disso – assenta na redução do investimento; terceiro, porque agravará as desigualdades sociais, dando origem a conflitos de vária ordem e, consequentemente, a um clima de descontentamento e instabilidade que se reflectirá no próprio desempenho económico; quarto, porque as receitas fiscais diminuirão, fruto de uma quebra acentuada na procura, já que o poder de compra dos trabalhadores será drasticamente reduzido; quinto, porque ao prever a privatização de vária empresas públicas, vai delapidar o país de sectores estratégicos importantes para o seu desenvolvimento económico, trazendo, por acréscimo, um aumento imediato dos preços dos bens e serviços que essas empresas oferecem.


A economia reanima-se e o défice diminui com mais trabalho, melhores salários – o que trará mais poder de compra – mais e melhor segurança social e, decorrendo de tudo isto, a certeza de que do esforço colectivo resultarão benefícios para todos. Ou seja, uma repartição da riqueza equilibrada e justa, que mobilize e estimule os trabalhadores na obtenção de objectivos cada vez mais ambiciosos, certos que do seu esforço colherão os devidos benefícios, ao invés do que acontece agora.


Mas isso não se consegue com as políticas de Sócrates e comandita, cujo único objectivo é salvaguardar os interesses do grande capital financeiro à custa de uma exploração desenfreada das classes trabalhadoras e dos reformados. Pelo meio, algumas dúzias de boys e girls, vão-se amanhando enquanto podem, facilitando negócios, traficando influências, vendendo ao desbarato – saqueando, afinal – o que resta do país.


E de crise em crise lá vamos. Dantes, cantando e rindo; agora, entretidos com futebol e telenovelas, com telemóveis e outras maravilhas informáticas.


E comprando, semanalmente, a ilusão da felicidade através do euromilhões.



(João Carlos Pereira)


Crónica lida nas “Provocações” da Rádio Baía em 24/03/2010.

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