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Já não é a primeira vez que digo – e, certamente, não será a última – que vivemos em regime feudal. Claro que a nota é forçada, mas não tanto como parece. No fundo, o que eu quero dizer é que a sociedade está, tal como estava no tempo do feudalismo, organizada de modo a que uma certa camada social se banqueteie à custa daquilo que os actuais servos produzem. Na Idade Média, período de ouro do regime feudal, a sociedade estruturava-se a partir do poder real (de inspiração divina, como se usava fazer crer), que dividia as terras do seu reino pelos senhores feudais, para que estes as governassem com muito tino e ainda maior proveito. As terras incluíam as populações, que, no essencial, cuidavam da agropecuária dos feudos, recebendo, em troca, um pedaço de terra, da qual sobreviviam. Querendo, o senhor feudal ainda tributava os servos, ficando-lhe com parte dos produtos que estes produziam para a sua subsistência. Qualquer pretexto era bom para o efeito. No fundo, para além de trabalharem duramente, pouco mais restava às populações. Já não eram escravas, mas pouco podiam dispor das suas vidas e dos seus parcos bens. Ou seja: eram escravos de um novo tipo, mais suave, menos desumano.
Nos dias que correm, pode dizer-se que o rei é o poder económico, ao qual, como no tempo do feudalismo, tudo e todos se subordinam. Entre este rei e os servos de hoje está, no lugar dos senhores feudais de antanho, a classe política, cujo principal tarefa é manter os servos submissos e produtivos. Cobra impostos, decreta os direitos e os deveres de cada um, cuida de que o poder instituído não seja posto em causa e, principalmente, gere criteriosamente a distribuição da riqueza produzida pela classe servil, de modo a que esta nunca tenha mais do que o estritamente necessário para sobreviver mas possa – claro está – produzir cada vez mais e melhor.
No tempo do feudalismo, o produto da riqueza que os servos criavam, essencialmente a partir da actividade agropecuária, ia quase todo direitinho para os cofres reais, deduzida a parte (que não era pouca) que permitia aos senhores feudais viverem refasteladamente nos seus faustosos palácios. Nos tempos de hoje, o produto da riqueza produzida pelos trabalhadores, através dos vários sectores produtivos, vai, por via dos lucros alcançados, quase todo direitinho para o bolso dos monarcas do capitalismo que, à semelhança do que fazia a realeza medieval, espalha benesses pela classe política, com a qual não raras vezes se confunde, numa imprópria – mas compreensível – promiscuidade. E qual é a condição essencial para que a classe política beneficie das boas graças dos reizinhos de hoje? Esta: que os políticos sirvam fielmente o poder económico, garantindo, acima de tudo, que este nunca seja posto em causa. E chegámos ao grande dogma: o capitalismo é a base do equilíbrio político, económico e social, já não pela sua ascendência divina, mas pelos ditames de algo ainda mais definitivo e inquestionável: a economia de mercado. Enfim, cada época tem a suas lendas e os seus fetiches. As suas maravilhosas armadilhas.
É verdade que existam diferenças políticas, sociais, culturais e económicas nas actuais relações de produção, de que destaco o facto de serem os servos a escolher os seus senhores feudais. Mas existe aqui, nesta ilusória liberdade de escolha, uma preciosa concepção: são proscritos os que puserem em causa a ordem feudal. Já não pela força, seja ela pelo chicote, masmorra, grilheta ou pelourinho, mas pela manipulação ideológica, a que se junta, sempre que conveniente e necessário, a dose precisa de coação para que o rebanho saiba o que lhe convém. Do género: Ou nós, ou o caos!
Nesta comparação blasfema entre feudalismo e a ditadura do capital, também conhecida como democracia – espero que os espíritos menos preparados, ou pouco dados a análises que questionem a famosa ordem natural das coisas não me excomunguem – ainda cabe referir uma diferença substancial entre a economia feudal e a economia capitalista. É que no feudalismo tudo girava, em termos económicos, em torno do que a terra dava, ou seja, da produção concreta de bens. Na economia capitalista as coisas são muito mais complicadas e obscuras. A tal ponto, que até se consegue acumular fortunas sem que a isso corresponda qualquer bem produzido, ou seja, sem que a isso corresponda o mínimo de riqueza criada. Chama-se a isto, sem corar, especulação bolsista.
Para os que pensam que eu estou a mentir ou a ser vítima de uma qualquer alucinação, dou-vos um belo exemplo. Há anos, o banco Totta e Açores promoveu um aumento de capital, no âmbito, segundo creio, da venda de parte do seu capital que ainda era público. As acções foram postas à venda por cerca de 1.200$00. Belmiro de Azevedo tinha como objectivo, nessa altura, deter uma maioria de capital suficiente para controlar o banco, pelo que subscreveu alguns milhões de títulos. Concretizada a operação, o magnata verificou que as contas lhe tinham saído furadas, não tendo conseguido os títulos suficientes para engolir do banco. Passados seis meses, resolveu vender as acções que tinha comprado e – milagre dos milagres, que meteu a famosa multiplicação dos pães num chinelo – ganhou com isso vários milhões de contos, pois o que comprara por 1.200$00 vendeu por 3.600$00. Três vezes mais, sem que tenha sido colhida uma batata, produzido um parafuso, pescado um carapau, criado um porco, extraído um grama de minério, fabricado um comprimido ou confeccionado uma camisa. E, como se compreenderá, nem o banco Totta, em seis meses, passou a valer três vezes mais. Pobres alquimistas da Idade Média, que gastaram os neurónios para produzir ouro nas suas retortas e caldeirões, quando a fórmula mágica se chamava, afinal, especulação. E cabe aqui uma pergunta parva: se não foi produzida riqueza – e se Belmiro enriqueceu milhões de contos – quem pagou a factura? Que me respondam os alquimistas do capitalismo.
Agora, El-Rei Dinheiro olhou para os seus cofres e não gostou de que viu. Quer mais, quere-los a deitar por fora. Chamou os senhores feudais ao Paço e ordenou nova colecta. A bem do reino, que se entenda. Ide e colectai. Directa ou indirectamente. Reduzi benefícios, recolhei galinhas, porcos, trigo e centeio. Forçai os servos a mais trabalho e com menos paga. Cuidai que nenhum grão indevido se esconda em nenhum bolso. Homens e mulheres, novos e velhos, sãos e doentes, todos deverão contribuir para a estabilidade do nosso reino, para o conforto das arcas reais, sem o que o próprio reino estará em risco.
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Nos dias que correm, pode dizer-se que o rei é o poder económico, ao qual, como no tempo do feudalismo, tudo e todos se subordinam. Entre este rei e os servos de hoje está, no lugar dos senhores feudais de antanho, a classe política, cujo principal tarefa é manter os servos submissos e produtivos. Cobra impostos, decreta os direitos e os deveres de cada um, cuida de que o poder instituído não seja posto em causa e, principalmente, gere criteriosamente a distribuição da riqueza produzida pela classe servil, de modo a que esta nunca tenha mais do que o estritamente necessário para sobreviver mas possa – claro está – produzir cada vez mais e melhor.
No tempo do feudalismo, o produto da riqueza que os servos criavam, essencialmente a partir da actividade agropecuária, ia quase todo direitinho para os cofres reais, deduzida a parte (que não era pouca) que permitia aos senhores feudais viverem refasteladamente nos seus faustosos palácios. Nos tempos de hoje, o produto da riqueza produzida pelos trabalhadores, através dos vários sectores produtivos, vai, por via dos lucros alcançados, quase todo direitinho para o bolso dos monarcas do capitalismo que, à semelhança do que fazia a realeza medieval, espalha benesses pela classe política, com a qual não raras vezes se confunde, numa imprópria – mas compreensível – promiscuidade. E qual é a condição essencial para que a classe política beneficie das boas graças dos reizinhos de hoje? Esta: que os políticos sirvam fielmente o poder económico, garantindo, acima de tudo, que este nunca seja posto em causa. E chegámos ao grande dogma: o capitalismo é a base do equilíbrio político, económico e social, já não pela sua ascendência divina, mas pelos ditames de algo ainda mais definitivo e inquestionável: a economia de mercado. Enfim, cada época tem a suas lendas e os seus fetiches. As suas maravilhosas armadilhas.
É verdade que existam diferenças políticas, sociais, culturais e económicas nas actuais relações de produção, de que destaco o facto de serem os servos a escolher os seus senhores feudais. Mas existe aqui, nesta ilusória liberdade de escolha, uma preciosa concepção: são proscritos os que puserem em causa a ordem feudal. Já não pela força, seja ela pelo chicote, masmorra, grilheta ou pelourinho, mas pela manipulação ideológica, a que se junta, sempre que conveniente e necessário, a dose precisa de coação para que o rebanho saiba o que lhe convém. Do género: Ou nós, ou o caos!
Nesta comparação blasfema entre feudalismo e a ditadura do capital, também conhecida como democracia – espero que os espíritos menos preparados, ou pouco dados a análises que questionem a famosa ordem natural das coisas não me excomunguem – ainda cabe referir uma diferença substancial entre a economia feudal e a economia capitalista. É que no feudalismo tudo girava, em termos económicos, em torno do que a terra dava, ou seja, da produção concreta de bens. Na economia capitalista as coisas são muito mais complicadas e obscuras. A tal ponto, que até se consegue acumular fortunas sem que a isso corresponda qualquer bem produzido, ou seja, sem que a isso corresponda o mínimo de riqueza criada. Chama-se a isto, sem corar, especulação bolsista.
Para os que pensam que eu estou a mentir ou a ser vítima de uma qualquer alucinação, dou-vos um belo exemplo. Há anos, o banco Totta e Açores promoveu um aumento de capital, no âmbito, segundo creio, da venda de parte do seu capital que ainda era público. As acções foram postas à venda por cerca de 1.200$00. Belmiro de Azevedo tinha como objectivo, nessa altura, deter uma maioria de capital suficiente para controlar o banco, pelo que subscreveu alguns milhões de títulos. Concretizada a operação, o magnata verificou que as contas lhe tinham saído furadas, não tendo conseguido os títulos suficientes para engolir do banco. Passados seis meses, resolveu vender as acções que tinha comprado e – milagre dos milagres, que meteu a famosa multiplicação dos pães num chinelo – ganhou com isso vários milhões de contos, pois o que comprara por 1.200$00 vendeu por 3.600$00. Três vezes mais, sem que tenha sido colhida uma batata, produzido um parafuso, pescado um carapau, criado um porco, extraído um grama de minério, fabricado um comprimido ou confeccionado uma camisa. E, como se compreenderá, nem o banco Totta, em seis meses, passou a valer três vezes mais. Pobres alquimistas da Idade Média, que gastaram os neurónios para produzir ouro nas suas retortas e caldeirões, quando a fórmula mágica se chamava, afinal, especulação. E cabe aqui uma pergunta parva: se não foi produzida riqueza – e se Belmiro enriqueceu milhões de contos – quem pagou a factura? Que me respondam os alquimistas do capitalismo.
Agora, El-Rei Dinheiro olhou para os seus cofres e não gostou de que viu. Quer mais, quere-los a deitar por fora. Chamou os senhores feudais ao Paço e ordenou nova colecta. A bem do reino, que se entenda. Ide e colectai. Directa ou indirectamente. Reduzi benefícios, recolhei galinhas, porcos, trigo e centeio. Forçai os servos a mais trabalho e com menos paga. Cuidai que nenhum grão indevido se esconda em nenhum bolso. Homens e mulheres, novos e velhos, sãos e doentes, todos deverão contribuir para a estabilidade do nosso reino, para o conforto das arcas reais, sem o que o próprio reino estará em risco.
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E os servos lá vão, mais uma vez, dobrar a cerviz, convencidos que o que interessa a El-Rei é o que lhes interessa a eles. Os magos e alquimistas da Idade Média, coitados, não passavam de minúculos aprendizes dos grandes feiticeiros de hoje. Mas compreende-se: naquele tempo não havia televisão.
Ah! É verdade. Esqueci-me de falar do défice. Sabem o que é o défice? É aquilo que eles quiserem que seja. Aliás, não importa saber o que é o défice. O que é importante é saber para que serve o défice. Para quem ainda não percebeu, eu explico que o défice é o chicote, a grilheta e o pelourinho dos nossos dias.
Não funciona da mesma maneira, mas o resultado é exactamente o mesmo.
E os servos lá vão, mais uma vez, dobrar a cerviz, convencidos que o que interessa a El-Rei é o que lhes interessa a eles. Os magos e alquimistas da Idade Média, coitados, não passavam de minúculos aprendizes dos grandes feiticeiros de hoje. Mas compreende-se: naquele tempo não havia televisão.
Ah! É verdade. Esqueci-me de falar do défice. Sabem o que é o défice? É aquilo que eles quiserem que seja. Aliás, não importa saber o que é o défice. O que é importante é saber para que serve o défice. Para quem ainda não percebeu, eu explico que o défice é o chicote, a grilheta e o pelourinho dos nossos dias.
Não funciona da mesma maneira, mas o resultado é exactamente o mesmo.
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(João Carlos Pereira)
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Crónica lida nas “Provocações” da Rádio Baía em 10/03/2010.
Não deixe de ouvir em 98.7 Mhz e participar pelos telefones 212277046 ou 212277047 todas as quartas-feiras entre as 09H00 e as 10H00.
3 comentários:
E OS BOBOS SENHOR?
ONDE ESTÃO E QUEM SÃO OS BOBOS DA CORTE?
Há dois tipos de bobos. Os bobos da corte, propriamente ditos, como o Augusto Santos Silva (o Bobo Malhador) ou o Francisco Assis (o Bobo Malhado), dado a sua propensão para levar na tola, tanto em Felgueiras, como quando é candidato autárquico.
Depois há o outro Bobo, chamado Zé Povinho, que somos nós todos. Há também quem nos compare a mulas mansas, porque nem as moscas sabemos enxotar.
Decorreu de forma muito participativa o jantar-debate realizado pelo CDS/PP do Seixal, cujo tema era “Cuba – tentar perceber”.
Quando se assiste a mais uma campanha mediática contra Cuba, é de louvar quem pretende estar esclarecido e não tem reservas mentais ou complexos de qualquer ordem.
http://associacaojosemarti.blogspot.com
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