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Se este programa não tivesse outro mérito, teria o de, sem qualquer dúvida, atiçar o ódio dos bem instalados nesta espécie de democracia em curso – neste feudalismo do século XXI, conforme costumo chamar-lhe – que mais não é, afinal, que a ditadura do poder económico sobre os trabalhadores. Atiça, também, o ódio dos apoiantes do actual governo, mesmo que mal instalados na vida e, por isso mesmo, vítimas das políticas que lhes vão aos bolsos todos os dias. Coitados, sem perceberem que pertencem à classe dos explorados, sofrem de dois défices ao mesmo tempo: sofrem o défice das contas públicas, já que também o pagam com língua de palmo, e sofrem de défice mental, pois são incapazes de perceber o que lhes está a cair
Mais finórios, os bem instalados tentam lançar poeira para os olhos da populaça. Como as coisas estão é que estão bem – e estão para durar – afiançam. De resto, dizem eles, é assim em quase todo o mundo. A actividade política bem pensante resume-se à existência de dois partidos – um mais à direita, outro menos à direita, mas ambos fiéis ao capitalismo reinante – e tudo o mais são resíduos extremistas sem expressão ou significado. Felizes da vida – ou isso aparentando – dão a sociedade como estática e imutável, e o feudalismo capitalista como coisa a perdurar até à consumação dos séculos. Sabem que não será assim, mas esforçam-se, pregando o conformismo e a subjugação, por adiar qualquer mudança.
Apesar de não serem imbecis de todo, acabam por parecê-lo. Não percebem – ou fingem não perceber – que nenhuma coisa o é para sempre. O mundo pula e avança, como disse o cientista e poeta Mário Gedeão, só não se sabendo quando o pulo e o avanço acontecem com força suficiente para mudar o que está. Aliás, já outro poeta, chamado Luís de Camões, sabia que todo o mundo é composta de mudança, apesar de ter vivido há mais de 500 anos. No fundo, tudo se resume a isto: os poderosos tentam retardar o dia em que o poder mude de mãos, para o que usam todos os meios ao seu alcance, o que vai dar na pura manipulação ideológica até aos actos de guerra; os servos tentam sacudir a canga, conquistar a liberdade plena, o que só é possível com colectivização da economia e o controlo dos meios de produção.
Outra coisa que os pérfidos manhosos desta ordem natural das coisas ignoram soberanamente, é que existem pessoas – milhões de pessoas – que sofrem e morrem porque a política e a economia são exactamente como eles defendem. Para estes sabichões, as pessoas não contam: são coisas passivas, a nível do objecto ou – vá lá – da besta de carga, a quem nenhum assomo de análise, revolta ou contestação é permitido. É aguentar e cara alegre. Falam da economia, das políticas globais e dos grandes partidos, dos tratados internacionais, das conjunturas, das instituições, enfim, falam de tudo menos dos seres humanos.
Padece-se de fome, de carências várias, morre-se de doenças curáveis, vegeta-se ao sabor da vontade dos poderosos? Paciência, é mesmo assim que as coisas são, nada se pode fazer.
O desemprego espalha a angústia e a miséria em milhares de lares, chegando a levar ao suicídio aqueles em quem toda a esperança morreu? Que querem? É a economia, seus ignorantes!
Centenas de milhares de pessoas vivem com a corda na garganta, sem ordenado suficiente e – pior ainda – sabendo que, tarde ou cedo, vão perder o posto de trabalho? E depois? Há mais patrões à espera de mão-de-obra desesperada e, por consequência, barata. Desenrasquem-se!
Já existem mais de dois milhões de pobres declarados, vivendo alguns na mais revoltante miséria? Que importa? Nem todos podem viver bem! Vivemos numa sociedade competitiva, só os mais fortes sobrevivem!
A maioria da população arrasta-se nos caminhos da mera sobrevivência, enquanto alguns senhores arrebanham e acumulam ordenados e pensões sumptuosos, cobertos por leis que eles próprios urdiram, estribados numa abjecta promiscuidade entre o poder político e o poder económico? E que tem isso de mal? A vida está para os espertos, para os que sabem governar-se!
A corrupção alastra, os crimes de colarinho branco desfalcam as empresas e o estado em muitos milhões, enquanto alguns sectores da Justiça assobiam para o lado ou se desunham a branquear o carvão? Qual quê! Isso não passa de pura invenção de frustrados e invejosos! Abafe-se, desminta-se, arquive-se!
A imoralidade instalou-se como norma e instrumento, a criminalidade acompanha a degradação política e social, a bagunça e a irresponsabilidade alastram por todos os quadrantes da sociedade, levando putativos responsáveis a sacudir a água do capote, mesmo quando uma criança se suicide por já não aguentar mais a violência de que era alvo na escola? Coisas que acontecem! Adiante!
Para os finórios defensores deste assim é que está bem, a humanidade não existe. Ou, se existe, não é de carne e osso. Ou se é de carne, é apenas de carne para canhão, seja nas guerras de rapina a sério, com mísseis e bombas sofisticadas, seja nas guerras invisíveis, onde a rapina não é menor e onde as vítimas morrem de morte lenta. O que lhes interessa é que existe o partido A, mais o partido B, que são os grandes partidos da ditadura do capital, e que os partidos C, D e E são pequeninos, portanto siga o baile de acordo com a maioria. A isto querem resumir a questão.
Vem-me à memória o que disse Galileu Galilei quando, em 1633, foi julgado por heresia, pelo Tribunal da Inquisição, e forçado a negar a sua certeza de que a Terra se movia à volta do Sol. Disse ele, baixinho, para os esbirros da santíssima Inquisição não ouvirem: Eppur si muove (No entanto, ela move-se). Também podem os inquisidores de hoje pregar que o mundo será sempre como o suportamos, um mundo injusto, desigual, violento, governado por vampiros que se alimentam do trabalho de milhões de seres humanos, aos quais impõem restrições e sacrifícios permanentes para garantirem, desse modo, a sua opulência, que isso não alterará esta verdade: cada homem tem em si a semente da liberdade e o sentido do que é justo.
O mundo pula e avança... E um dia, bastará um pulo, um avanço quase invisível... e o tempo dos vampiros dará lugar a um mundo melhor.
(João Carlos Pereira)
Crónica lida nas “Provocações” da Rádio Baía em 17/03/2010.
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